Pode sertanejo no São João? Entenda debate sobre a perda de espaço do forró na festa


Entenda como novos embates irritaram defensores do forró no evento que traz imaginário de autenticidade nordestina. Até Luiz Gonzaga já foi acusado de ‘matar tradição’ nos anos 50

Por Juliana Domingos de Lima
Atualização:

A retomada dos festejos de São João nas cidades nordestinas com força total em 2023 criou atritos que reacenderam um debate antigo: a perda de espaço do forró, ritmo que por décadas dominou a festa, para artistas de outros gêneros, como sertanejo e axé.

No início de junho, o cantor, compositor e sanfoneiro Flávio José, representante do tradicional forró pé-de-serra nordestino, protestou no palco do São João de Campina Grande (PB) por ter seu tempo de show reduzido. “Eu não tenho nenhum show para sair daqui correndo pra fazer. Não foi ideia minha. Infelizmente, são essas coisas que os artistas da música nordestina sofrem”, disse.

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A atração seguinte, o sertanejo Gusttavo Lima, se apresentou por 2h30. A organização do evento atribuiu a mudança a um erro de cronograma e negou que um tenha sido reduzido para dar prioridade ao outro.

A queixa em relação à desvalorização e, em alguns casos, ausência de artistas regionais e locais de forró tem sido aplicada às principais festas, que duram mais de um mês na região, e levado a reivindicações de regulamentação das atrações.

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No São João de Caruaru (PE), conhecida como “capital do forró”, artistas como Ana Castela (sertaneja), Bell Marques (axé) e Aline Barros (gospel) também fizeram parte da programação do palco principal neste ano. Em 19 de junho, uma audiência pública foi realizada para discutir as condições de trabalho dos artistas locais que se apresentaram na festa e o processo de seleção das atrações.

Astrid x Prioli

Dos palcos do São João, passando pelas redes sociais, a fagulha foi parar no programa Saia Justa, do GNT, onde Astrid Fontenelle e Gabriela Prioli assumiram lados opostos na discussão. “Vou para o São João para dançar um forró, comer amendoim cozido. Cheguei lá e era uma festa de axé. Não dá!”, disse Astrid. Ela afirmou ainda que sua opinião “é a de muita gente que quer manter a tradição e não perder essa parte da história nordestina”.

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Prioli relativizou, questionando o que é o São João tradicional e qual o marco temporal usado para defini-lo: “Não dá para você, parte de um juízo subjetivo seu. O que você estava esperando era chegar lá e encontrar outra coisa”.

Entre a preservação da autenticidade do São João e as preferências do grande público, os interesses comerciais e políticos de patrocinadores e prefeituras, parece não haver consenso: a celebração do São João no Nordeste deve contar predominante ou exclusivamente com artistas de forró? As mudanças na festa ameaçam a tradição e a sobrevivência do gênero?

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E o que há de novo em 2023? Com um mercado sertanejo cada vez mais forte, o forró em transformação, cheio de novos e antigos ídolos, e as prefeituras atrás do cartaz e até do impulso eleitoral para 2024 com grandes festas, as jornadas de junho pelo Nordeste voltaram a botar o debate na rua.

Olha pro céu, meu amor

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Uma grande parte do que se defende como tradição musical do São João está ligada a uma figura fundamental: Luiz Gonzaga. Até meados da década de 1940 e início da de 1950, auge do sucesso de Gonzaga, os festejos juninos não tinham uma trilha sonora tão definida, segundo explica Elder Alves, sociólogo, professor e pesquisador da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

A partir da metade do século passado, porém, as composições do Rei do Baião passaram a ser fortemente associadas à cultura nordestina e ao imaginário junino.

Muitos dos artistas hoje identificados à tradição do São João – dos mais conhecidos nacionalmente, como Elba Ramalho e Alceu Valença, aos que têm fama regional, como Joana Angélica, Alcymar Monteiro e Santanna, o Cantador – são herdeiros do legado de Gonzagão. Alguns deles participaram, em 2017, da campanha #DevolvamMeuSãoJoão, contra sertanejos na festa.

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Mas nem o próprio Gonzagão, hoje visto como símbolo de autenticidade musical no São João, escapou da acusação de matar a tradição ou de críticas ao caráter comercial de sua música. Depois de lançar Noites Brasileiras em 1954, uma marcha junina de enorme sucesso, o autor foi alvo de uma “alfinetada” na Revista da Música Popular, publicação especializada de prestígio da época:

“Os nossos compositores, sempre fugindo à legítima fonte de inspiração folclórica, criam melodias de vida efêmera que se substituem de ano para ano”, escreveu o jornalista Jarbas Melo em 1955. “Matam-se as tradições juninas, tão intrinsecamente ligadas ao nosso passado e que bem podiam continuar presentes, que bem podiam manter-se, a troco de um mero interesse mercantil”.

Jarbas Melo, na Revista de Música Popular, em 1955, sobre Luiz Gonzaga

Melo se referia ao desaparecimento das cantigas e dos gêneros rurais nordestinos, como os cocos e as emboladas, que até o início do século 20 embalavam o São João, e estavam sendo substituídos pelas melodias que se popularizavam através do rádio. O trecho está registrado no livro “A sociologia de um gênero: o baião”, do professor da UFAL Elder Alves.

“Essa polêmica é sempre atualizada, nunca deixou de existir. Ela é de ordem estética, artística e cultural e reverbera em aspectos políticos e ideológicos”, diz o sociólogo.

Antes do sertanejo, foco principal da disputa atual, artistas de axé e bandas de forró eletrônico (como Magníficos e Aviões do Forró) também tiveram sua contratação para o São João questionada nas décadas passadas.

