Caetano Veloso: CD perturbador


O título Noites do Norte é inspirado em trecho do livro Minha Formação de Joaquim Nabuco, musicado no disco, que revê idéias como a de que a escravidão marcou o Brasil, espalhando "por nossas vastas solidões uma grande suavidade... com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos"

Por Agencia Estado

Caetano Veloso lançou seu novo disco Noites do Norte, no fim da tarde de segunda-feira, na Internet. Pôs à disposição do público, usando um portal, trechos de cada uma das 12 faixas do CD, mais uma longa entrevista, fotos e comentários sobre as músicas do repertório. Na entrevista, Caetano diz, generalizando, que os cadernos de cultura dos jornais são piores do que os produtos da indústria cultural - e aqui não generaliza. Cita Sandy & Júnior, Alexandre Pires e Ivete Sangalo. Na abertura da entrevista, o entrevistador afirma que Caetano Veloso está comprando uma briga. Não se compre a briga. Importa menos o discurso do que a obra do artista. Noites do Norte é um disco mais perturbador do que qualquer declaração que possa vir de seu autor. Depois do sucesso comercial - Caetano Veloso produz retumbantes sucessos comerciais - com a tola canção Sozinho, de Peninha, incluída no repertório do CD Prenda Minha (que, por conta deste retumbante sucesso, vendeu mais de 1 milhão de cópias), o compositor voltou ao discurso - musical e poético - mais elaborado, ou melhor: tão elaborado quanto sempre foi o seu trabalho, formador de público ouvinte sofisticado, definidor de parâmetros de gosto menos popularesco. Mesmo quando o assunto tratado nas canções, os ritmos sobre os quais se apoiam as melodias, a origem profunda das melodias - mesmo quando tudo o que serviu de ingrediente para a composição de Caetano veio da tradição popular, seu trabalho lançou mão de tais elementos para dar-lhes feição culta, na expressão rigorosa da palavra. Noites do Norte tira o título de um texto de Joaquim Nabuco, de um trecho do livro autobiográfico Minha Formação. É um escrito em que o abolicionista diz: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do País, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte." Ecos - O texto foi escrito há um século. Caetano pinçou-o de Minha Formação e o musicou. É a segunda faixa do disco e uma de suas diretrizes. É possível ver ecos desse discurso na faixa de abertura, Zera a Reza: "A pureza desse amor/ Espelhos pelo carnaval/ E cada cara e corpo é desigual/ Sabe o que é bom e o que é mau/ Chão é céu/ E é seu e meu/ E eu sou quem não morre nunca." Há pouco tempo, Gilberto Gil reclamava que os analistas de sua obra - e de outras obras - têm a mania de tentar enxergar razões ocultas nas coisas que escreve, atribuindo-lhe intenções que não o moviam quando escreveu. Talvez a bossa-afro-pop Zera a Rez a seja anterior à descoberta do texto de Joaquim Nabuco - talvez tenha levado o autor a interessar-se pela obra do abolicionista. Levantar essas questões é importante para se estabelecer critérios de abordagem da obra de Caetano (e a de Gil, etc.), um dos artistas mais interferentes da cena brasileira desta metade de século. Sérgio Sampaio não estava fazendo música política quando escreveu Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, que virou hino de resistência política ao regime de 64, e a música nunca pôde ser vista de outra maneira. As possíveis alusões a Nabuco seguem em 13 de Maio, afoxé de fluidos caribenhos: "Dia 13 de maio em Santo Amaro/ Na Praça do Mercado/ Os pretos celebravam/ (talvez hoje inda o façam)/ O fim da escravidão/ Da escravidão/ Tanta pindoba!