Sete meses de silêncio. A casa de esquina na Rua dos Chanés de Moema, em São Paulo, inspirada na “cultura dos três povos” de New Orleans, consagrada como uma das principais passagens do jazz e do blues no País, fez uma das pausas mais incômodas na noite de São Paulo. Aberta há 27 anos com um show de BB King, que faria outras onze apresentações naquele palco e deixaria sua guitarra como um símbolo na entrada, a mesma casa que recebeu Ray Charles três vezes, Nina Simone duas, Wynton Marsalis outras duas e mais Cesar Camargo Mariano, Hermeto Pascoal, Ney Matogrosso e outros mais de sete mil nomes faz, nesta quinta (15), sua reabertura.
Edgard Radesca, o dono, tem cuidado dos detalhes pessoalmente, e mesmo sem patrocínio, para aquilo que deve ser um desafio maior do que suportar os humores e as manias de Nina Simone. O show de hoje ajuda: será do guitarrista Nuno Mindelis, um tributo aos 95 anos de BB King, a idade que ele teria feito dia 16 de setembro se não tivesse partido em 2015, com participação do também grande guitarrista Tuco Marcondes.
A experiência de retomada do setor cultural, autorizada há duas semanas com uma série de protocolos a serem respeitados, será um teste para todos: empresários, músicos, recepcionistas, garçons, manobristas e plateia, todos devendo colocar em prática o que têm treinado nos últimos sete meses de silêncio.
No tempo em que esteve fechado, o Bourbon Street passou por uma reforma em sua estrutura para contar com mais ventilação. Ganhou janelas abertas e um espaço novo, o cativante Jazz Café, para até 48 pessoas, com música ao vivo feita por pequenas formações no lado oposto à área principal. É ali que chega o ar livre, pela varanda, e seu horário alternativo de abertura é às 17h nas quintas e sextas e das 11h às 18h nos finais de semana para almoços e cafés.
Os shows no salão principal, já seguindo as normas da Prefeitura, começam às 20h para que às 22h a casa esteja fechada. Os garçons levam as contas até os clientes, máscaras são usadas para a chegada aos lugares e idas ao banheiro e uma nova configuração, aprovada depois de um teste de Radesca com outras quatro provas, deixa mesas distantes em dois metros umas das outras. Os novos costumes preveem que a plateia chegue um pouco mais cedo para que a temperatura seja aferida na entrada e tudo aconteça com calma e distanciamento. A plateia estará reduzida em 40% de sua capacidade.
Uma espécie de teste de um novo comportamento dos clientes foi feito pela casa na tarde de sábado, quando houve a abertura do Jazz Café. “As pessoas já chegam treinadas, elas estão se comportando assim há sete meses. Muitos dos protocolos já estão incorporados”, diz Radesca. Nuno Mindelis, a atração do palco, estará com sua banda completa também seguindo as orientações dos novos tempos. Não pode mais receber fãs em camarins nem abraçar as pessoas depois do show, uma das cautelas mais difíceis, ele diz. “Estou muito acostumado a falar com o público depois do show, isso vai ter de ser diferente.”
A cuidadosa volta do Bourbon contou com uma operação de força familiar. Além de Herbert Lucas seguir com a retomada da programação e Sérgio Motta, o técnico de som, trabalhar como engenheiro da obra, a decoração do Jazz Café ficou sob responsabilidade da designer Celia Radesca, mulher do empresário, os cuidados de TI com o filho Bruno e o logotipo do espaço feito pela filha Helena Radesca.
O início da pandemia não foi menos dramático do que em outros endereços. No pior dia de seus 27 anos de trabalho, Radesca chamou sua equipe para apresentar o único plano de salvação possível naquele momento: a demissão. Só ela poderia oferecer a cada um dos seus funcionários, incluindo gente que colocou tijolos para erguer a casa, alguma segurança financeira ao menos por um tempo, garantida por aviso prévio, fundo de garantia e seguro-desemprego. Os funcionários o abraçaram, choraram juntos e partiram. Agora, começam a ser recontratados aos poucos.
