Artistas ou monstros? Livro mostra comportamentos odiáveis de gênios das artes


Do antissemita Richard Vagner às misoginias de Miles Davis, passando por Roman Polanski e Woody Allen, pode a força da obra suprimir as transgressões morais?

Por João Marcos Coelho

Dá pra separar o homem da obra? A questão volta ao noticiário a cada novo episódio. Em agosto passado, o ilustre e respeitadíssimo regente inglês John Eliot Gardiner, 80 anos, deu um soco no rosto de um cantor de seu coral que saiu pelo lado errado após um concerto. Gardiner tem longa ficha corrida de maus-tratos com seus músicos e cantores – e as desculpas nestes casos são sempre protocolares. Permanecem como obras-primas suas gravações da obra de Bach, mais de uma centena de álbuns, mas sua reputação está muito arranhada.

Woody Allen em Barcelona Foto: Enric Fontcuberta / EFE

Ele não está sozinho. Richard Wagner não foi “apropriado” pelo nazismo, ele já era antissemita ferrenho, escreveu textos odiosos, seduziu o rei da Baviera em troca da construção de um teatro só seu, Bayreuth. Como um tipo desses revolucionou a ópera e escreveu obras-primas como Tristão e Isolda e O Anel do Nibelungo?

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Estes “monstros” não são exclusividade do mundo musical. Um cineasta genial como Roman Polanski, por exemplo, adentrou o terreno do estupro, levando uma menina de 13 anos à casa do ator Jack Nicholson lá se vão mais de 50 anos. Mesmo assim, não conseguimos deixar de assistir e gostar de obras-primas como O Bebê de Rosemary.

Em seu livro Monsters: a Fan’s Dilemma, lançado em abril deste ano (sem tradução), a escritora norte-americana Claire Dederer, 56 anos, descreve sucintamente os desvios de conduta e crimes mesmo de gênios das artes. O que torna o livro surpreendente é que ela desloca a pergunta para nós, o público, que temos uma relação de amor-e-ódio com Polanski, Woody Allen, Wagner, Picasso e Johnny Depp, entre tantos outros “monstros”. E tenta explicar como conseguimos conviver com essa contradição, adorar a obra e detestar o autor.

O diretor Roman Polanski: traços odiáveis e obra irretocável Foto: Charles Platiau / REUTERS
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“Podemos continuar a celebrar o gênio diante do monstro?”, propõe. Consumir uma obra de arte é o encontro de duas biografias: a do artista, “que pode atrapalhar o consumo da arte”; e a biografia de cada pessoa que pertence a massas de público heterogêneas. Cada um reage de modo diferente, ou, segundo Claire, “a biografia de cada um na plateia molda a visualização da arte”. E ela insiste: “Repito: isso ocorre em todos os casos”.

‘Autobiografia do público’

Aos poucos ela vai tecendo o que chama de “autobiografia do público”. E detecta que um dos grandes problemas do público chama-se “o passado”. Um tempo em que comportamentos monstruosos eram aceitos. Polanski, condenado por estupro, conseguiu, embora com restrições, continuar rodando seus filmes. O passado também é um lugar em que o antissemitismo, o racismo e a misoginia eram onipresentes, “em que as mulheres eram colocadas em caixas como botões soltos, onde o abuso era normal, e se você o praticasse estava apenas afirmando sua própria normalidade”. Em suma: “O passado é Bing Crosby batendo nos filhos”.

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É suficiente dizer que pessoas assim eram simplesmente produtos do seu tempo e que estamos melhor agora? Duas ideias que ela toma emprestadas de uma escritora norte-americana e de uma filósofa britânica abrem janelas novas para entendermos esta relação complicada entre o público e o artista. O que fazer com a arte das pessoas monstruosas que amamos, um amplo espectro no tempo, de Caravaggio a Michael Jackson? Eliminá-los de nossas vidas?

Miles Davis em sessão de gravação do disco 'Kind Of Blue', em 1959 Foto: Sony Music Entertainement

Melhor perguntar-nos qual de nossos sentimentos ambivalentes em relação a eles é maior: a repulsa ou o amor? Gillian Rose, filósofa britânica, escreveu que “na vida pessoal, independentemente de qualquer pacto, uma das partes pode iniciar uma mudança fundamental nos termos do relacionamento sem renegociá-los” (no livro Love’s Work, de 1995). Claire apóia-se sobretudo no que chama de “perguntas necessárias , mas sem resposta”. A segunda boia de Claire é a escritora afro-americana Pearl Cleage, hoje com 74 anos. Especificamente num livrinho de 64 páginas de 1990, intitulado Mad at Miles: A black woman guide to truth, em que ela detalha os abusos que Miles cometeu com as mulheres em sua vida amorosa. Sim, o Miles do título é o famoso trompetista de jazz Miles Davis (1926-1991).