/ Lembro do aluá/ Lembro da maniçoba/ Foguetes no ar/ Pra saudar Isabel ô Isabé/ Pra saudar Isabé." Nada mais natural do que uma regravação, com toques de samba-reggae, de Zumbi, de Jorge Ben (a assinatura está assim, no disco; a composição é de antes da adoção do Ben Jor pelo autor): "Aqui estão os homens/ Há um grande leilão/ Dizem que nele há uma princesa à venda/ Que veio junto com seus súditos/ Acorrentados num carro de boi." E se Jorge Ben adverte que tudo mudará com a chegada de "Zumbi" ("Eu quero ver/ Eu quero ver"), paira sobre a ameaça a ambigüidade da "saudade da escravidão" declarada por Joaquim Nabuco no livro inspirador de Caetano Veloso. A questão da raça, do interracial, da nacionalidade, da internacionalidade seguem orientando Noites do Norte. Aparecem em Rok´n´Raul - Raul Seixas dizia que era americano apenas havia nascido no lugar errado. Caetano parte disto para concluir que não importa tanto: "Mas minha alegria/ Minha ironia/ É bem maior do que essa porcaria/ Ter um rancho de éter no Texas/ Uma plantation de maconha no Wyoming/ Dana de Axé Dodô e Curuzu/ A verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul." De repente, na sexta faixa, o disco muda de tom. Os dois primeiros compassos da canção Michalengelo Antonioni, dedicada ao cineasta italiano (e escrita em italiano) remetem a uma antiga canção de Guinga e Paulo César Pinheiro, Passarinhadeira, numa citação que por certo não é intencional. É um número suave, delicado, de belíssima poesia. Mais impressionante são os enigmáticos versos de Cantiga de Boi: "Cantiga de boi é densa/ Não se dança nem se entende/ Doença, cura e repente/ E desafio ao destino/ Menino já tem saudade/ Do que mal surgiu à frente:/ Alma, CD, boi, cidade." Na faixa mais bonita, Cobra Coral, os versos são de Wally Salomão, musicados por Caetano. O canto em trio vocal completa-se com as vozes de Lulu Santos e Zélia Duncan. Uma das poucas canções de amor de "Noites do Norte" é "Ia" - mas nem mesmo na canção de amor Caetano faz concessões ao gosto fácil, apoiando os versos queixosos ("Surdo o amor quebra em mim/ Sem fim/ Esse instante seria/ Ia") em melodia dissonante, cromática, daquelas que poucos poderão sair cantarolando à primeira ouvida. Mais imediatamente acessível é a bossa Meu Rio - mas nem tanto. Uma curiosa participação especial - a do cavaquinhista Dudu Nobre, compositor e músico da banda de Zeca Pagodinho - dá toque suburbano à bossa que trata de subúrbio, mesmo: é um relato autobiográfico de Caetano, que morou no subúrbio carioca quando adolescente - e a paisagem mudou: "Esperava o bom do som: João/ Tom Jobim/ Traçou por fim/ Por sobre mim/ Teu monte-céu/ Teu próprio deus/ Cidade." Bossa estilizada - Só uma das músicas não é inédita, "Sabiá", que já foi gravada por Marisa Monte. Mas o registro da cantora arredonda a melodia acidentada da bossa estilizada, e Caetano, ainda uma vez, faz questão de enfatizar os possíveis estranhamentos. "Noites do Norte" fecha-se com Tempestades Solares versos de crise amorosa, advertência, canção de desamor - para quem o provocou "com as mucosas venenosas de sua alma de mulher", provocando tempestades solares no coração atingido. A advertência: "Adeus/ Ou seja outra:/ Alguém que agüente o sol." Dessa forma, Noites do Norte começa com o espanto de quem viu em Joaquim Nabuco a nostalgia da escravidão - e termina com a autroploclamação de ser centro do mundo. Talvez não haja nenhuma relação entre as primeiras canções e essa última - talvez seja apenas a coleção de canções disponíveis, enfeixadas no CD do ano. Noites do Norte não é trabalho para passar em branco. Não é para ser ouvido uma vez só nem dele se podem tirar conclusões apressadas - não há gratuidade no que faz Caetano Veloso. Defendendo a indústria cultural (ou, pelo menos, justificando-a, ao compará-la a outros ramos de atividade), ele fez, ao mesmo tempo, um disco rigorosamente não-comercial e deve ter um discurso pronto, que una as pontas. Resta aguardar sua palavra. Frua-se a complexidade provocativa do novo CD, enquanto isto. Noites do Norte. Disco de Caetano Veloso, já nas lojas. Lançamento Universal, preço médio: R$ 20,00

