Carlos Lyra retorna com álbum autoral depois de 25 anos


Um dos pilares da Bossa Nova, autor fala ao Estado sobre 'Além da Bossa', da saída de cena do movimento e do reducionismo que sofre ao ser considerado colocado em uma gaveta

Por Julio Maria

Ele estava lá quando tudo começou, há 60 anos, em 1959, assim que João Gilberto cometeu Chega de Saudade, a tábua dos mandamentos da Bossa Nova. Maria Ninguém, Lobo Bobo e Saudade fez um Samba, todas de Carlos Lyra, duas delas com parceiros, estavam no álbum produzido por Aloysio de Oliveira, todas que João tocaria por uma vida. Apenas três anos depois, ele estava lá também, quando o mundo pode ver de perto o que era essa tal de Bossa em um concerto no Carnegie Hall, Nova York, com os personagens principais da história. Tom Jobim, João Gilberto, Luiz Bonfá, Roberto Menescal, Milton Banana, Oscar Castro Neves, Sérgio Ricardo, Sérgio Mendes, muito mais gente e ele, Carlos Lyra. Foi uma produção trôpega, desgovernada, mas de contos saborosos como o embarque forçado aos Estados Unidos de Tom Jobim e que simbolizou a grande diáspora. Muitos artistas, como Jobim e João, só voltariam para o Brasil anos depois da noite em que foram aplaudidos por Tony Bennett, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Gerry Mulligan, Herbie Mann e muita gente graúda que respiraria daquele oxigênio por muitos anos.

Lyra, em seu apartamento no Rio Foto: UANDERSON FERNANDES / ESTADÃO

Ele está lá e aqui. Carlos Lyra, aos 85 anos, tem uma fala generosa, um senso crítico inegociável e um pensamento harmônico intacto. O “magno instrumento grego antigo”, como lhe chamou Caetano Veloso na música A Bossa Nova é Foda, sai agora com um álbum de músicas que escreveu por anos, algumas nunca gravadas. Seu primeiro disco autoral desde 1994, quando lançou Carioca de Algema. Além da Bossa, o nome do disco, é também a música que o abre, feita em 2012 com Daltony Nobrega. A voz de Lyra tem o brilho de uma gravação técnica cuidadosa e o disco traz o tempo todo o peso das boas amizades. Sua história lhe garante estar ao lado dos melhores.

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Marcos Valle, que se tornaria seu padrinho de casamento, faz os arranjos e a orquestração de Além da Bossa, a canção. Ronaldo Bastos assina com ele a delícia de Belle Époque, de 2008. Joyce Moreno é parceira em E Era Copacabana..., de 2005, das “noites febris /tempos gentis,/eu já fui tão feliz /mais do que eu quis/ mais do que eu puder querer...”. Um arranjo de cordas sedutoras de Dori Caymmi e um solo de trombone de Rafael Rocha a tornam nova, mais uma vez. Pelo Bem da Vida, de 1979, tem mais drama e delicadeza no violoncelo de Jaques Morelenbaum do que na versão gravada por Nelson Gonçalves nos anos 80. “Ele vivia me ligando para saber se eu tinha música nova para seus discos”, lembra Lyra. É a deixa para pularmos do presente para as memórias.

Além da Bossa é um nome e uma ideia. A Bossa Nova, o primeiro gênero brasileiro a arregalar os olhos de um mundo que até aquele instante insistia em ver o Brasil como o lugar de um certo exotismo tribal e folclórico, muitas vezes confundindo-o com o berço de ritmos caribenhos, também cobrou seu preço. Ao contrário de nomes que surgiriam anos depois livres da agenda de uma linguagem tão bem definida, dos toques precisos de um violão dividindo um tempo novo mas calculado e dos encadeamentos harmônicos sofisticados, muitos dos bossa nova seriam também reduzidos à jurisdição da bossa nova. Como uma diáspora ao contrário, Gil, Caetano, Chico e toda a boa onda que chegava desfrutaria da carta branca que os palcos dos festivais do início lhes dariam para sempre, mas Carlos Lyra, Edu Lobo, João Donato, Roberto Menescal, Joyce Moreno e alguns outros seriam sempre, para o bem e para o mal, o pessoal da bossa nova. “Esse negócio só me atrapalhou”, disse João Donato em certa entrevista ao Estado. Assim como Lyra, Donato é um bom exemplo do equívoco em que podemos cair ao trancar artistas em gavetas.

