A vida de Johnny Cash foi uma música country repleta de amores e perdas, paixão e desamor – dor, solidão, culpa, fé, melodrama e luta pela redenção. A infância e juventude difíceis, as lutas turbulentas com o vício, a tumultuada vida familiar produziram nele a empatia por todos que tiveram experiências difíceis ou conheceram as asperezas da vida. As letras simples e corajosas, o canto brotado das profundezas da alma transcendiam os gêneros musicais e deram voz à vivência do americano comum em meio às adversidades.
A nova biografia escrita por Robert Hilburn, Johnny Cash: The Life (ed. Little, Brown and Co., US$ 32), nos oferece um retrato completo e cuidadoso do Homem de Preto e uma profunda apreciação de sua arte.
Como outros biógrafos antes dele, Hilburn faz remontar o sentimento de escuridão e de perda na música de Cash à morte do irmão mais velho, Jack (num acidente com uma serra na escola), e à perversa insistência do pai em culpá-lo. Hilburn diz que Cash mitificou a América – suas estradas de ferro, rodovias, fábricas, plantações, prisões – e suas canções testemunhavam a labuta diária dos “pobres e oprimidos”, “doentes e solitários”. Segundo o autor, Cash frequentemente admitiu “nunca ter deixado que os fatos interferissem num bom enredo”, e tenta separar o mito da verdade histórica.
Principal crítico musical e editor de música pop do Los Angeles Times por mais de 30 anos, Hilburn escreve com grande vigor sobre Cash – sua contribuição para a mudança do cenário do country, a evolução de cada composição e as influências ecléticas sobre sua obra, o que permitiu a fusão da intimidade com a narrativa de Jimmie Rodgers ao seu amor pelo gospel, pelo blues e pela música folk tradicional.
Embora o livro emperre um pouco no meio do caminho – quando o autor faz detalhados relatos dos episódios em que o canto abusava de drogas, da destruição de quartos de hotel e de suas experiências de quase morte – Hilburn faz uma análise magistral da música do cantor.
O livro consegue transmitir uma percepção visceral das extenuantes exigências da vida na estrada, com a frequente necessidade de dirigir centenas de quilômetros à noite de uma cidade a outra para dar shows, intensificando a dependência das anfetaminas. (Cash também as consumia para combater o stress e a depressão. A certa altura, chegou a tomar 20 comprimidos por dia.)
Assim como Graham Greene dividiu sua obra em ficção séria e o que chamou de "divertimentos”, Cash dividiu suas música, diz Hilburn, em canções escritas segundo a tradição pessoal de Jimmie Rodgers, como Hey, Porter, e Folsom Prison Blues, e outras que considerou incursões comerciais, como You’re Gonna Cry, Cry, Cry, e Wide Open Road. Nos anos 70, a obra de Cash foi se tornando cada vez mais genérica à medida que ele se transformava num intérprete mais tradicional, mais próximo da família; sua indagação íntima passou a ser: “Será que as pessoas gostariam de ouvir isto?” E “a mensagem de sua música” começou a se sobrepor à qualidade.
O renascimento de Cash como artista nos anos 90 ocorreu em grande parte graças à sua colaboração com um dos fundadores da gravadora Def Jam, de títulos hip-hop, o produtor Rick Rubin, o qual traria Cash de volta para a música dura, não sentimental, que o tornara famoso décadas antes.
“Em parte, o gênio de Rubin”, afirma Hilburn, “está em não retratar simplesmente Cash como um rebelde. Ele quis ir além da sua imagem de super-herói, captando seu lado humano – a luta, o sofrimento e a coragem. Cash perseverou, apesar da cirurgia no coração, dos problemas neurológicos, de um maxilar quebrado e da redução da visão, e continuou gravando após a morte de sua amada June, em maio de 2003. Morreu quatro meses mais tarde; dizem que, na época, ele tomava cerca de 30 medicamentos por dia.
Seu filho, John Carter, afirmou posteriormente: “Acredito que o que as pessoas costumam falar do meu pai é o fato de ele gostar de expor o que mais o atormentava, a escuridão mais devastadora. Todos os momentos de escuridão fizeram com que ele enxergasse melhor a luz".