Caetano Veloso lançou seu novo disco Noites do Norte, no fim da tarde de segunda-feira, na Internet. Pôs à disposição do público, usando um portal, trechos de cada uma das 12 faixas do CD, mais uma longa entrevista, fotos e comentários sobre as músicas do repertório. Na entrevista, Caetano diz, generalizando, que os cadernos de cultura dos jornais são piores do que os produtos da indústria cultural - e aqui não generaliza. Cita Sandy & Júnior, Alexandre Pires e Ivete Sangalo. Na abertura da entrevista, o entrevistador afirma que Caetano Veloso está comprando uma briga. Não se compre a briga. Importa menos o discurso do que a obra do artista. Noites do Norte é um disco mais perturbador do que qualquer declaração que possa vir de seu autor. Depois do sucesso comercial - Caetano Veloso produz retumbantes sucessos comerciais - com a tola canção Sozinho, de Peninha, incluída no repertório do CD Prenda Minha (que, por conta deste retumbante sucesso, vendeu mais de 1 milhão de cópias), o compositor voltou ao discurso - musical e poético - mais elaborado, ou melhor: tão elaborado quanto sempre foi o seu trabalho, formador de público ouvinte sofisticado, definidor de parâmetros de gosto menos popularesco. Mesmo quando o assunto tratado nas canções, os ritmos sobre os quais se apoiam as melodias, a origem profunda das melodias - mesmo quando tudo o que serviu de ingrediente para a composição de Caetano veio da tradição popular, seu trabalho lançou mão de tais elementos para dar-lhes feição culta, na expressão rigorosa da palavra. Noites do Norte tira o título de um texto de Joaquim Nabuco, de um trecho do livro autobiográfico Minha Formação. É um escrito em que o abolicionista diz: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do País, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte." Ecos - O texto foi escrito há um século. Caetano pinçou-o de Minha Formação e o musicou. É a segunda faixa do disco e uma de suas diretrizes. É possível ver ecos desse discurso na faixa de abertura, Zera a Reza: "A pureza desse amor/ Espelhos pelo carnaval/ E cada cara e corpo é desigual/ Sabe o que é bom e o que é mau/ Chão é céu/ E é seu e meu/ E eu sou quem não morre nunca." Há pouco tempo, Gilberto Gil reclamava que os analistas de sua obra - e de outras obras - têm a mania de tentar enxergar razões ocultas nas coisas que escreve, atribuindo-lhe intenções que não o moviam quando escreveu. Talvez a bossa-afro-pop Zera a Rez a seja anterior à descoberta do texto de Joaquim Nabuco - talvez tenha levado o autor a interessar-se pela obra do abolicionista. Levantar essas questões é importante para se estabelecer critérios de abordagem da obra de Caetano (e a de Gil, etc.), um dos artistas mais interferentes da cena brasileira desta metade de século. Sérgio Sampaio não estava fazendo música política quando escreveu Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, que virou hino de resistência política ao regime de 64, e a música nunca pôde ser vista de outra maneira. As possíveis alusões a Nabuco seguem em 13 de Maio, afoxé de fluidos caribenhos: "Dia 13 de maio em Santo Amaro/ Na Praça do Mercado/ Os pretos celebravam/ (talvez hoje inda o façam)/ O fim da escravidão/ Da escravidão/ Tanta pindoba!