É como se tudo se criasse na hora. Mesmo os temas, aquilo que costuma-se saber e ensaiar ao menos uma vez antes de se subir ao palco, têm o gosto de uma descoberta, um susto, algo urgente e vivo apenas por poucos segundos já que nunca será conduzido de novo da mesma forma. Arismar do Espírito Santo toca como fala. Seu raciocínio de harmonizador, retirando as tônicas e o conforto dos acordes, tem o mesmo fôlego dos encaixes de sua memória, sobrepondo causos sem compromisso com as linhas do tempo. Suas pulsações rítmicas são tão vibrantes quanto seu humor, e talvez seu melhor humor esteja mesmo nelas. E suas melodias, mais sugeridas do que cantadas enquanto ele toca piano no álbum Cataia, transbordam sem passar pelo filtro da razão, mas levando sua música com a mesma paixão que sua voz carrega uma história.
Arismar pode estar mais exposto do que nunca em seu novo álbum, mais do que esteve em todos os seus outros sete discos autorais. E uma boa comparação pode ser feita com Flor de Sal, de 2017, e com Roda Gingante, de 2015, ambos saídos pelo selo Maritaca, da flautista e compositora Lea Freire. Por maior que o espírito de suas ideias seja o condutor de todos os projetos anteriores – parece óbvio, mas não aconteceria com tanta eficiência se sua composição não tivesse força suficiente para se impor aos ímpetos de quem toca com ele –, Arismar, pela primeira vez, não toca baixo em nenhuma faixa de um disco, o que muda toda a história. Agora, em muitos temas ao piano e em alguns ao violão, ele atua direto da sala de controle, acionando andamentos, invertendo acordes, quebrando ritmos e conduzindo tudo para onde quiser. Sua voz induz a uma melodia sem acabamento, relaxada e naturalista. Um pensamento de condução muito diferente de quando ela está em outras mãos, como quando o acordeonista Bebê Kramer toca Samba de Bia, em Roda Gingante, ou a flautista Léa Freire e o trombonista Sérgio Coelho dobram o tema de A Big Band Não Veio, do excelente Flor de Sal. Nada é para sair mais tão ajeitado com Arismar no comando.
Ao seu lado estão apenas o baterista Mauro Martins e o baixista Glauco Sölter, um trio que vai seguir assim pelas onze faixas do álbum. Por tradição, trios procuram compensar a ausência de arranjos com sangue, elevando a temperatura, flexibilizando os conceitos e investindo nos improvisos. E é aí que começa o show de Arismar em sua nova convenção. Explosivo como tudo o que virá depois, o samba de abertura Cataia expõe a musicalidade de um instrumentista que decidiu olhar a música por cima para entendê-la livre das limitações horizontais de quem só a conhece até onde a mecânica de seu instrumento permite. Ao passar do violão para a bateria, da bateria para o baixo e do baixo para tudo o que emitisse algum som minimamente organizado, Arismar iluminou-se, transpondo sua linguagem para qualquer instrumento.
A voz que ele usa em Cataia não entrega o melhor timbre e não parece muito preocupada em colocar todas as notas em seus devidos lugares, mas, aqui, isso não é o mais importante. Cataia é um álbum de atmosferas nas quais a própria melodia não precisa soar em primeiro plano. “Meu norte sempre foi o baixo”, diz ele, ao Estado. “Só achei os acordes por causa do som dos baixos e, quando toco violão, meu pensamento está neles.”
Foi assim desde o primeiro dia em que Arismar pisou na Baiúca, um dos primeiros lugares a dar emprego ao menino ainda menor de idade e recém-chegado de Santos. E a Baiúca era mesmo o melhor lugar para alguém com seu passado e seu projeto de futuro estar. Casa filha de um centro de São Paulo transbordante de cultura nos anos pré-golpe de 1964, surgida na Rua Major Sertório, migrada para a Praça Roosevelt e desorientada anos depois pela luxúria dos Jardins, foi em suas dependências que o Zimbo Trio ganhou vida, Elis, Chico, Dick Farney e Cauby Peixoto davam expediente e Vinicius, ao ver Johnny Alf tocar uma noite, disse algo certo por palavras tortas: “Vamos embora para o Rio. Essa cidade é o túmulo do samba.” Não era bem assim, mas Vinicius antevia com a frase a festa da bossa nova que Alf perdia e à qual jamais teria outra chance de entrar.
Arismar chegou ali de curioso, com 17 anos. “Como é que toca esse instrumento?”, perguntou ao baixista Sabá, um homem imponente e cheio de histórias já na condição de lenda viva por ter formado o Jongo Trio em 1965. “Com as mãos”, cortou a graça do menino. A mãe de Arismar era Maria Conceição, que usava o nome artístico de Aracy Lima quando se transformava em uma das belas vozes da Rádio Atlântica de Santos. O pai de Arismar, Aristides, havia perdido a visão depois de se acidentar em um jogo de basquete, mas se apaixonou pela voz que ouviu no rádio e decidiu buscá-la. Criou coragem, seguiu para o auditório da emissora e deu um jeito de se aproximar da cantora que se tornaria sua mulher.
O irmão seis anos mais velho, Paulo Roberto, foi também uma espécie de primeiro ídolo até uma morte precoce. Era seu piano que encantava Arismar ainda pelos bares de Santos e que estaria em seu primeiro álbum, na faixa Lamentos. Antes de assumir um trabalho pela primeira vez, com 18 anos incompletos, ele bateu cartão na Baiúca por três meses para assistir ao Dick Farney cantar e tocar piano ao lado do baterista Toninho Pinheiro e do baixista Sabá. “Como eu amei aquilo.” A noite deu a seus ouvidos uma percepção curiosa. Foi logo na Baiúca, em que passou a tocar bateria prestando mais atenção no que o baixista fazia do que eu seu próprio instrumento, que entendeu a beleza de algo repudiado por muitos músicos da noite: o som das pessoas disputando espaço com a música. “Eu acho lindo chegar a um lugar e ouvir a música como se ela fosse um dos personagens participando da noite.” Cultuado por duas ou três gerações como o principal baixista de sua época, para reduzi-lo a um instrumento, pai do também baixista Thiago Espírito Santo, da cantora Bia Góes (filho e filha com a pianista Silvia Góes) e da percussionista Maria Julia (filha com a produtora Eni Cunha), Arismar segue tocando aquilo que é. E, em Cataia, talvez nunca tenha sido tão ele mesmo.