Luiz Gonzaga Foto: Marcos Arcoverde / Estadão

O São João de hoje

A discussão sobre quais artistas devem ter espaço garantido na programação do São João também tem relação com o formato dessas festas, seus aspectos econômicos e até eleitorais.

A centralização do São João em eventos promovidos pelas prefeituras, que tem força hoje em municípios de Pernambuco, Paraíba, Bahia e Ceará, começou na década de 1980. Até então, as festas aconteciam principalmente nos bairros, em clubes e casas de família.

A festa de Campina Grande, por exemplo, apelidada de “maior São João do Mundo”, completa 40 anos em 2023 e foi criada pelo então prefeito Ronaldo Cunha Lima. Lima construiu o Parque do Povo, onde a celebração acontece até hoje, especialmente para o São João.

Nesse modelo, as festas foram ganhando uma grande estrutura, atrações de fora e patrocinadores privados. Elas cresceram ainda mais nos últimos 20 anos, segundo Alves. E, mais recentemente, têm passado por um processo de “camarotização”, com áreas vip, ingressos pagos e cachês de centenas de milhares de reais, assim como acontece com o Carnaval.

“Os prefeitos buscam se promover e atrair olhares para suas festas. Para isso, tentam negociar com o gosto musical popular e predomina a escolha de agradar, do artista em ascensão, daquilo se traduz em popularidade e depois em votos”, diz o professor da Ufal, lembrando que não falta muito para as eleições municipais de 2024.

Esse é um dos fatores que explicam por que o sertanejo, estilo musical mais consumido atualmente na faixa etária de 15 a 29 anos, segundo o Datafolha, ganhou espaço no São João. Também há o interesse comercial das marcas que patrocinam as festas e o poder de negociação dos artistas e seus empresários.

Para Junior Vidal, coordenador artístico e de marketing da plataforma de streaming nordestina Sua Música, o problema não é incluir artistas que não têm ligação com a tradição do São João, mas deixar de fora aqueles que deveriam ser “prata da casa”.

“O que é grave é haver uma desvalorização ou ausência de artistas que fazem parte desse contexto da festa. Na minha opinião, tem atrações que não podem ficar de fora”, diz, citando Flávio José, Alcymar Monteiro e Elba Ramalho.

Vidal mora em Maracanaú (CE), cidade que sedia o maior São João do Ceará e que teve o DJ Alok como uma das atrações em 2023.

O São João é uma festa para o povo. Tudo bem ter o Alok, muitas pessoas não teriam a oportunidade de ver um show dele [em outra situação]. Mas se tem Alok e não tem esses outros, fica descaracterizado

Junior Vidal, diretor do site de streaming nordestino Sua Música

Lara Amélia, artista de forró e filha do cantor Flávio José, considera as críticas ao espaço tomado por artistas de outros gêneros “uma defesa necessária por parte dos nordestinos”.

Ela vê os empresários e patrocinadores das festas como os maiores agentes da desvalorização do forró. “Ela não parte do povo, porque diante dessa polêmica toda, a gente vê o quanto o povo saiu em defesa da nossa cultura. Nessas festas existe muita coisa por trás, muito interesse próprio, além do que o próprio público pode ver”, diz.

Regulamentação faz sentido?

No dia 20 de junho, a Câmara Federal aprovou urgência para o PL 3083/2023, projeto da Lei Luiz Gonzaga ou “PL do Forró”, que determina o repasse de 80% dos recursos públicos destinados às festas juninas para artistas de forró e ligados à cultura regional. Com isso, o projeto pode ser votado diretamente em plenário, sem passar pelas comissões.

Autor do projeto, o deputado Fernando Rodolfo (PL) trabalhou com uma comitiva de músicos como Alcymar Monteiro, Targino Gondim e Armandinho do Acordeon na articulação pela matéria. Eles foram recebidos pelo presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) em sua residência oficial.

Para além da lei, o Fórum Nacional do Forró de Raiz tem debatido com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) um plano voltado à preservação do forró. Em 2021, o órgão reconheceu as matrizes tradicionais do forró (que incluem vários ritmos, como xote, xaxado e pé-de-serra) como patrimônio imaterial nacional. Autoridades do Ministério da Cultura receberam demandas do fórum em uma reunião no fim de março.

Lara Amélia defende a aprovação da Lei Luiz Gonzaga, mas não vê o forró ameaçado de desaparecimento. “Acredito que não há um risco tão eminente como muitos acreditam, porque ainda existem pessoas conscientes da importância de se preservar a história e costumes, assim como também tem artistas novos chegando que estão dispostos a levantar essa bandeira”.

Mas a eficácia de uma lei como essa levanta dúvidas. Na Bahia, a “Lei da Zabumba” foi aprovada em 2015 para assegurar 60% dos recursos das festas aos artistas ligados à cultura baiana e regional, mas nunca foi cumprida.

Para o sociólogo e professor da Ufal Elder Alves, mesmo se cumprida a lei pode gerar uma reação negativa em uma parte do público do São João, que deseja ver artistas mais “pop” na festa.

De outro lado, ele relembra o impacto positivo das políticas culturais federais do início dos anos 2000 para o forró e defende esse apoio. “O governo federal pode sim fazer muita coisa, no sentido de repassar recursos para que prefeituras incentivem a formação de artistas locais, a transmissão de saberes e assegurem espaço na grade das festas. É perfeitamente possível e desejável que se faça isso”

No streaming nordestino Sua Música, segundo o coordenador artístico e de marketing Junior Vidal, “o forró nunca sai de moda” – principalmente no período que antecede o São João. Nessa época, uma enxurrada de álbuns novos são colocados na plataforma para que os artistas consigam vender seus shows.