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Pois em 2012 uma fã de Miles Davis desorientada perguntou-lhe o seguinte: “Existem inúmeros fãs de jazz que não conseguiram ouvir Miles Davis da mesma maneira desde a leitura de seu livro de 1990, onde você detalha os relacionamentos abusivos de Davis com mulheres. Devo continuar a me sentir culpada por querer ouvir o trabalho dele?”

A resposta de Cleage: “Não, você não deve se sentir culpada. Miles está morto…. E confesso que também nunca fui capaz de desistir de ouvir Kind of Blue!” Ou seja, é impossível deixar de gostar de uma música, um livro, um quadro, um filme ou uma peça de teatro, porque o autor é pessoalmente desprezível ou até criminoso em suas atitudes. “Cleage ama Miles”, escreve Claire, “e depois o odeia, e então o ama de uma maneira mais consciente. O que não dá é fingir que o amor não existe, ou que não deveria existir”.

Mais madura, o complemento da resposta de Pearl Cleage não deixa de ser um consolo aos fãs: “Só podemos esperar que da próxima vez que ele voltar, seu espírito e sua personalidade sejam tão adoráveis quanto sua música”.

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Três monstros que amamos

Uma dedicatória de Wagner:

“Somente os amigos que se interessam pelo Homem dentro do Artista são capazes de entendê-lo.”

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Richard Wagner, “Uma comunicação para meus amigos” (1851)

Virginia Woolf, antissemita

“Por que o antissemitismo de Woolf foi esquecido? Está longe de ser a primeira coisa em que pensamos quando pensamos nela. E é uma coisa pequena, uma coisa casual, uma coisa enterrada. Assim como T. S. Eliot, Edith Wharton e Dostoiévski, pensamos antes de mais nada na produção literária. Quando confrontados com seu antissemitismo, pensamos nisso como algo que tem a ver com seu momento na História – como se o antissemitismo fosse o clima da época (...) Pensamos em Woolf e no grupo de Bloomsbury como deslumbrantes porta-estandartes do liberalismo. Esta é a versão de Woolf que ‘venceu’” [Claire Dederer]

Lolita: Nabokov era um monstro?

Ler o livro é envolver-se com o monstruoso. E certamente o homem que escreveu o livro deve ser um monstro. Mas Nabokov era um monstro? Ele é mais lembrado como o autor de um retrato de monstro. Humbert Humbert, o estuprador de crianças, é retratado de forma tão perfeita e completa que se confunde com seu autor: somente um monstro poderia conhecer um monstro tão bem. Certamente Lolita deve ser uma espécie de espelho de seu autor (...) Ele desdenhava a abordagem biográfica da vida de um artista em favor do que está no livro: “A melhor parte da biografia de um escritor não é o registro de suas aventuras, mas a história de seu estilo”. Mas por que Nabokov passou todo esse tempo com Humbert? É um erro fazer essa pergunta em busca de uma resposta biográfica. Em outras palavras, precisamos fazer a pergunta não sobre Nabokov como homem, mas sobre Nabokov como autor. A única resposta é a resposta estética.

Dá pra separar o homem da obra? A questão volta ao noticiário a cada novo episódio. Em agosto passado, o ilustre e respeitadíssimo regente inglês John Eliot Gardiner, 80 anos, deu um soco no rosto de um cantor de seu coral que saiu pelo lado errado após um concerto. Gardiner tem longa ficha corrida de maus-tratos com seus músicos e cantores – e as desculpas nestes casos são sempre protocolares. Permanecem como obras-primas suas gravações da obra de Bach, mais de uma centena de álbuns, mas sua reputação está muito arranhada.

Woody Allen em Barcelona Foto: Enric Fontcuberta / EFE

Ele não está sozinho. Richard Wagner não foi “apropriado” pelo nazismo, ele já era antissemita ferrenho, escreveu textos odiosos, seduziu o rei da Baviera em troca da construção de um teatro só seu, Bayreuth. Como um tipo desses revolucionou a ópera e escreveu obras-primas como Tristão e Isolda e O Anel do Nibelungo?