/ Lembro do aluá/ Lembro da maniçoba/ Foguetes no ar/ Pra saudar Isabel ô Isabé/ Pra saudar Isabé." Nada mais natural do que uma regravação, com toques de samba-reggae, de Zumbi, de Jorge Ben (a assinatura está assim, no disco; a composição é de antes da adoção do Ben Jor pelo autor): "Aqui estão os homens/ Há um grande leilão/ Dizem que nele há uma princesa à venda/ Que veio junto com seus súditos/ Acorrentados num carro de boi." E se Jorge Ben adverte que tudo mudará com a chegada de "Zumbi" ("Eu quero ver/ Eu quero ver"), paira sobre a ameaça a ambigüidade da "saudade da escravidão" declarada por Joaquim Nabuco no livro inspirador de Caetano Veloso. A questão da raça, do interracial, da nacionalidade, da internacionalidade seguem orientando Noites do Norte. Aparecem em Rok´n´Raul - Raul Seixas dizia que era americano apenas havia nascido no lugar errado. Caetano parte disto para concluir que não importa tanto: "Mas minha alegria/ Minha ironia/ É bem maior do que essa porcaria/ Ter um rancho de éter no Texas/ Uma plantation de maconha no Wyoming/ Dana de Axé Dodô e Curuzu/ A verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul." De repente, na sexta faixa, o disco muda de tom. Os dois primeiros compassos da canção Michalengelo Antonioni, dedicada ao cineasta italiano (e escrita em italiano) remetem a uma antiga canção de Guinga e Paulo César Pinheiro, Passarinhadeira, numa citação que por certo não é intencional. É um número suave, delicado, de belíssima poesia. Mais impressionante são os enigmáticos versos de Cantiga de Boi: "Cantiga de boi é densa/ Não se dança nem se entende/ Doença, cura e repente/ E desafio ao destino/ Menino já tem saudade/ Do que mal surgiu à frente:/ Alma, CD, boi, cidade." Na faixa mais bonita, Cobra Coral, os versos são de Wally Salomão, musicados por Caetano. O canto em trio vocal completa-se com as vozes de Lulu Santos e Zélia Duncan. Uma das poucas canções de amor de "Noites do Norte" é "Ia" - mas nem mesmo na canção de amor Caetano faz concessões ao gosto fácil, apoiando os versos queixosos ("Surdo o amor quebra em mim/ Sem fim/ Esse instante seria/ Ia") em melodia dissonante, cromática, daquelas que poucos poderão sair cantarolando à primeira ouvida. Mais imediatamente acessível é a bossa Meu Rio - mas nem tanto. Uma curiosa participação especial - a do cavaquinhista Dudu Nobre, compositor e músico da banda de Zeca Pagodinho - dá toque suburbano à bossa que trata de subúrbio, mesmo: é um relato autobiográfico de Caetano, que morou no subúrbio carioca quando adolescente - e a paisagem mudou: "Esperava o bom do som: João/ Tom Jobim/ Traçou por fim/ Por sobre mim/ Teu monte-céu/ Teu próprio deus/ Cidade." Bossa estilizada - Só uma das músicas não é inédita, "Sabiá", que já foi gravada por Marisa Monte. Mas o registro da cantora arredonda a melodia acidentada da bossa estilizada, e Caetano, ainda uma vez, faz questão de enfatizar os possíveis estranhamentos. "Noites do Norte" fecha-se com Tempestades Solares versos de crise amorosa, advertência, canção de desamor - para quem o provocou "com as mucosas venenosas de sua alma de mulher", provocando tempestades solares no coração atingido. A advertência: "Adeus/ Ou seja outra:/ Alguém que agüente o sol." Dessa forma, Noites do Norte começa com o espanto de quem viu em Joaquim Nabuco a nostalgia da escravidão - e termina com a autroploclamação de ser centro do mundo. Talvez não haja nenhuma relação entre as primeiras canções e essa última - talvez seja apenas a coleção de canções disponíveis, enfeixadas no CD do ano. Noites do Norte não é trabalho para passar em branco. Não é para ser ouvido uma vez só nem dele se podem tirar conclusões apressadas - não há gratuidade no que faz Caetano Veloso. Defendendo a indústria cultural (ou, pelo menos, justificando-a, ao compará-la a outros ramos de atividade), ele fez, ao mesmo tempo, um disco rigorosamente não-comercial e deve ter um discurso pronto, que una as pontas. Resta aguardar sua palavra. Frua-se a complexidade provocativa do novo CD, enquanto isto. Noites do Norte. Disco de Caetano Veloso, já nas lojas. Lançamento Universal, preço médio: R$ 20,00