Vários deles conseguem viver de música e fazem sucesso com o público regional ou nacional- caso da pisadinha, o forró de teclado que renovou o estilo nos últimos anos e gerou ídolos como João Gomes, fã de rap e de Gonzagão.

Show do cantor João Gomes no Nômade Festival 2023 Foto: Rafael Strabelli

A retomada dos festejos de São João nas cidades nordestinas com força total em 2023 criou atritos que reacenderam um debate antigo: a perda de espaço do forró, ritmo que por décadas dominou a festa, para artistas de outros gêneros, como sertanejo e axé.

No início de junho, o cantor, compositor e sanfoneiro Flávio José, representante do tradicional forró pé-de-serra nordestino, protestou no palco do São João de Campina Grande (PB) por ter seu tempo de show reduzido. “Eu não tenho nenhum show para sair daqui correndo pra fazer. Não foi ideia minha. Infelizmente, são essas coisas que os artistas da música nordestina sofrem”, disse.

A atração seguinte, o sertanejo Gusttavo Lima, se apresentou por 2h30. A organização do evento atribuiu a mudança a um erro de cronograma e negou que um tenha sido reduzido para dar prioridade ao outro.

A queixa em relação à desvalorização e, em alguns casos, ausência de artistas regionais e locais de forró tem sido aplicada às principais festas, que duram mais de um mês na região, e levado a reivindicações de regulamentação das atrações.

No São João de Caruaru (PE), conhecida como “capital do forró”, artistas como Ana Castela (sertaneja), Bell Marques (axé) e Aline Barros (gospel) também fizeram parte da programação do palco principal neste ano. Em 19 de junho, uma audiência pública foi realizada para discutir as condições de trabalho dos artistas locais que se apresentaram na festa e o processo de seleção das atrações.

Astrid x Prioli

Dos palcos do São João, passando pelas redes sociais, a fagulha foi parar no programa Saia Justa, do GNT, onde Astrid Fontenelle e Gabriela Prioli assumiram lados opostos na discussão. “Vou para o São João para dançar um forró, comer amendoim cozido. Cheguei lá e era uma festa de axé. Não dá!”, disse Astrid. Ela afirmou ainda que sua opinião “é a de muita gente que quer manter a tradição e não perder essa parte da história nordestina”.

Prioli relativizou, questionando o que é o São João tradicional e qual o marco temporal usado para defini-lo: “Não dá para você, parte de um juízo subjetivo seu. O que você estava esperando era chegar lá e encontrar outra coisa”.

Entre a preservação da autenticidade do São João e as preferências do grande público, os interesses comerciais e políticos de patrocinadores e prefeituras, parece não haver consenso: a celebração do São João no Nordeste deve contar predominante ou exclusivamente com artistas de forró? As mudanças na festa ameaçam a tradição e a sobrevivência do gênero?

E o que há de novo em 2023? Com um mercado sertanejo cada vez mais forte, o forró em transformação, cheio de novos e antigos ídolos, e as prefeituras atrás do cartaz e até do impulso eleitoral para 2024 com grandes festas, as jornadas de junho pelo Nordeste voltaram a botar o debate na rua.

Olha pro céu, meu amor

Uma grande parte do que se defende como tradição musical do São João está ligada a uma figura fundamental: Luiz Gonzaga. Até meados da década de 1940 e início da de 1950, auge do sucesso de Gonzaga, os festejos juninos não tinham uma trilha sonora tão definida, segundo explica Elder Alves, sociólogo, professor e pesquisador da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

A partir da metade do século passado, porém, as composições do Rei do Baião passaram a ser fortemente associadas à cultura nordestina e ao imaginário junino.

Muitos dos artistas hoje identificados à tradição do São João – dos mais conhecidos nacionalmente, como Elba Ramalho e Alceu Valença, aos que têm fama regional, como Joana Angélica, Alcymar Monteiro e Santanna, o Cantador – são herdeiros do legado de Gonzagão. Alguns deles participaram, em 2017, da campanha #DevolvamMeuSãoJoão, contra sertanejos na festa.

Mas nem o próprio Gonzagão, hoje visto como símbolo de autenticidade musical no São João, escapou da acusação de matar a tradição ou de críticas ao caráter comercial de sua música. Depois de lançar Noites Brasileiras em 1954, uma marcha junina de enorme sucesso, o autor foi alvo de uma “alfinetada” na Revista da Música Popular, publicação especializada de prestígio da época:

“Os nossos compositores, sempre fugindo à legítima fonte de inspiração folclórica, criam melodias de vida efêmera que se substituem de ano para ano”, escreveu o jornalista Jarbas Melo em 1955. “Matam-se as tradições juninas, tão intrinsecamente ligadas ao nosso passado e que bem podiam continuar presentes, que bem podiam manter-se, a troco de um mero interesse mercantil”.

Jarbas Melo, na Revista de Música Popular, em 1955, sobre Luiz Gonzaga

Melo se referia ao desaparecimento das cantigas e dos gêneros rurais nordestinos, como os cocos e as emboladas, que até o início do século 20 embalavam o São João, e estavam sendo substituídos pelas melodias que se popularizavam através do rádio. O trecho está registrado no livro “A sociologia de um gênero: o baião”, do professor da UFAL Elder Alves.

“Essa polêmica é sempre atualizada, nunca deixou de existir. Ela é de ordem estética, artística e cultural e reverbera em aspectos políticos e ideológicos”, diz o sociólogo.

Antes do sertanejo, foco principal da disputa atual, artistas de axé e bandas de forró eletrônico (como Magníficos e Aviões do Forró) também tiveram sua contratação para o São João questionada nas décadas passadas.

Luiz Gonzaga Foto: Marcos Arcoverde / Estadão

O São João de hoje

A discussão sobre quais artistas devem ter espaço garantido na programação do São João também tem relação com o formato dessas festas, seus aspectos econômicos e até eleitorais.