Assim que a casa reabrir, na noite de quinta, começa uma segunda travessia. Com um faturamento menor, os tempos são de cuidados e de reconquista de um público ainda com medo.
A cautela da boemia
A boemia está dividida. Enquanto algumas casas anunciam seus retornos, seguindo as limitações de horário e capacidade impostas pelo governo, outras preferem manter as portas fechadas como cautela, até que os números de contaminação da Covid-19 cheguem a níveis mais seguros ou, no melhor dos cenários, a população comece a ser vacinada.
O Bar do Alemão, um dos endereços mais procurados pelos amantes do samba de velha guarda, casa comandada por anos por Eduardo Gudin e que já recebeu em suas mesas Adoniran Barbosa, Paulinho da Viola, Paullo Vanzolini e Paulo Cesar Pinheiro, não pretende retomar as rodas nem reabrir as portas vistas fechadas há sete meses por quem passa pela Avenida Antártica. Durante todo o tempo de quarentena, ela sobreviveu graças à raça da atual responsável Livia Mannini e seus cozinheiros Guilherme Oliveira e Heleno da Silva.
Juntos, eles mantiveram as caldeiras em fogo alto para compensar a falta de atividades noturnas com a entrega de almoço, mas sofreram com as “sumidas” inexplicáveis da casa do aplicativo Ifood. Sem entender porque seu endereço não aparecia nas buscas, tentaram informações mas não conseguiram. Investiram, então, em um serviço de entrega própria e, agora, vão reabrir o salão apenas para o almoço, um serviço feito para apenas três mesas, das 11h às 16h, de terça a sexta, com capacidade reduzida. “É isso, ou não chegaremos até novembro”, diz Lívia. O delivery segue, de terça a domingo, a partir das 11h. “Ainda não é o momento de retomarmos as atividades noturnas”, diz. “Nosso bar é pequenininho e o samba não permite isolamento social.”
Os bares Filial e Genésio, dois dos endereços mais clássicos da noite, dos tempos da boemia humanizada de São Paulo, também seguem sem prazo para retornar, apesar de tecnicamente poderem fazer isso. Na verdade, Helton Altman, um dos proprietários, negocia nesse momento a venda das duas casas para uma poderosa marca de bebidas alcoólicas. Aos que o conhecem, sua possível saída da noite leva um dos maiores anfitriões de bares que São Paulo já teve, amante de música brasileira, conhecedor dos artistas e incansável agregador de pessoas. “A coisa que mais fiz nesses anos todos foi apresentar pessoas a outras pessoas.” As novas condições permitidas para a reabertura, diz Helton, não são para seus bares. “Como fecharia às 22h? Meu público não chega cedo.”
Ele diz que não vê uma nova boemia surgindo em substituição à sua geração. “Como criar uma boemia nesses dias? Impossível se tocar, é preciso manter o distanciamento, fechar a casa às 22h.” Dependendo da negociação com os possíveis novos proprietários, Helton poderia se manter envolvido com a programação musical, o que boa parte da classe artística torce para acontecer. De fato, as rodas que ele conseguiu atrair de forma espontânea desde 2018 são as melhores que um endereço que nunca cobrou ingresso para entrar poderiam ter: o baixista Arismar do Espírito Santo, a cantora Karine Telles, o bandolinista Fábio Peron, o pianista Salomão Soares, o violonista Paulo Bellinati, a cantora Patricia Bastos, o cantor Renato Braz. Um lugar que a cidade não vai produzir nem uma década.
De outras proporções, o Blue Note anuncia sua retomada. Luis Calainho, um dos sócios do clube de jazz mais novo da capital, aberto em 2018, anuncia sua programação. “Estamos totalmente preparados para a reabertura no dia 5 de novembro”, diz Calainho. Ele conta que a volta, feita mesmo que em meio a um momento tão difícil, fez com que a casa tivesse “a maior prioridade na segurança do público”. “Estamos adotando todas as medidas para proteger nossos espectadores, além de oferecer música de altíssima qualidade.” Ele afirma que vai trabalhar com 60% de sua capacidade e adotar o modelo “figital”, que permite assistir aos shows ao vivo, presencialmente e digitalmente. A área externa, ele conta, também foi repaginada.