Estes “monstros” não são exclusividade do mundo musical. Um cineasta genial como Roman Polanski, por exemplo, adentrou o terreno do estupro, levando uma menina de 13 anos à casa do ator Jack Nicholson lá se vão mais de 50 anos. Mesmo assim, não conseguimos deixar de assistir e gostar de obras-primas como O Bebê de Rosemary.

Em seu livro Monsters: a Fan’s Dilemma, lançado em abril deste ano (sem tradução), a escritora norte-americana Claire Dederer, 56 anos, descreve sucintamente os desvios de conduta e crimes mesmo de gênios das artes. O que torna o livro surpreendente é que ela desloca a pergunta para nós, o público, que temos uma relação de amor-e-ódio com Polanski, Woody Allen, Wagner, Picasso e Johnny Depp, entre tantos outros “monstros”. E tenta explicar como conseguimos conviver com essa contradição, adorar a obra e detestar o autor.

O diretor Roman Polanski: traços odiáveis e obra irretocável Foto: Charles Platiau / REUTERS

“Podemos continuar a celebrar o gênio diante do monstro?”, propõe. Consumir uma obra de arte é o encontro de duas biografias: a do artista, “que pode atrapalhar o consumo da arte”; e a biografia de cada pessoa que pertence a massas de público heterogêneas. Cada um reage de modo diferente, ou, segundo Claire, “a biografia de cada um na plateia molda a visualização da arte”. E ela insiste: “Repito: isso ocorre em todos os casos”.

‘Autobiografia do público’

Aos poucos ela vai tecendo o que chama de “autobiografia do público”. E detecta que um dos grandes problemas do público chama-se “o passado”. Um tempo em que comportamentos monstruosos eram aceitos. Polanski, condenado por estupro, conseguiu, embora com restrições, continuar rodando seus filmes. O passado também é um lugar em que o antissemitismo, o racismo e a misoginia eram onipresentes, “em que as mulheres eram colocadas em caixas como botões soltos, onde o abuso era normal, e se você o praticasse estava apenas afirmando sua própria normalidade”. Em suma: “O passado é Bing Crosby batendo nos filhos”.

É suficiente dizer que pessoas assim eram simplesmente produtos do seu tempo e que estamos melhor agora? Duas ideias que ela toma emprestadas de uma escritora norte-americana e de uma filósofa britânica abrem janelas novas para entendermos esta relação complicada entre o público e o artista. O que fazer com a arte das pessoas monstruosas que amamos, um amplo espectro no tempo, de Caravaggio a Michael Jackson? Eliminá-los de nossas vidas?

Miles Davis em sessão de gravação do disco 'Kind Of Blue', em 1959 Foto: Sony Music Entertainement

Melhor perguntar-nos qual de nossos sentimentos ambivalentes em relação a eles é maior: a repulsa ou o amor? Gillian Rose, filósofa britânica, escreveu que “na vida pessoal, independentemente de qualquer pacto, uma das partes pode iniciar uma mudança fundamental nos termos do relacionamento sem renegociá-los” (no livro Love’s Work, de 1995). Claire apóia-se sobretudo no que chama de “perguntas necessárias , mas sem resposta”. A segunda boia de Claire é a escritora afro-americana Pearl Cleage, hoje com 74 anos. Especificamente num livrinho de 64 páginas de 1990, intitulado Mad at Miles: A black woman guide to truth, em que ela detalha os abusos que Miles cometeu com as mulheres em sua vida amorosa. Sim, o Miles do título é o famoso trompetista de jazz Miles Davis (1926-1991).

Pois em 2012 uma fã de Miles Davis desorientada perguntou-lhe o seguinte: “Existem inúmeros fãs de jazz que não conseguiram ouvir Miles Davis da mesma maneira desde a leitura de seu livro de 1990, onde você detalha os relacionamentos abusivos de Davis com mulheres. Devo continuar a me sentir culpada por querer ouvir o trabalho dele?”

A resposta de Cleage: “Não, você não deve se sentir culpada. Miles está morto…. E confesso que também nunca fui capaz de desistir de ouvir Kind of Blue!” Ou seja, é impossível deixar de gostar de uma música, um livro, um quadro, um filme ou uma peça de teatro, porque o autor é pessoalmente desprezível ou até criminoso em suas atitudes. “Cleage ama Miles”, escreve Claire, “e depois o odeia, e então o ama de uma maneira mais consciente. O que não dá é fingir que o amor não existe, ou que não deveria existir”.