A centralização do São João em eventos promovidos pelas prefeituras, que tem força hoje em municípios de Pernambuco, Paraíba, Bahia e Ceará, começou na década de 1980. Até então, as festas aconteciam principalmente nos bairros, em clubes e casas de família.

A festa de Campina Grande, por exemplo, apelidada de “maior São João do Mundo”, completa 40 anos em 2023 e foi criada pelo então prefeito Ronaldo Cunha Lima. Lima construiu o Parque do Povo, onde a celebração acontece até hoje, especialmente para o São João.

Nesse modelo, as festas foram ganhando uma grande estrutura, atrações de fora e patrocinadores privados. Elas cresceram ainda mais nos últimos 20 anos, segundo Alves. E, mais recentemente, têm passado por um processo de “camarotização”, com áreas vip, ingressos pagos e cachês de centenas de milhares de reais, assim como acontece com o Carnaval.

“Os prefeitos buscam se promover e atrair olhares para suas festas. Para isso, tentam negociar com o gosto musical popular e predomina a escolha de agradar, do artista em ascensão, daquilo se traduz em popularidade e depois em votos”, diz o professor da Ufal, lembrando que não falta muito para as eleições municipais de 2024.

Esse é um dos fatores que explicam por que o sertanejo, estilo musical mais consumido atualmente na faixa etária de 15 a 29 anos, segundo o Datafolha, ganhou espaço no São João. Também há o interesse comercial das marcas que patrocinam as festas e o poder de negociação dos artistas e seus empresários.

Para Junior Vidal, coordenador artístico e de marketing da plataforma de streaming nordestina Sua Música, o problema não é incluir artistas que não têm ligação com a tradição do São João, mas deixar de fora aqueles que deveriam ser “prata da casa”.

“O que é grave é haver uma desvalorização ou ausência de artistas que fazem parte desse contexto da festa. Na minha opinião, tem atrações que não podem ficar de fora”, diz, citando Flávio José, Alcymar Monteiro e Elba Ramalho.

Vidal mora em Maracanaú (CE), cidade que sedia o maior São João do Ceará e que teve o DJ Alok como uma das atrações em 2023.

O São João é uma festa para o povo. Tudo bem ter o Alok, muitas pessoas não teriam a oportunidade de ver um show dele [em outra situação]. Mas se tem Alok e não tem esses outros, fica descaracterizado

Junior Vidal, diretor do site de streaming nordestino Sua Música

Lara Amélia, artista de forró e filha do cantor Flávio José, considera as críticas ao espaço tomado por artistas de outros gêneros “uma defesa necessária por parte dos nordestinos”.

Ela vê os empresários e patrocinadores das festas como os maiores agentes da desvalorização do forró. “Ela não parte do povo, porque diante dessa polêmica toda, a gente vê o quanto o povo saiu em defesa da nossa cultura. Nessas festas existe muita coisa por trás, muito interesse próprio, além do que o próprio público pode ver”, diz.

Regulamentação faz sentido?

No dia 20 de junho, a Câmara Federal aprovou urgência para o PL 3083/2023, projeto da Lei Luiz Gonzaga ou “PL do Forró”, que determina o repasse de 80% dos recursos públicos destinados às festas juninas para artistas de forró e ligados à cultura regional. Com isso, o projeto pode ser votado diretamente em plenário, sem passar pelas comissões.

Autor do projeto, o deputado Fernando Rodolfo (PL) trabalhou com uma comitiva de músicos como Alcymar Monteiro, Targino Gondim e Armandinho do Acordeon na articulação pela matéria. Eles foram recebidos pelo presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) em sua residência oficial.

Para além da lei, o Fórum Nacional do Forró de Raiz tem debatido com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) um plano voltado à preservação do forró. Em 2021, o órgão reconheceu as matrizes tradicionais do forró (que incluem vários ritmos, como xote, xaxado e pé-de-serra) como patrimônio imaterial nacional. Autoridades do Ministério da Cultura receberam demandas do fórum em uma reunião no fim de março.

Lara Amélia defende a aprovação da Lei Luiz Gonzaga, mas não vê o forró ameaçado de desaparecimento. “Acredito que não há um risco tão eminente como muitos acreditam, porque ainda existem pessoas conscientes da importância de se preservar a história e costumes, assim como também tem artistas novos chegando que estão dispostos a levantar essa bandeira”.

Mas a eficácia de uma lei como essa levanta dúvidas. Na Bahia, a “Lei da Zabumba” foi aprovada em 2015 para assegurar 60% dos recursos das festas aos artistas ligados à cultura baiana e regional, mas nunca foi cumprida.

Para o sociólogo e professor da Ufal Elder Alves, mesmo se cumprida a lei pode gerar uma reação negativa em uma parte do público do São João, que deseja ver artistas mais “pop” na festa.

De outro lado, ele relembra o impacto positivo das políticas culturais federais do início dos anos 2000 para o forró e defende esse apoio. “O governo federal pode sim fazer muita coisa, no sentido de repassar recursos para que prefeituras incentivem a formação de artistas locais, a transmissão de saberes e assegurem espaço na grade das festas. É perfeitamente possível e desejável que se faça isso”

No streaming nordestino Sua Música, segundo o coordenador artístico e de marketing Junior Vidal, “o forró nunca sai de moda” – principalmente no período que antecede o São João. Nessa época, uma enxurrada de álbuns novos são colocados na plataforma para que os artistas consigam vender seus shows.

Vários deles conseguem viver de música e fazem sucesso com o público regional ou nacional- caso da pisadinha, o forró de teclado que renovou o estilo nos últimos anos e gerou ídolos como João Gomes, fã de rap e de Gonzagão.