Além da Bossa, de volta ao disco, faz um pouco desse passeio. Há sambas, boleros, uma pérola como Pelo Bem da Vida e outros momentos que não caberiam na definição mais crua de bossa nova. “As pessoas não imaginam que eu ouvi muito mais Debussy e Ravel do que Bossa, e isso está tudo em minhas músicas”, diz Lyra, abrindo o flanco para algumas provocações irresistíveis de se fazer a um homem como ele: “Lyra, olhando hoje para aquele momento da Bossa Nova dos anos 1960, você diria que faltou em algum momento uma politização das letras e do discurso dos bossa novistas? A falta de uma postura política teria influenciado no enfraquecimento da cena sobretudo depois que os militares assumiram o poder?” Ele responde: “Não sei. O CPC foi fundando em 1961. Eu já politizava as letras nesse momento. Tom também, junto com Vinicius. É claro que uma vertente ficou estacionada no amor, no sorriso e na flor, mas depois que os militares tomaram o poder foi também a época que sucedeu o Concerto do Carnegie Hall e que levou nossa música para o mundo e nós fomos também aceitando convites para trabalhar lá fora. Acho que foi a diáspora que enfraqueceu a cena no Brasil enquanto a fortificou no resto no mundo. Eu, Tom, João Gilberto, João Donato e Sergio Mendes fomos para os Estados Unidos. Vinicius foi pra Paris.”

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O que explicaria o fato de a Bossa Nova não ter participado da Era dos Festivais? “Não sei. Os festivais foram de 1965 a 1969 e eu estava em meu auto-exílio. Mesmo que estivesse no Brasil, não participaria. Acho que música não compete. A música mais bonita para você pode ser uma, para mim pode ser outra e acho um absurdo Tom, Chico e Milton serem julgados para decidir quem fez a melhor música... Mas perceba que a época dos festivais foi, exatamente, a época em que estávamos morando no exterior.”  A juventude, então, era reinventada. Saía a Bossa, chegava o rock. Saía Tom Jobim, entrava Roberto Carlos. O que os bossa nova conversavam sobre isso? Lyra diz que não havia essas conversas fora do Brasil, lugar em que era muito requisitado, mas um dia ele voltou e a realidade se materializou em um diálogo com o já diretor artístico da gravadora Philips, Roberto Menescal. “Quando cheguei ao Brasil e voltei à Philips – minha gravadora original – fui chamado pelo Menescal e ouvi dele que o que estava vendendo era a Jovem Guarda e que a gravadora reservava 80% da verba de divulgação para os que vendiam muito e 20% para os que não vendiam muito. E que ele não teria verba para divulgar o meu disco. Foi por isso que fui para a Continental e só naquele momento percebi a realidade do mercado fonográfico brasileiro.”

O termo Bossa Nova, no final das contas, ajuda ou atrapalha? “Meu entendimento do que é Bossa Nova é muito diferente do que a mídia e o público consideram. A ideia de Bossa Nova ficou engessada no ‘samba bossa nova’ que João Gilberto divulgou pelo mundo na sua famosa batida de violão. Aquilo não define para mim o que é esse gênero. Bossa Nova é a maneira com que lidamos com a composição, preocupados em fazer melodias elaboradas, harmonias sofisticadas, porém orgânicas, encadeadas, sem complicações ou excessos... Esse rótulo atrapalha porque os que não são chegados à Bossa Nova acabam não me ouvindo, e você tem que ficar insistindo para conseguir quebrar e ultrapassar essa barreira.”