Mais madura, o complemento da resposta de Pearl Cleage não deixa de ser um consolo aos fãs: “Só podemos esperar que da próxima vez que ele voltar, seu espírito e sua personalidade sejam tão adoráveis quanto sua música”.

Três monstros que amamos

Uma dedicatória de Wagner:

“Somente os amigos que se interessam pelo Homem dentro do Artista são capazes de entendê-lo.”

Richard Wagner, “Uma comunicação para meus amigos” (1851)

Virginia Woolf, antissemita

“Por que o antissemitismo de Woolf foi esquecido? Está longe de ser a primeira coisa em que pensamos quando pensamos nela. E é uma coisa pequena, uma coisa casual, uma coisa enterrada. Assim como T. S. Eliot, Edith Wharton e Dostoiévski, pensamos antes de mais nada na produção literária. Quando confrontados com seu antissemitismo, pensamos nisso como algo que tem a ver com seu momento na História – como se o antissemitismo fosse o clima da época (...) Pensamos em Woolf e no grupo de Bloomsbury como deslumbrantes porta-estandartes do liberalismo. Esta é a versão de Woolf que ‘venceu’” [Claire Dederer]

Lolita: Nabokov era um monstro?

Ler o livro é envolver-se com o monstruoso. E certamente o homem que escreveu o livro deve ser um monstro. Mas Nabokov era um monstro? Ele é mais lembrado como o autor de um retrato de monstro. Humbert Humbert, o estuprador de crianças, é retratado de forma tão perfeita e completa que se confunde com seu autor: somente um monstro poderia conhecer um monstro tão bem. Certamente Lolita deve ser uma espécie de espelho de seu autor (...) Ele desdenhava a abordagem biográfica da vida de um artista em favor do que está no livro: “A melhor parte da biografia de um escritor não é o registro de suas aventuras, mas a história de seu estilo”. Mas por que Nabokov passou todo esse tempo com Humbert? É um erro fazer essa pergunta em busca de uma resposta biográfica. Em outras palavras, precisamos fazer a pergunta não sobre Nabokov como homem, mas sobre Nabokov como autor. A única resposta é a resposta estética.

Dá pra separar o homem da obra? A questão volta ao noticiário a cada novo episódio. Em agosto passado, o ilustre e respeitadíssimo regente inglês John Eliot Gardiner, 80 anos, deu um soco no rosto de um cantor de seu coral que saiu pelo lado errado após um concerto. Gardiner tem longa ficha corrida de maus-tratos com seus músicos e cantores – e as desculpas nestes casos são sempre protocolares. Permanecem como obras-primas suas gravações da obra de Bach, mais de uma centena de álbuns, mas sua reputação está muito arranhada.

Woody Allen em Barcelona Foto: Enric Fontcuberta / EFE

Ele não está sozinho. Richard Wagner não foi “apropriado” pelo nazismo, ele já era antissemita ferrenho, escreveu textos odiosos, seduziu o rei da Baviera em troca da construção de um teatro só seu, Bayreuth. Como um tipo desses revolucionou a ópera e escreveu obras-primas como Tristão e Isolda e O Anel do Nibelungo?

Estes “monstros” não são exclusividade do mundo musical. Um cineasta genial como Roman Polanski, por exemplo, adentrou o terreno do estupro, levando uma menina de 13 anos à casa do ator Jack Nicholson lá se vão mais de 50 anos. Mesmo assim, não conseguimos deixar de assistir e gostar de obras-primas como O Bebê de Rosemary.

Em seu livro Monsters: a Fan’s Dilemma, lançado em abril deste ano (sem tradução), a escritora norte-americana Claire Dederer, 56 anos, descreve sucintamente os desvios de conduta e crimes mesmo de gênios das artes. O que torna o livro surpreendente é que ela desloca a pergunta para nós, o público, que temos uma relação de amor-e-ódio com Polanski, Woody Allen, Wagner, Picasso e Johnny Depp, entre tantos outros “monstros”. E tenta explicar como conseguimos conviver com essa contradição, adorar a obra e detestar o autor.

