Bruce Springsteen é um mistério que nem sua autobiografia dá conta de explicar. Ele escreve sobre si com boa dose de sinceridade, mas nem sempre abre o jogo quando se refere aos músicos e amigos que seguem a seu lado. Springsteen anda no terreno seguro, vai até onde sua ética parece permitir e, quando necessário, é impiedoso consigo mesmo, revelando um lado centralizador e egocêntrico. Mas o enigma Springsteen nem passa por essas idiossincrasias. O roqueiro de Freehold, New Jersey, cresceu e esculpiu um formato de rock and roll grandiloquente e heroico mesmo quando evoca seu folk mais remoto. Ao fazer shows intermináveis – é dele o recorde de apresentação mais longa da história, 4 horas e 6 minutos no Estádio Olímpico de Helsinque, na Finlândia, em julho de 2012 – Bruce cria uma identidade espelhada no norte-americano classe média batalhador. Com as mangas arregaçadas e o suor encharcando as costas da camisa, foi adotado por seu país como um ídolo incontestável, vendendo até hoje mais de 120 milhões de álbuns.
Ao mesmo tempo em que sua consagração é solidificada, Springsteen não se trata de um agente influenciador. Ou tão influenciador quanto os heróis que o antecederam. Não há uma escola Springsteen de rock and roll no mundo nem bandas que declaram serem influenciadas por ele. O excesso de identificação com a bandeira de seu país pode ser um ganho e uma perda na mesma intensidade. Bruce Springsteen não fala sobre isso em seu livro de memórias Born to Run. Sem grandes reflexões de contexto, ele olha o mundo de dentro para fora quando repassa momentos importantes de sua vida, desde a infância cheia de cenas traumáticas protagonizadas pelo pai alcoólatra até 78 capítulos depois, reconhecendo ter escondido o ouro das histórias mais indiscretas. “Não lhes contei tudo sobre mim. A discrição e os sentimentos que nutro por outras pessoas não me permitem. Porém, num projeto desses, o escritor fez uma promessa: mostrar ao leitor o que está na sua cabeça. Tentei cumpri-la nessas páginas.”
Assim que o trem deu sinais de que engatava seus vagões para seguir em frente, Bruce tomou uma decisão custosa. Seria ele o centro não só no palco, mas também fora dele. E é assim até hoje. A imagem de amigos eternos e indestrutíveis pode ser real e sincera naquele instante, mas nada parece impedir que ela se quebre na noite seguinte. É assim que o roqueiro, não por acaso conhecido como boss (chefão), justifica sua atitude. “Com raras exceções, a democracia nas bandas de rock funciona geralmente como uma bomba-relógio. São inúmeros os exemplos, a começar logo pelos Beatles.”
A redenção está na sequência de seu pensamento. Bruce nunca quis dividir os holofotes com seus músicos, mas sabia que precisava que eles fossem mais do que uma banda de apoio. Não queria os melhores músicos, queria apenas os amigos. “Queremos os músicos que se unam da forma certa para fazerem algo de único. Os Beatles, os Stones, os Sex Pistols, as New York Dolls, o Clash e o U2 são todos grupos cujas limitações iniciais se tornaram a semente para um estilo espetacular e uma música sem fronteiras.”
Um capítulo inteiro é dedicado a Clarence Clemons, seu saxofonista gigante, morto em 2011. Ele reconhece que Clemons sentia “dificuldades em viver no mundo predominantemente branco” de sua banda. O racismo era algo sério, que rondava uma banda de rock nos Estados Unidos dos anos 60 e 70. “No início dos anos 1970, algumas escolas não queriam que levássemos nossos cantores negros. Depois, na estrada com a E Street Band, volta e meia o racismo surgia das trevas”, escreve.
Dez anos fora dos palcos e longe de músicos como Clemons, os guitarristas Steve Van Zandt e Nils Lofgren e o baterista Max Weinberg bateram na alma de Bruce. E o que o fez voltar talvez tenha rendido a cena mais cinematográfica de suas memórias. Ele estava na casa de seus pais quando leu em um jornal que haveria um show na Arena de San Jose, em São Francisco, com Joni Mitchell, Bob Dylan e Van Morrison. Ao lado da mãe, testemunhou a excelência com a qual se apresentavam, o poder de comover as plateias e o grau de diversão que atingiam, e sorriu pensativo. Olhou então para a mãe e viu em seu rosto um sorriso que ficou em sua memória. “Eu posso fazer isso. Posso ser a causa dessa felicidade”, pensou. Foi então para casa e telefonou para os amigos da E Street Band.
BORN TO RUN –AUTOBIOGRAFIA Autor: Bruce Springsteen Tradução: João Reis e Maria do Carmo Figueira Editora: Leya (496 págs., R$ 69,90)