Show do cantor João Gomes no Nômade Festival 2023 Foto: Rafael Strabelli

A retomada dos festejos de São João nas cidades nordestinas com força total em 2023 criou atritos que reacenderam um debate antigo: a perda de espaço do forró, ritmo que por décadas dominou a festa, para artistas de outros gêneros, como sertanejo e axé.

No início de junho, o cantor, compositor e sanfoneiro Flávio José, representante do tradicional forró pé-de-serra nordestino, protestou no palco do São João de Campina Grande (PB) por ter seu tempo de show reduzido. “Eu não tenho nenhum show para sair daqui correndo pra fazer. Não foi ideia minha. Infelizmente, são essas coisas que os artistas da música nordestina sofrem”, disse.

A atração seguinte, o sertanejo Gusttavo Lima, se apresentou por 2h30. A organização do evento atribuiu a mudança a um erro de cronograma e negou que um tenha sido reduzido para dar prioridade ao outro.

A queixa em relação à desvalorização e, em alguns casos, ausência de artistas regionais e locais de forró tem sido aplicada às principais festas, que duram mais de um mês na região, e levado a reivindicações de regulamentação das atrações.

No São João de Caruaru (PE), conhecida como “capital do forró”, artistas como Ana Castela (sertaneja), Bell Marques (axé) e Aline Barros (gospel) também fizeram parte da programação do palco principal neste ano. Em 19 de junho, uma audiência pública foi realizada para discutir as condições de trabalho dos artistas locais que se apresentaram na festa e o processo de seleção das atrações.

Astrid x Prioli

Dos palcos do São João, passando pelas redes sociais, a fagulha foi parar no programa Saia Justa, do GNT, onde Astrid Fontenelle e Gabriela Prioli assumiram lados opostos na discussão. “Vou para o São João para dançar um forró, comer amendoim cozido. Cheguei lá e era uma festa de axé. Não dá!”, disse Astrid. Ela afirmou ainda que sua opinião “é a de muita gente que quer manter a tradição e não perder essa parte da história nordestina”.

Prioli relativizou, questionando o que é o São João tradicional e qual o marco temporal usado para defini-lo: “Não dá para você, parte de um juízo subjetivo seu. O que você estava esperando era chegar lá e encontrar outra coisa”.

Entre a preservação da autenticidade do São João e as preferências do grande público, os interesses comerciais e políticos de patrocinadores e prefeituras, parece não haver consenso: a celebração do São João no Nordeste deve contar predominante ou exclusivamente com artistas de forró? As mudanças na festa ameaçam a tradição e a sobrevivência do gênero?

E o que há de novo em 2023? Com um mercado sertanejo cada vez mais forte, o forró em transformação, cheio de novos e antigos ídolos, e as prefeituras atrás do cartaz e até do impulso eleitoral para 2024 com grandes festas, as jornadas de junho pelo Nordeste voltaram a botar o debate na rua.

Olha pro céu, meu amor

Uma grande parte do que se defende como tradição musical do São João está ligada a uma figura fundamental: Luiz Gonzaga. Até meados da década de 1940 e início da de 1950, auge do sucesso de Gonzaga, os festejos juninos não tinham uma trilha sonora tão definida, segundo explica Elder Alves, sociólogo, professor e pesquisador da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

A partir da metade do século passado, porém, as composições do Rei do Baião passaram a ser fortemente associadas à cultura nordestina e ao imaginário junino.

Muitos dos artistas hoje identificados à tradição do São João – dos mais conhecidos nacionalmente, como Elba Ramalho e Alceu Valença, aos que têm fama regional, como Joana Angélica, Alcymar Monteiro e Santanna, o Cantador – são herdeiros do legado de Gonzagão. Alguns deles participaram, em 2017, da campanha #DevolvamMeuSãoJoão, contra sertanejos na festa.

Mas nem o próprio Gonzagão, hoje visto como símbolo de autenticidade musical no São João, escapou da acusação de matar a tradição ou de críticas ao caráter comercial de sua música. Depois de lançar Noites Brasileiras em 1954, uma marcha junina de enorme sucesso, o autor foi alvo de uma “alfinetada” na Revista da Música Popular, publicação especializada de prestígio da época:

“Os nossos compositores, sempre fugindo à legítima fonte de inspiração folclórica, criam melodias de vida efêmera que se substituem de ano para ano”, escreveu o jornalista Jarbas Melo em 1955. “Matam-se as tradições juninas, tão intrinsecamente ligadas ao nosso passado e que bem podiam continuar presentes, que bem podiam manter-se, a troco de um mero interesse mercantil”.

Jarbas Melo, na Revista de Música Popular, em 1955, sobre Luiz Gonzaga

Melo se referia ao desaparecimento das cantigas e dos gêneros rurais nordestinos, como os cocos e as emboladas, que até o início do século 20 embalavam o São João, e estavam sendo substituídos pelas melodias que se popularizavam através do rádio. O trecho está registrado no livro “A sociologia de um gênero: o baião”, do professor da UFAL Elder Alves.

“Essa polêmica é sempre atualizada, nunca deixou de existir. Ela é de ordem estética, artística e cultural e reverbera em aspectos políticos e ideológicos”, diz o sociólogo.

Antes do sertanejo, foco principal da disputa atual, artistas de axé e bandas de forró eletrônico (como Magníficos e Aviões do Forró) também tiveram sua contratação para o São João questionada nas décadas passadas.

Luiz Gonzaga Foto: Marcos Arcoverde / Estadão

O São João de hoje

A discussão sobre quais artistas devem ter espaço garantido na programação do São João também tem relação com o formato dessas festas, seus aspectos econômicos e até eleitorais.