O diretor Roman Polanski: traços odiáveis e obra irretocável Foto: Charles Platiau / REUTERS

“Podemos continuar a celebrar o gênio diante do monstro?”, propõe. Consumir uma obra de arte é o encontro de duas biografias: a do artista, “que pode atrapalhar o consumo da arte”; e a biografia de cada pessoa que pertence a massas de público heterogêneas. Cada um reage de modo diferente, ou, segundo Claire, “a biografia de cada um na plateia molda a visualização da arte”. E ela insiste: “Repito: isso ocorre em todos os casos”.

‘Autobiografia do público’

Aos poucos ela vai tecendo o que chama de “autobiografia do público”. E detecta que um dos grandes problemas do público chama-se “o passado”. Um tempo em que comportamentos monstruosos eram aceitos. Polanski, condenado por estupro, conseguiu, embora com restrições, continuar rodando seus filmes. O passado também é um lugar em que o antissemitismo, o racismo e a misoginia eram onipresentes, “em que as mulheres eram colocadas em caixas como botões soltos, onde o abuso era normal, e se você o praticasse estava apenas afirmando sua própria normalidade”. Em suma: “O passado é Bing Crosby batendo nos filhos”.

É suficiente dizer que pessoas assim eram simplesmente produtos do seu tempo e que estamos melhor agora? Duas ideias que ela toma emprestadas de uma escritora norte-americana e de uma filósofa britânica abrem janelas novas para entendermos esta relação complicada entre o público e o artista. O que fazer com a arte das pessoas monstruosas que amamos, um amplo espectro no tempo, de Caravaggio a Michael Jackson? Eliminá-los de nossas vidas?

Miles Davis em sessão de gravação do disco 'Kind Of Blue', em 1959 Foto: Sony Music Entertainement

Melhor perguntar-nos qual de nossos sentimentos ambivalentes em relação a eles é maior: a repulsa ou o amor? Gillian Rose, filósofa britânica, escreveu que “na vida pessoal, independentemente de qualquer pacto, uma das partes pode iniciar uma mudança fundamental nos termos do relacionamento sem renegociá-los” (no livro Love’s Work, de 1995). Claire apóia-se sobretudo no que chama de “perguntas necessárias , mas sem resposta”. A segunda boia de Claire é a escritora afro-americana Pearl Cleage, hoje com 74 anos. Especificamente num livrinho de 64 páginas de 1990, intitulado Mad at Miles: A black woman guide to truth, em que ela detalha os abusos que Miles cometeu com as mulheres em sua vida amorosa. Sim, o Miles do título é o famoso trompetista de jazz Miles Davis (1926-1991).

Pois em 2012 uma fã de Miles Davis desorientada perguntou-lhe o seguinte: “Existem inúmeros fãs de jazz que não conseguiram ouvir Miles Davis da mesma maneira desde a leitura de seu livro de 1990, onde você detalha os relacionamentos abusivos de Davis com mulheres. Devo continuar a me sentir culpada por querer ouvir o trabalho dele?”

A resposta de Cleage: “Não, você não deve se sentir culpada. Miles está morto…. E confesso que também nunca fui capaz de desistir de ouvir Kind of Blue!” Ou seja, é impossível deixar de gostar de uma música, um livro, um quadro, um filme ou uma peça de teatro, porque o autor é pessoalmente desprezível ou até criminoso em suas atitudes. “Cleage ama Miles”, escreve Claire, “e depois o odeia, e então o ama de uma maneira mais consciente. O que não dá é fingir que o amor não existe, ou que não deveria existir”.

Mais madura, o complemento da resposta de Pearl Cleage não deixa de ser um consolo aos fãs: “Só podemos esperar que da próxima vez que ele voltar, seu espírito e sua personalidade sejam tão adoráveis quanto sua música”.

Três monstros que amamos

Uma dedicatória de Wagner:

“Somente os amigos que se interessam pelo Homem dentro do Artista são capazes de entendê-lo.”

Richard Wagner, “Uma comunicação para meus amigos” (1851)

Virginia Woolf, antissemita

“Por que o antissemitismo de Woolf foi esquecido? Está longe de ser a primeira coisa em que pensamos quando pensamos nela. E é uma coisa pequena, uma coisa casual, uma coisa enterrada. Assim como T. S. Eliot, Edith Wharton e Dostoiévski, pensamos antes de mais nada na produção literária. Quando confrontados com seu antissemitismo, pensamos nisso como algo que tem a ver com seu momento na História – como se o antissemitismo fosse o clima da época (...) Pensamos em Woolf e no grupo de Bloomsbury como deslumbrantes porta-estandartes do liberalismo. Esta é a versão de Woolf que ‘venceu’” [Claire Dederer]

Lolita: Nabokov era um monstro?

