Zé Geraldo nasceu pela terceira vez quando tinha 40 anos de idade. Até então, era um homem velho acreditando no que os produtores de shows repetiam em seu ouvido: seu público não existia e sua música era uma interrogação. Não era MPB nem rock nem sertanejo. Seu visual era péssimo, ele fumava dois maços de cigarro por dia e a bebida parecia ser a finalidade de sua existência. Ao chegar a uma cidade para tocar, bebia com os malucos até subir ao palco. Quando descia do palco, bebia com os malucos até o dia amanhecer.
Zé Geraldo renasceu em 1984, quando olhou intrigado para a fila que saía do Sesc Pompeia, dobrava a Rua Clélia e descia a Barão do Bananal, em São Paulo. De guitarra nas costas, foi ao segurança saber que diabo era aquilo. “Eles vieram ver o seu show”, respondeu o homem. Zé correu para o camarim e desabou no choro. Tudo o que pensava sobre si estava errado. De alguma forma, o público o conhecia e conhecia todas as suas músicas.
Aos 70 anos, Zé segue a mesma estrada de ídolo invisível. Seus shows batem recordes de público no Centro Cultural São Paulo e suas plateias absorvem suas canções como esponja. O que ele faz foi batizado um dia por Zé Rodrix como rock rural. Uma canção que não virou gênero por não ter feito seguidores em número suficiente no meio.
O ano de 2015 terá novidades. Zé deve lançar seu próximo disco no segundo semestre. Metade das canções já está gravada. Uma delas, Os Dois Reis Magos, gravada com o cantor João Carreiro, pergunta onde anda Belchior?: “Nosso trio virou dupla, o verso ficou menor / Nos valha Jesus menino, onde anda Belchior / mas Baltazar respondia, Jesus sabe o que é melhor / Um dia trás outro dia / Siga em paz, ó Belchior”. Depois de lançar o disco, ele quer gravar um dos shows para lançar em DVD e terminar um livro de memórias chamado Contando Causos: De Rodeiro à Nova York. “É uma semibiografia”, diz à reportagem em seu sítio na Serra da Cantareira, onde vive com três cães e cultiva na vizinhança de Renato Teixeira, Sérgio Reis e Almir Sater. Sua próxima frase poderia abrir o livro: “Até o meio, minha carreira tinha tudo para dar errado”.
Zé queria ser jogador de futebol desde a infância em Rodeiro e a adolescência em Governador Valadares, ambas no interior de Minas Gerais. Mas o pacto de sangue com a noite fez da abstinência exigida aos craques um sonho impossível. Zé embrenhou-se pelos escritórios e se tornou um executivo na área de recursos humanos até que um caminhão bateu no ônibus que o levava de Minas Gerais a São Paulo. E foi assim que Zé Geraldo nasceu pela segunda vez.
A longa internação levou quase um ano e teria sido apenas uma longa internação se não fosse a visita do amigo, Paulo Cotta. “Ele me deu um violão”. Simples assim, como fazer os três acordes naturais do rock que iriam definir suas próximas décadas.
A vida de Zé Geraldo, Zegê para os amigos, ganha a noite e passa a orbitar todas as criaturas que se alimentavam dela naquela segunda metade dos anos 60. Ao sair do hospital, foi fazer fisioterapia em Santos e acabou conhecendo os integrantes do grupo Snakes, que tinha como integrante recente Tim Maia. Zé foi morar com o grupo e começou a ouvir os conselhos de Tim: “Bicho, você tem que cantar em bailes”. Tim escrevia uma profecia: “Ele falava que eu ia fazer exatamente o tipo de música norte-americana que eu iria começar a fazer anos depois”.