A centralização do São João em eventos promovidos pelas prefeituras, que tem força hoje em municípios de Pernambuco, Paraíba, Bahia e Ceará, começou na década de 1980. Até então, as festas aconteciam principalmente nos bairros, em clubes e casas de família.

A festa de Campina Grande, por exemplo, apelidada de “maior São João do Mundo”, completa 40 anos em 2023 e foi criada pelo então prefeito Ronaldo Cunha Lima. Lima construiu o Parque do Povo, onde a celebração acontece até hoje, especialmente para o São João.

Nesse modelo, as festas foram ganhando uma grande estrutura, atrações de fora e patrocinadores privados. Elas cresceram ainda mais nos últimos 20 anos, segundo Alves. E, mais recentemente, têm passado por um processo de “camarotização”, com áreas vip, ingressos pagos e cachês de centenas de milhares de reais, assim como acontece com o Carnaval.

“Os prefeitos buscam se promover e atrair olhares para suas festas. Para isso, tentam negociar com o gosto musical popular e predomina a escolha de agradar, do artista em ascensão, daquilo se traduz em popularidade e depois em votos”, diz o professor da Ufal, lembrando que não falta muito para as eleições municipais de 2024.

Esse é um dos fatores que explicam por que o sertanejo, estilo musical mais consumido atualmente na faixa etária de 15 a 29 anos, segundo o Datafolha, ganhou espaço no São João. Também há o interesse comercial das marcas que patrocinam as festas e o poder de negociação dos artistas e seus empresários.

Para Junior Vidal, coordenador artístico e de marketing da plataforma de streaming nordestina Sua Música, o problema não é incluir artistas que não têm ligação com a tradição do São João, mas deixar de fora aqueles que deveriam ser “prata da casa”.

“O que é grave é haver uma desvalorização ou ausência de artistas que fazem parte desse contexto da festa. Na minha opinião, tem atrações que não podem ficar de fora”, diz, citando Flávio José, Alcymar Monteiro e Elba Ramalho.

Vidal mora em Maracanaú (CE), cidade que sedia o maior São João do Ceará e que teve o DJ Alok como uma das atrações em 2023.

O São João é uma festa para o povo. Tudo bem ter o Alok, muitas pessoas não teriam a oportunidade de ver um show dele [em outra situação]. Mas se tem Alok e não tem esses outros, fica descaracterizado

Junior Vidal, diretor do site de streaming nordestino Sua Música

Lara Amélia, artista de forró e filha do cantor Flávio José, considera as críticas ao espaço tomado por artistas de outros gêneros “uma defesa necessária por parte dos nordestinos”.

Ela vê os empresários e patrocinadores das festas como os maiores agentes da desvalorização do forró. “Ela não parte do povo, porque diante dessa polêmica toda, a gente vê o quanto o povo saiu em defesa da nossa cultura. Nessas festas existe muita coisa por trás, muito interesse próprio, além do que o próprio público pode ver”, diz.

Regulamentação faz sentido?

No dia 20 de junho, a Câmara Federal aprovou urgência para o PL 3083/2023, projeto da Lei Luiz Gonzaga ou “PL do Forró”, que determina o repasse de 80% dos recursos públicos destinados às festas juninas para artistas de forró e ligados à cultura regional. Com isso, o projeto pode ser votado diretamente em plenário, sem passar pelas comissões.

Autor do projeto, o deputado Fernando Rodolfo (PL) trabalhou com uma comitiva de músicos como Alcymar Monteiro, Targino Gondim e Armandinho do Acordeon na articulação pela matéria. Eles foram recebidos pelo presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) em sua residência oficial.

Para além da lei, o Fórum Nacional do Forró de Raiz tem debatido com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) um plano voltado à preservação do forró. Em 2021, o órgão reconheceu as matrizes tradicionais do forró (que incluem vários ritmos, como xote, xaxado e pé-de-serra) como patrimônio imaterial nacional. Autoridades do Ministério da Cultura receberam demandas do fórum em uma reunião no fim de março.

Lara Amélia defende a aprovação da Lei Luiz Gonzaga, mas não vê o forró ameaçado de desaparecimento. “Acredito que não há um risco tão eminente como muitos acreditam, porque ainda existem pessoas conscientes da importância de se preservar a história e costumes, assim como também tem artistas novos chegando que estão dispostos a levantar essa bandeira”.

Mas a eficácia de uma lei como essa levanta dúvidas. Na Bahia, a “Lei da Zabumba” foi aprovada em 2015 para assegurar 60% dos recursos das festas aos artistas ligados à cultura baiana e regional, mas nunca foi cumprida.

Para o sociólogo e professor da Ufal Elder Alves, mesmo se cumprida a lei pode gerar uma reação negativa em uma parte do público do São João, que deseja ver artistas mais “pop” na festa.

De outro lado, ele relembra o impacto positivo das políticas culturais federais do início dos anos 2000 para o forró e defende esse apoio. “O governo federal pode sim fazer muita coisa, no sentido de repassar recursos para que prefeituras incentivem a formação de artistas locais, a transmissão de saberes e assegurem espaço na grade das festas. É perfeitamente possível e desejável que se faça isso”

No streaming nordestino Sua Música, segundo o coordenador artístico e de marketing Junior Vidal, “o forró nunca sai de moda” – principalmente no período que antecede o São João. Nessa época, uma enxurrada de álbuns novos são colocados na plataforma para que os artistas consigam vender seus shows.

Vários deles conseguem viver de música e fazem sucesso com o público regional ou nacional- caso da pisadinha, o forró de teclado que renovou o estilo nos últimos anos e gerou ídolos como João Gomes, fã de rap e de Gonzagão.