Ler o livro é envolver-se com o monstruoso. E certamente o homem que escreveu o livro deve ser um monstro. Mas Nabokov era um monstro? Ele é mais lembrado como o autor de um retrato de monstro. Humbert Humbert, o estuprador de crianças, é retratado de forma tão perfeita e completa que se confunde com seu autor: somente um monstro poderia conhecer um monstro tão bem. Certamente Lolita deve ser uma espécie de espelho de seu autor (...) Ele desdenhava a abordagem biográfica da vida de um artista em favor do que está no livro: “A melhor parte da biografia de um escritor não é o registro de suas aventuras, mas a história de seu estilo”. Mas por que Nabokov passou todo esse tempo com Humbert? É um erro fazer essa pergunta em busca de uma resposta biográfica. Em outras palavras, precisamos fazer a pergunta não sobre Nabokov como homem, mas sobre Nabokov como autor. A única resposta é a resposta estética.

Dá pra separar o homem da obra? A questão volta ao noticiário a cada novo episódio. Em agosto passado, o ilustre e respeitadíssimo regente inglês John Eliot Gardiner, 80 anos, deu um soco no rosto de um cantor de seu coral que saiu pelo lado errado após um concerto. Gardiner tem longa ficha corrida de maus-tratos com seus músicos e cantores – e as desculpas nestes casos são sempre protocolares. Permanecem como obras-primas suas gravações da obra de Bach, mais de uma centena de álbuns, mas sua reputação está muito arranhada.

Woody Allen em Barcelona Foto: Enric Fontcuberta / EFE

Ele não está sozinho. Richard Wagner não foi “apropriado” pelo nazismo, ele já era antissemita ferrenho, escreveu textos odiosos, seduziu o rei da Baviera em troca da construção de um teatro só seu, Bayreuth. Como um tipo desses revolucionou a ópera e escreveu obras-primas como Tristão e Isolda e O Anel do Nibelungo?

Estes “monstros” não são exclusividade do mundo musical. Um cineasta genial como Roman Polanski, por exemplo, adentrou o terreno do estupro, levando uma menina de 13 anos à casa do ator Jack Nicholson lá se vão mais de 50 anos. Mesmo assim, não conseguimos deixar de assistir e gostar de obras-primas como O Bebê de Rosemary.

Em seu livro Monsters: a Fan’s Dilemma, lançado em abril deste ano (sem tradução), a escritora norte-americana Claire Dederer, 56 anos, descreve sucintamente os desvios de conduta e crimes mesmo de gênios das artes. O que torna o livro surpreendente é que ela desloca a pergunta para nós, o público, que temos uma relação de amor-e-ódio com Polanski, Woody Allen, Wagner, Picasso e Johnny Depp, entre tantos outros “monstros”. E tenta explicar como conseguimos conviver com essa contradição, adorar a obra e detestar o autor.

O diretor Roman Polanski: traços odiáveis e obra irretocável Foto: Charles Platiau / REUTERS

“Podemos continuar a celebrar o gênio diante do monstro?”, propõe. Consumir uma obra de arte é o encontro de duas biografias: a do artista, “que pode atrapalhar o consumo da arte”; e a biografia de cada pessoa que pertence a massas de público heterogêneas. Cada um reage de modo diferente, ou, segundo Claire, “a biografia de cada um na plateia molda a visualização da arte”. E ela insiste: “Repito: isso ocorre em todos os casos”.

‘Autobiografia do público’

Aos poucos ela vai tecendo o que chama de “autobiografia do público”. E detecta que um dos grandes problemas do público chama-se “o passado”. Um tempo em que comportamentos monstruosos eram aceitos. Polanski, condenado por estupro, conseguiu, embora com restrições, continuar rodando seus filmes. O passado também é um lugar em que o antissemitismo, o racismo e a misoginia eram onipresentes, “em que as mulheres eram colocadas em caixas como botões soltos, onde o abuso era normal, e se você o praticasse estava apenas afirmando sua própria normalidade”. Em suma: “O passado é Bing Crosby batendo nos filhos”.