Caetano Veloso lançou seu novo disco Noites do Norte, no fim da tarde de segunda-feira, na Internet. Pôs à disposição do público, usando um portal, trechos de cada uma das 12 faixas do CD, mais uma longa entrevista, fotos e comentários sobre as músicas do repertório. Na entrevista, Caetano diz, generalizando, que os cadernos de cultura dos jornais são piores do que os produtos da indústria cultural - e aqui não generaliza. Cita Sandy & Júnior, Alexandre Pires e Ivete Sangalo. Na abertura da entrevista, o entrevistador afirma que Caetano Veloso está comprando uma briga. Não se compre a briga. Importa menos o discurso do que a obra do artista. Noites do Norte é um disco mais perturbador do que qualquer declaração que possa vir de seu autor. Depois do sucesso comercial - Caetano Veloso produz retumbantes sucessos comerciais - com a tola canção Sozinho, de Peninha, incluída no repertório do CD Prenda Minha (que, por conta deste retumbante sucesso, vendeu mais de 1 milhão de cópias), o compositor voltou ao discurso - musical e poético - mais elaborado, ou melhor: tão elaborado quanto sempre foi o seu trabalho, formador de público ouvinte sofisticado, definidor de parâmetros de gosto menos popularesco. Mesmo quando o assunto tratado nas canções, os ritmos sobre os quais se apoiam as melodias, a origem profunda das melodias - mesmo quando tudo o que serviu de ingrediente para a composição de Caetano veio da tradição popular, seu trabalho lançou mão de tais elementos para dar-lhes feição culta, na expressão rigorosa da palavra. Noites do Norte tira o título de um texto de Joaquim Nabuco, de um trecho do livro autobiográfico Minha Formação. É um escrito em que o abolicionista diz: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do País, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte." Ecos - O texto foi escrito há um século. Caetano pinçou-o de Minha Formação e o musicou. É a segunda faixa do disco e uma de suas diretrizes. É possível ver ecos desse discurso na faixa de abertura, Zera a Reza: "A pureza desse amor/ Espelhos pelo carnaval/ E cada cara e corpo é desigual/ Sabe o que é bom e o que é mau/ Chão é céu/ E é seu e meu/ E eu sou quem não morre nunca." Há pouco tempo, Gilberto Gil reclamava que os analistas de sua obra - e de outras obras - têm a mania de tentar enxergar razões ocultas nas coisas que escreve, atribuindo-lhe intenções que não o moviam quando escreveu. Talvez a bossa-afro-pop Zera a Rez a seja anterior à descoberta do texto de Joaquim Nabuco - talvez tenha levado o autor a interessar-se pela obra do abolicionista. Levantar essas questões é importante para se estabelecer critérios de abordagem da obra de Caetano (e a de Gil, etc.), um dos artistas mais interferentes da cena brasileira desta metade de século. Sérgio Sampaio não estava fazendo música política quando escreveu Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, que virou hino de resistência política ao regime de 64, e a música nunca pôde ser vista de outra maneira. As possíveis alusões a Nabuco seguem em 13 de Maio, afoxé de fluidos caribenhos: "Dia 13 de maio em Santo Amaro/ Na Praça do Mercado/ Os pretos celebravam/ (talvez hoje inda o façam)/ O fim da escravidão/ Da escravidão/ Tanta pindoba!