Show do cantor João Gomes no Nômade Festival 2023 Foto: Rafael Strabelli

A retomada dos festejos de São João nas cidades nordestinas com força total em 2023 criou atritos que reacenderam um debate antigo: a perda de espaço do forró, ritmo que por décadas dominou a festa, para artistas de outros gêneros, como sertanejo e axé.

No início de junho, o cantor, compositor e sanfoneiro Flávio José, representante do tradicional forró pé-de-serra nordestino, protestou no palco do São João de Campina Grande (PB) por ter seu tempo de show reduzido. “Eu não tenho nenhum show para sair daqui correndo pra fazer. Não foi ideia minha. Infelizmente, são essas coisas que os artistas da música nordestina sofrem”, disse.

A atração seguinte, o sertanejo Gusttavo Lima, se apresentou por 2h30. A organização do evento atribuiu a mudança a um erro de cronograma e negou que um tenha sido reduzido para dar prioridade ao outro.

A queixa em relação à desvalorização e, em alguns casos, ausência de artistas regionais e locais de forró tem sido aplicada às principais festas, que duram mais de um mês na região, e levado a reivindicações de regulamentação das atrações.

No São João de Caruaru (PE), conhecida como “capital do forró”, artistas como Ana Castela (sertaneja), Bell Marques (axé) e Aline Barros (gospel) também fizeram parte da programação do palco principal neste ano. Em 19 de junho, uma audiência pública foi realizada para discutir as condições de trabalho dos artistas locais que se apresentaram na festa e o processo de seleção das atrações.

Astrid x Prioli

Dos palcos do São João, passando pelas redes sociais, a fagulha foi parar no programa Saia Justa, do GNT, onde Astrid Fontenelle e Gabriela Prioli assumiram lados opostos na discussão. “Vou para o São João para dançar um forró, comer amendoim cozido. Cheguei lá e era uma festa de axé. Não dá!”, disse Astrid. Ela afirmou ainda que sua opinião “é a de muita gente que quer manter a tradição e não perder essa parte da história nordestina”.

Prioli relativizou, questionando o que é o São João tradicional e qual o marco temporal usado para defini-lo: “Não dá para você, parte de um juízo subjetivo seu. O que você estava esperando era chegar lá e encontrar outra coisa”.

Entre a preservação da autenticidade do São João e as preferências do grande público, os interesses comerciais e políticos de patrocinadores e prefeituras, parece não haver consenso: a celebração do São João no Nordeste deve contar predominante ou exclusivamente com artistas de forró? As mudanças na festa ameaçam a tradição e a sobrevivência do gênero?

E o que há de novo em 2023? Com um mercado sertanejo cada vez mais forte, o forró em transformação, cheio de novos e antigos ídolos, e as prefeituras atrás do cartaz e até do impulso eleitoral para 2024 com grandes festas, as jornadas de junho pelo Nordeste voltaram a botar o debate na rua.

Olha pro céu, meu amor

Uma grande parte do que se defende como tradição musical do São João está ligada a uma figura fundamental: Luiz Gonzaga. Até meados da década de 1940 e início da de 1950, auge do sucesso de Gonzaga, os festejos juninos não tinham uma trilha sonora tão definida, segundo explica Elder Alves, sociólogo, professor e pesquisador da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

A partir da metade do século passado, porém, as composições do Rei do Baião passaram a ser fortemente associadas à cultura nordestina e ao imaginário junino.

Muitos dos artistas hoje identificados à tradição do São João – dos mais conhecidos nacionalmente, como Elba Ramalho e Alceu Valença, aos que têm fama regional, como Joana Angélica, Alcymar Monteiro e Santanna, o Cantador – são herdeiros do legado de Gonzagão. Alguns deles participaram, em 2017, da campanha #DevolvamMeuSãoJoão, contra sertanejos na festa.

Mas nem o próprio Gonzagão, hoje visto como símbolo de autenticidade musical no São João, escapou da acusação de matar a tradição ou de críticas ao caráter comercial de sua música. Depois de lançar Noites Brasileiras em 1954, uma marcha junina de enorme sucesso, o autor foi alvo de uma “alfinetada” na Revista da Música Popular, publicação especializada de prestígio da época:

“Os nossos compositores, sempre fugindo à legítima fonte de inspiração folclórica, criam melodias de vida efêmera que se substituem de ano para ano”, escreveu o jornalista Jarbas Melo em 1955. “Matam-se as tradições juninas, tão intrinsecamente ligadas ao nosso passado e que bem podiam continuar presentes, que bem podiam manter-se, a troco de um mero interesse mercantil”.

Jarbas Melo, na Revista de Música Popular, em 1955, sobre Luiz Gonzaga

Melo se referia ao desaparecimento das cantigas e dos gêneros rurais nordestinos, como os cocos e as emboladas, que até o início do século 20 embalavam o São João, e estavam sendo substituídos pelas melodias que se popularizavam através do rádio. O trecho está registrado no livro “A sociologia de um gênero: o baião”, do professor da UFAL Elder Alves.

“Essa polêmica é sempre atualizada, nunca deixou de existir. Ela é de ordem estética, artística e cultural e reverbera em aspectos políticos e ideológicos”, diz o sociólogo.

Antes do sertanejo, foco principal da disputa atual, artistas de axé e bandas de forró eletrônico (como Magníficos e Aviões do Forró) também tiveram sua contratação para o São João questionada nas décadas passadas.

Luiz Gonzaga Foto: Marcos Arcoverde / Estadão

O São João de hoje

A discussão sobre quais artistas devem ter espaço garantido na programação do São João também tem relação com o formato dessas festas, seus aspectos econômicos e até eleitorais.