Ele estava lá quando tudo começou, há 60 anos, em 1959, assim que João Gilberto cometeu Chega de Saudade, a tábua dos mandamentos da Bossa Nova. Maria Ninguém, Lobo Bobo e Saudade fez um Samba, todas de Carlos Lyra, duas delas com parceiros, estavam no álbum produzido por Aloysio de Oliveira, todas que João tocaria por uma vida. Apenas três anos depois, ele estava lá também, quando o mundo pode ver de perto o que era essa tal de Bossa em um concerto no Carnegie Hall, Nova York, com os personagens principais da história. Tom Jobim, João Gilberto, Luiz Bonfá, Roberto Menescal, Milton Banana, Oscar Castro Neves, Sérgio Ricardo, Sérgio Mendes, muito mais gente e ele, Carlos Lyra. Foi uma produção trôpega, desgovernada, mas de contos saborosos como o embarque forçado aos Estados Unidos de Tom Jobim e que simbolizou a grande diáspora. Muitos artistas, como Jobim e João, só voltariam para o Brasil anos depois da noite em que foram aplaudidos por Tony Bennett, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Gerry Mulligan, Herbie Mann e muita gente graúda que respiraria daquele oxigênio por muitos anos.

Lyra, em seu apartamento no Rio Foto: UANDERSON FERNANDES / ESTADÃO

Ele está lá e aqui. Carlos Lyra, aos 85 anos, tem uma fala generosa, um senso crítico inegociável e um pensamento harmônico intacto. O “magno instrumento grego antigo”, como lhe chamou Caetano Veloso na música A Bossa Nova é Foda, sai agora com um álbum de músicas que escreveu por anos, algumas nunca gravadas. Seu primeiro disco autoral desde 1994, quando lançou Carioca de Algema. Além da Bossa, o nome do disco, é também a música que o abre, feita em 2012 com Daltony Nobrega. A voz de Lyra tem o brilho de uma gravação técnica cuidadosa e o disco traz o tempo todo o peso das boas amizades. Sua história lhe garante estar ao lado dos melhores.

Marcos Valle, que se tornaria seu padrinho de casamento, faz os arranjos e a orquestração de Além da Bossa, a canção. Ronaldo Bastos assina com ele a delícia de Belle Époque, de 2008. Joyce Moreno é parceira em E Era Copacabana..., de 2005, das “noites febris /tempos gentis,/eu já fui tão feliz /mais do que eu quis/ mais do que eu puder querer...”. Um arranjo de cordas sedutoras de Dori Caymmi e um solo de trombone de Rafael Rocha a tornam nova, mais uma vez. Pelo Bem da Vida, de 1979, tem mais drama e delicadeza no violoncelo de Jaques Morelenbaum do que na versão gravada por Nelson Gonçalves nos anos 80. “Ele vivia me ligando para saber se eu tinha música nova para seus discos”, lembra Lyra. É a deixa para pularmos do presente para as memórias.

Além da Bossa é um nome e uma ideia. A Bossa Nova, o primeiro gênero brasileiro a arregalar os olhos de um mundo que até aquele instante insistia em ver o Brasil como o lugar de um certo exotismo tribal e folclórico, muitas vezes confundindo-o com o berço de ritmos caribenhos, também cobrou seu preço. Ao contrário de nomes que surgiriam anos depois livres da agenda de uma linguagem tão bem definida, dos toques precisos de um violão dividindo um tempo novo mas calculado e dos encadeamentos harmônicos sofisticados, muitos dos bossa nova seriam também reduzidos à jurisdição da bossa nova. Como uma diáspora ao contrário, Gil, Caetano, Chico e toda a boa onda que chegava desfrutaria da carta branca que os palcos dos festivais do início lhes dariam para sempre, mas Carlos Lyra, Edu Lobo, João Donato, Roberto Menescal, Joyce Moreno e alguns outros seriam sempre, para o bem e para o mal, o pessoal da bossa nova. “Esse negócio só me atrapalhou”, disse João Donato em certa entrevista ao Estado. Assim como Lyra, Donato é um bom exemplo do equívoco em que podemos cair ao trancar artistas em gavetas.