/ Lembro do aluá/ Lembro da maniçoba/ Foguetes no ar/ Pra saudar Isabel ô Isabé/ Pra saudar Isabé." Nada mais natural do que uma regravação, com toques de samba-reggae, de Zumbi, de Jorge Ben (a assinatura está assim, no disco; a composição é de antes da adoção do Ben Jor pelo autor): "Aqui estão os homens/ Há um grande leilão/ Dizem que nele há uma princesa à venda/ Que veio junto com seus súditos/ Acorrentados num carro de boi." E se Jorge Ben adverte que tudo mudará com a chegada de "Zumbi" ("Eu quero ver/ Eu quero ver"), paira sobre a ameaça a ambigüidade da "saudade da escravidão" declarada por Joaquim Nabuco no livro inspirador de Caetano Veloso. A questão da raça, do interracial, da nacionalidade, da internacionalidade seguem orientando Noites do Norte. Aparecem em Rok´n´Raul - Raul Seixas dizia que era americano apenas havia nascido no lugar errado. Caetano parte disto para concluir que não importa tanto: "Mas minha alegria/ Minha ironia/ É bem maior do que essa porcaria/ Ter um rancho de éter no Texas/ Uma plantation de maconha no Wyoming/ Dana de Axé Dodô e Curuzu/ A verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul." De repente, na sexta faixa, o disco muda de tom. Os dois primeiros compassos da canção Michalengelo Antonioni, dedicada ao cineasta italiano (e escrita em italiano) remetem a uma antiga canção de Guinga e Paulo César Pinheiro, Passarinhadeira, numa citação que por certo não é intencional. É um número suave, delicado, de belíssima poesia. Mais impressionante são os enigmáticos versos de Cantiga de Boi: "Cantiga de boi é densa/ Não se dança nem se entende/ Doença, cura e repente/ E desafio ao destino/ Menino já tem saudade/ Do que mal surgiu à frente:/ Alma, CD, boi, cidade." Na faixa mais bonita, Cobra Coral, os versos são de Wally Salomão, musicados por Caetano. O canto em trio vocal completa-se com as vozes de Lulu Santos e Zélia Duncan. Uma das poucas canções de amor de "Noites do Norte" é "Ia" - mas nem mesmo na canção de amor Caetano faz concessões ao gosto fácil, apoiando os versos queixosos ("Surdo o amor quebra em mim/ Sem fim/ Esse instante seria/ Ia") em melodia dissonante, cromática, daquelas que poucos poderão sair cantarolando à primeira ouvida. Mais imediatamente acessível é a bossa Meu Rio - mas nem tanto. Uma curiosa participação especial - a do cavaquinhista Dudu Nobre, compositor e músico da banda de Zeca Pagodinho - dá toque suburbano à bossa que trata de subúrbio, mesmo: é um relato autobiográfico de Caetano, que morou no subúrbio carioca quando adolescente - e a paisagem mudou: "Esperava o bom do som: João/ Tom Jobim/ Traçou por fim/ Por sobre mim/ Teu monte-céu/ Teu próprio deus/ Cidade." Bossa estilizada - Só uma das músicas não é inédita, "Sabiá", que já foi gravada por Marisa Monte. Mas o registro da cantora arredonda a melodia acidentada da bossa estilizada, e Caetano, ainda uma vez, faz questão de enfatizar os possíveis estranhamentos. "Noites do Norte" fecha-se com Tempestades Solares versos de crise amorosa, advertência, canção de desamor - para quem o provocou "com as mucosas venenosas de sua alma de mulher", provocando tempestades solares no coração atingido. A advertência: "Adeus/ Ou seja outra:/ Alguém que agüente o sol." Dessa forma, Noites do Norte começa com o espanto de quem viu em Joaquim Nabuco a nostalgia da escravidão - e termina com a autroploclamação de ser centro do mundo. Talvez não haja nenhuma relação entre as primeiras canções e essa última - talvez seja apenas a coleção de canções disponíveis, enfeixadas no CD do ano. Noites do Norte não é trabalho para passar em branco. Não é para ser ouvido uma vez só nem dele se podem tirar conclusões apressadas - não há gratuidade no que faz Caetano Veloso. Defendendo a indústria cultural (ou, pelo menos, justificando-a, ao compará-la a outros ramos de atividade), ele fez, ao mesmo tempo, um disco rigorosamente não-comercial e deve ter um discurso pronto, que una as pontas. Resta aguardar sua palavra. Frua-se a complexidade provocativa do novo CD, enquanto isto. Noites do Norte. Disco de Caetano Veloso, já nas lojas. Lançamento Universal, preço médio: R$ 20,00

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