O susto de Zé Geraldo ao ver o documentário de Tim Maia na Globo foi grande. É a única vez em que ele se exalta na entrevista. “Achei uma sacanagem o Roberto Carlos posar de galã. Ah bicho, o Roberto não levava o Tim no programa dele porque o achava a maior sujeira do mundo. O Tim ia no programa da Elis, no do Simonal, mesmo antes de gravar. O meio artístico o respeitava, mas Roberto não o levava. Nós que estamos acompanhando a história... Vem querer engambelar! O Raul era um lixo para o Caetano e para o Gil! Raul morreu, virou Deus para eles. Pô, o que custa o Roberto mostrar um lado podre dele, pelo menos um?”
Ao tempo em que crescia, o nome de Zé Geraldo começava a ser associado ao de uma pequena turma de compositores brasileiros de natureza messiânica. O maior deles foi Raul Seixas. Um outro, Zé Ramalho. O terceiro seria Belchior e, o quarto, Zé Geraldo. O que os diferencia dos demais é o amor cego, incondicional e amedrontador que seus fãs lhes dedicam. Algo que pode ser bonito até se tornar perigoso. “Algumas pessoas se aproximam como se eu fosse o último cipó para elas se agarrarem. E isso, às vezes, pesa. Um chega e diz: ‘Pô, cara, eu estava pensando em me matar até ouvir você cantar tal música. Depois de ouvir, joguei a arma fora’. É complicado. Às vezes vem mulher com criança no colo pra eu passar a mão na cabeça. Você não sabe até onde vai isso. A música é um ópio, uma cachaça perigosíssima.”
O semblante tenso quase vira um sorriso quando Zé se lembra do lado bom de ser ídolo. “Um garoto no Espírito Santo me abraçou chorando dizendo que eu era o John Lennon dele. E a gente chorou muito junto. Imagina isso, um menino de 12, 13 anos. Uma menina no Maranhão tirou o relógio de pulso e me entregou dizendo: ‘O meu avô disse: dê à pessoa que você mais amar na vida’. Pô cara”, diz, chorando. Raul Seixas, que parece ter ordenado às suas tropas para seguirem os Zés Geraldo e Ramalho depois de sua partida, é um campo minado. Zé toca algumas de suas músicas nos shows, mas evita regravá-lo desde que foi alertado por um amigo: “Muito cuidado ao mexer com as coisas do Raul. Você sempre estará mexendo com uma entidade muito forte”. Sua palavras sobre o cantor com quem teve cinco ou seis encontros que renderam algumas passagens para o livro só reforçam o mito: “O Raul é o artista da minha geração que mais chegou ao coração das pessoas. Não é o maior poeta, não é o maior músico nem o maior cantor. Mas é o cara que chegou com mais força”.
Sem embalagem que o empacotasse, Zé Geraldo virou alvo das gravadoras que o viam como um sucesso comercial em potencial. Primeiro, quiseram torná-lo um sócio do Clube da Esquina: “Bicho, adoro eles, mas minha música não tem uma vírgula do Clube da Esquina. Ela é interiorana, com uma harmonia tão simples quanto as músicas do Tião Carreiro. Dois, três acordes naturais e uma história em cima”. Depois, o chamaram para gravar sertanejo, mas ele não foi. “Eu descobri que poderia ser rico sem ser milionário e enxuguei minhas expectativas. Eu sou um sucesso, em todos os lugares os caras cantam todas as minhas músicas. Não precisei ser galã para ser feliz, problema resolvido.”
Seu rosto, ainda desconhecido, colhe causos que lhe darão um livro. Um deles: “Estávamos em Santa Catarina quando fomos jantar depois de um show. O garçom passava e ficava só me olhando. Quando ele voltou, meus amigos perguntaram: ‘Chefia, está conhecendo o cantor aqui?’. E ele respondeu: ‘Claro: Zeca Pagodinho’”. E outro: “Fomos tocar no Vale do Jequitinhonha e o para-brisas do ônibus quebrou e começou a entrar poeira. Chegamos e uma baianinha saiu na janela de uma casa em frente ao lugar onde o ônibus parou. Me viu descendo com o olho vermelho, cabelo sujo, e gritou: ‘Oh tia, venha ver o cantor! O bicho é feio que só a peste’”.