Além da Bossa, de volta ao disco, faz um pouco desse passeio. Há sambas, boleros, uma pérola como Pelo Bem da Vida e outros momentos que não caberiam na definição mais crua de bossa nova. “As pessoas não imaginam que eu ouvi muito mais Debussy e Ravel do que Bossa, e isso está tudo em minhas músicas”, diz Lyra, abrindo o flanco para algumas provocações irresistíveis de se fazer a um homem como ele: “Lyra, olhando hoje para aquele momento da Bossa Nova dos anos 1960, você diria que faltou em algum momento uma politização das letras e do discurso dos bossa novistas? A falta de uma postura política teria influenciado no enfraquecimento da cena sobretudo depois que os militares assumiram o poder?” Ele responde: “Não sei. O CPC foi fundando em 1961. Eu já politizava as letras nesse momento. Tom também, junto com Vinicius. É claro que uma vertente ficou estacionada no amor, no sorriso e na flor, mas depois que os militares tomaram o poder foi também a época que sucedeu o Concerto do Carnegie Hall e que levou nossa música para o mundo e nós fomos também aceitando convites para trabalhar lá fora. Acho que foi a diáspora que enfraqueceu a cena no Brasil enquanto a fortificou no resto no mundo. Eu, Tom, João Gilberto, João Donato e Sergio Mendes fomos para os Estados Unidos. Vinicius foi pra Paris.”

O que explicaria o fato de a Bossa Nova não ter participado da Era dos Festivais? “Não sei. Os festivais foram de 1965 a 1969 e eu estava em meu auto-exílio. Mesmo que estivesse no Brasil, não participaria. Acho que música não compete. A música mais bonita para você pode ser uma, para mim pode ser outra e acho um absurdo Tom, Chico e Milton serem julgados para decidir quem fez a melhor música... Mas perceba que a época dos festivais foi, exatamente, a época em que estávamos morando no exterior.”  A juventude, então, era reinventada. Saía a Bossa, chegava o rock. Saía Tom Jobim, entrava Roberto Carlos. O que os bossa nova conversavam sobre isso? Lyra diz que não havia essas conversas fora do Brasil, lugar em que era muito requisitado, mas um dia ele voltou e a realidade se materializou em um diálogo com o já diretor artístico da gravadora Philips, Roberto Menescal. “Quando cheguei ao Brasil e voltei à Philips – minha gravadora original – fui chamado pelo Menescal e ouvi dele que o que estava vendendo era a Jovem Guarda e que a gravadora reservava 80% da verba de divulgação para os que vendiam muito e 20% para os que não vendiam muito. E que ele não teria verba para divulgar o meu disco. Foi por isso que fui para a Continental e só naquele momento percebi a realidade do mercado fonográfico brasileiro.”

O termo Bossa Nova, no final das contas, ajuda ou atrapalha? “Meu entendimento do que é Bossa Nova é muito diferente do que a mídia e o público consideram. A ideia de Bossa Nova ficou engessada no ‘samba bossa nova’ que João Gilberto divulgou pelo mundo na sua famosa batida de violão. Aquilo não define para mim o que é esse gênero. Bossa Nova é a maneira com que lidamos com a composição, preocupados em fazer melodias elaboradas, harmonias sofisticadas, porém orgânicas, encadeadas, sem complicações ou excessos... Esse rótulo atrapalha porque os que não são chegados à Bossa Nova acabam não me ouvindo, e você tem que ficar insistindo para conseguir quebrar e ultrapassar essa barreira.”

Ele estava lá quando tudo começou, há 60 anos, em 1959, assim que João Gilberto cometeu Chega de Saudade, a tábua dos mandamentos da Bossa Nova. Maria Ninguém, Lobo Bobo e Saudade fez um Samba, todas de Carlos Lyra, duas delas com parceiros, estavam no álbum produzido por Aloysio de Oliveira, todas que João tocaria por uma vida. Apenas três anos depois, ele estava lá também, quando o mundo pode ver de perto o que era essa tal de Bossa em um concerto no Carnegie Hall, Nova York, com os personagens principais da história. Tom Jobim, João Gilberto, Luiz Bonfá, Roberto Menescal, Milton Banana, Oscar Castro Neves, Sérgio Ricardo, Sérgio Mendes, muito mais gente e ele, Carlos Lyra. Foi uma produção trôpega, desgovernada, mas de contos saborosos como o embarque forçado aos Estados Unidos de Tom Jobim e que simbolizou a grande diáspora. Muitos artistas, como Jobim e João, só voltariam para o Brasil anos depois da noite em que foram aplaudidos por Tony Bennett, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Gerry Mulligan, Herbie Mann e muita gente graúda que respiraria daquele oxigênio por muitos anos.