É suficiente dizer que pessoas assim eram simplesmente produtos do seu tempo e que estamos melhor agora? Duas ideias que ela toma emprestadas de uma escritora norte-americana e de uma filósofa britânica abrem janelas novas para entendermos esta relação complicada entre o público e o artista. O que fazer com a arte das pessoas monstruosas que amamos, um amplo espectro no tempo, de Caravaggio a Michael Jackson? Eliminá-los de nossas vidas?

Miles Davis em sessão de gravação do disco 'Kind Of Blue', em 1959 Foto: Sony Music Entertainement

Melhor perguntar-nos qual de nossos sentimentos ambivalentes em relação a eles é maior: a repulsa ou o amor? Gillian Rose, filósofa britânica, escreveu que “na vida pessoal, independentemente de qualquer pacto, uma das partes pode iniciar uma mudança fundamental nos termos do relacionamento sem renegociá-los” (no livro Love’s Work, de 1995). Claire apóia-se sobretudo no que chama de “perguntas necessárias , mas sem resposta”. A segunda boia de Claire é a escritora afro-americana Pearl Cleage, hoje com 74 anos. Especificamente num livrinho de 64 páginas de 1990, intitulado Mad at Miles: A black woman guide to truth, em que ela detalha os abusos que Miles cometeu com as mulheres em sua vida amorosa. Sim, o Miles do título é o famoso trompetista de jazz Miles Davis (1926-1991).

Pois em 2012 uma fã de Miles Davis desorientada perguntou-lhe o seguinte: “Existem inúmeros fãs de jazz que não conseguiram ouvir Miles Davis da mesma maneira desde a leitura de seu livro de 1990, onde você detalha os relacionamentos abusivos de Davis com mulheres. Devo continuar a me sentir culpada por querer ouvir o trabalho dele?”

A resposta de Cleage: “Não, você não deve se sentir culpada. Miles está morto…. E confesso que também nunca fui capaz de desistir de ouvir Kind of Blue!” Ou seja, é impossível deixar de gostar de uma música, um livro, um quadro, um filme ou uma peça de teatro, porque o autor é pessoalmente desprezível ou até criminoso em suas atitudes. “Cleage ama Miles”, escreve Claire, “e depois o odeia, e então o ama de uma maneira mais consciente. O que não dá é fingir que o amor não existe, ou que não deveria existir”.

Mais madura, o complemento da resposta de Pearl Cleage não deixa de ser um consolo aos fãs: “Só podemos esperar que da próxima vez que ele voltar, seu espírito e sua personalidade sejam tão adoráveis quanto sua música”.

Três monstros que amamos

Uma dedicatória de Wagner:

“Somente os amigos que se interessam pelo Homem dentro do Artista são capazes de entendê-lo.”

Richard Wagner, “Uma comunicação para meus amigos” (1851)

Virginia Woolf, antissemita

“Por que o antissemitismo de Woolf foi esquecido? Está longe de ser a primeira coisa em que pensamos quando pensamos nela. E é uma coisa pequena, uma coisa casual, uma coisa enterrada. Assim como T. S. Eliot, Edith Wharton e Dostoiévski, pensamos antes de mais nada na produção literária. Quando confrontados com seu antissemitismo, pensamos nisso como algo que tem a ver com seu momento na História – como se o antissemitismo fosse o clima da época (...) Pensamos em Woolf e no grupo de Bloomsbury como deslumbrantes porta-estandartes do liberalismo. Esta é a versão de Woolf que ‘venceu’” [Claire Dederer]

Lolita: Nabokov era um monstro?

Ler o livro é envolver-se com o monstruoso. E certamente o homem que escreveu o livro deve ser um monstro. Mas Nabokov era um monstro? Ele é mais lembrado como o autor de um retrato de monstro. Humbert Humbert, o estuprador de crianças, é retratado de forma tão perfeita e completa que se confunde com seu autor: somente um monstro poderia conhecer um monstro tão bem. Certamente Lolita deve ser uma espécie de espelho de seu autor (...) Ele desdenhava a abordagem biográfica da vida de um artista em favor do que está no livro: “A melhor parte da biografia de um escritor não é o registro de suas aventuras, mas a história de seu estilo”. Mas por que Nabokov passou todo esse tempo com Humbert? É um erro fazer essa pergunta em busca de uma resposta biográfica. Em outras palavras, precisamos fazer a pergunta não sobre Nabokov como homem, mas sobre Nabokov como autor. A única resposta é a resposta estética.

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