A centralização do São João em eventos promovidos pelas prefeituras, que tem força hoje em municípios de Pernambuco, Paraíba, Bahia e Ceará, começou na década de 1980. Até então, as festas aconteciam principalmente nos bairros, em clubes e casas de família.

A festa de Campina Grande, por exemplo, apelidada de “maior São João do Mundo”, completa 40 anos em 2023 e foi criada pelo então prefeito Ronaldo Cunha Lima. Lima construiu o Parque do Povo, onde a celebração acontece até hoje, especialmente para o São João.

Nesse modelo, as festas foram ganhando uma grande estrutura, atrações de fora e patrocinadores privados. Elas cresceram ainda mais nos últimos 20 anos, segundo Alves. E, mais recentemente, têm passado por um processo de “camarotização”, com áreas vip, ingressos pagos e cachês de centenas de milhares de reais, assim como acontece com o Carnaval.

“Os prefeitos buscam se promover e atrair olhares para suas festas. Para isso, tentam negociar com o gosto musical popular e predomina a escolha de agradar, do artista em ascensão, daquilo se traduz em popularidade e depois em votos”, diz o professor da Ufal, lembrando que não falta muito para as eleições municipais de 2024.

Esse é um dos fatores que explicam por que o sertanejo, estilo musical mais consumido atualmente na faixa etária de 15 a 29 anos, segundo o Datafolha, ganhou espaço no São João. Também há o interesse comercial das marcas que patrocinam as festas e o poder de negociação dos artistas e seus empresários.

Para Junior Vidal, coordenador artístico e de marketing da plataforma de streaming nordestina Sua Música, o problema não é incluir artistas que não têm ligação com a tradição do São João, mas deixar de fora aqueles que deveriam ser “prata da casa”.

“O que é grave é haver uma desvalorização ou ausência de artistas que fazem parte desse contexto da festa. Na minha opinião, tem atrações que não podem ficar de fora”, diz, citando Flávio José, Alcymar Monteiro e Elba Ramalho.

Vidal mora em Maracanaú (CE), cidade que sedia o maior São João do Ceará e que teve o DJ Alok como uma das atrações em 2023.

O São João é uma festa para o povo. Tudo bem ter o Alok, muitas pessoas não teriam a oportunidade de ver um show dele [em outra situação]. Mas se tem Alok e não tem esses outros, fica descaracterizado

Junior Vidal, diretor do site de streaming nordestino Sua Música

Lara Amélia, artista de forró e filha do cantor Flávio José, considera as críticas ao espaço tomado por artistas de outros gêneros “uma defesa necessária por parte dos nordestinos”.

Ela vê os empresários e patrocinadores das festas como os maiores agentes da desvalorização do forró. “Ela não parte do povo, porque diante dessa polêmica toda, a gente vê o quanto o povo saiu em defesa da nossa cultura. Nessas festas existe muita coisa por trás, muito interesse próprio, além do que o próprio público pode ver”, diz.

Regulamentação faz sentido?

No dia 20 de junho, a Câmara Federal aprovou urgência para o PL 3083/2023, projeto da Lei Luiz Gonzaga ou “PL do Forró”, que determina o repasse de 80% dos recursos públicos destinados às festas juninas para artistas de forró e ligados à cultura regional. Com isso, o projeto pode ser votado diretamente em plenário, sem passar pelas comissões.

Autor do projeto, o deputado Fernando Rodolfo (PL) trabalhou com uma comitiva de músicos como Alcymar Monteiro, Targino Gondim e Armandinho do Acordeon na articulação pela matéria. Eles foram recebidos pelo presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) em sua residência oficial.

Para além da lei, o Fórum Nacional do Forró de Raiz tem debatido com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) um plano voltado à preservação do forró. Em 2021, o órgão reconheceu as matrizes tradicionais do forró (que incluem vários ritmos, como xote, xaxado e pé-de-serra) como patrimônio imaterial nacional. Autoridades do Ministério da Cultura receberam demandas do fórum em uma reunião no fim de março.

Lara Amélia defende a aprovação da Lei Luiz Gonzaga, mas não vê o forró ameaçado de desaparecimento. “Acredito que não há um risco tão eminente como muitos acreditam, porque ainda existem pessoas conscientes da importância de se preservar a história e costumes, assim como também tem artistas novos chegando que estão dispostos a levantar essa bandeira”.

Mas a eficácia de uma lei como essa levanta dúvidas. Na Bahia, a “Lei da Zabumba” foi aprovada em 2015 para assegurar 60% dos recursos das festas aos artistas ligados à cultura baiana e regional, mas nunca foi cumprida.

Para o sociólogo e professor da Ufal Elder Alves, mesmo se cumprida a lei pode gerar uma reação negativa em uma parte do público do São João, que deseja ver artistas mais “pop” na festa.

De outro lado, ele relembra o impacto positivo das políticas culturais federais do início dos anos 2000 para o forró e defende esse apoio. “O governo federal pode sim fazer muita coisa, no sentido de repassar recursos para que prefeituras incentivem a formação de artistas locais, a transmissão de saberes e assegurem espaço na grade das festas. É perfeitamente possível e desejável que se faça isso”

No streaming nordestino Sua Música, segundo o coordenador artístico e de marketing Junior Vidal, “o forró nunca sai de moda” – principalmente no período que antecede o São João. Nessa época, uma enxurrada de álbuns novos são colocados na plataforma para que os artistas consigam vender seus shows.

Vários deles conseguem viver de música e fazem sucesso com o público regional ou nacional- caso da pisadinha, o forró de teclado que renovou o estilo nos últimos anos e gerou ídolos como João Gomes, fã de rap e de Gonzagão.

Show do cantor João Gomes no Nômade Festival 2023 Foto: Rafael Strabelli

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