Lyra, em seu apartamento no Rio Foto: UANDERSON FERNANDES / ESTADÃO

Ele está lá e aqui. Carlos Lyra, aos 85 anos, tem uma fala generosa, um senso crítico inegociável e um pensamento harmônico intacto. O “magno instrumento grego antigo”, como lhe chamou Caetano Veloso na música A Bossa Nova é Foda, sai agora com um álbum de músicas que escreveu por anos, algumas nunca gravadas. Seu primeiro disco autoral desde 1994, quando lançou Carioca de Algema. Além da Bossa, o nome do disco, é também a música que o abre, feita em 2012 com Daltony Nobrega. A voz de Lyra tem o brilho de uma gravação técnica cuidadosa e o disco traz o tempo todo o peso das boas amizades. Sua história lhe garante estar ao lado dos melhores.

Marcos Valle, que se tornaria seu padrinho de casamento, faz os arranjos e a orquestração de Além da Bossa, a canção. Ronaldo Bastos assina com ele a delícia de Belle Époque, de 2008. Joyce Moreno é parceira em E Era Copacabana..., de 2005, das “noites febris /tempos gentis,/eu já fui tão feliz /mais do que eu quis/ mais do que eu puder querer...”. Um arranjo de cordas sedutoras de Dori Caymmi e um solo de trombone de Rafael Rocha a tornam nova, mais uma vez. Pelo Bem da Vida, de 1979, tem mais drama e delicadeza no violoncelo de Jaques Morelenbaum do que na versão gravada por Nelson Gonçalves nos anos 80. “Ele vivia me ligando para saber se eu tinha música nova para seus discos”, lembra Lyra. É a deixa para pularmos do presente para as memórias.

Além da Bossa é um nome e uma ideia. A Bossa Nova, o primeiro gênero brasileiro a arregalar os olhos de um mundo que até aquele instante insistia em ver o Brasil como o lugar de um certo exotismo tribal e folclórico, muitas vezes confundindo-o com o berço de ritmos caribenhos, também cobrou seu preço. Ao contrário de nomes que surgiriam anos depois livres da agenda de uma linguagem tão bem definida, dos toques precisos de um violão dividindo um tempo novo mas calculado e dos encadeamentos harmônicos sofisticados, muitos dos bossa nova seriam também reduzidos à jurisdição da bossa nova. Como uma diáspora ao contrário, Gil, Caetano, Chico e toda a boa onda que chegava desfrutaria da carta branca que os palcos dos festivais do início lhes dariam para sempre, mas Carlos Lyra, Edu Lobo, João Donato, Roberto Menescal, Joyce Moreno e alguns outros seriam sempre, para o bem e para o mal, o pessoal da bossa nova. “Esse negócio só me atrapalhou”, disse João Donato em certa entrevista ao Estado. Assim como Lyra, Donato é um bom exemplo do equívoco em que podemos cair ao trancar artistas em gavetas.

Além da Bossa, de volta ao disco, faz um pouco desse passeio. Há sambas, boleros, uma pérola como Pelo Bem da Vida e outros momentos que não caberiam na definição mais crua de bossa nova. “As pessoas não imaginam que eu ouvi muito mais Debussy e Ravel do que Bossa, e isso está tudo em minhas músicas”, diz Lyra, abrindo o flanco para algumas provocações irresistíveis de se fazer a um homem como ele: “Lyra, olhando hoje para aquele momento da Bossa Nova dos anos 1960, você diria que faltou em algum momento uma politização das letras e do discurso dos bossa novistas? A falta de uma postura política teria influenciado no enfraquecimento da cena sobretudo depois que os militares assumiram o poder?” Ele responde: “Não sei. O CPC foi fundando em 1961. Eu já politizava as letras nesse momento. Tom também, junto com Vinicius. É claro que uma vertente ficou estacionada no amor, no sorriso e na flor, mas depois que os militares tomaram o poder foi também a época que sucedeu o Concerto do Carnegie Hall e que levou nossa música para o mundo e nós fomos também aceitando convites para trabalhar lá fora. Acho que foi a diáspora que enfraqueceu a cena no Brasil enquanto a fortificou no resto no mundo. Eu, Tom, João Gilberto, João Donato e Sergio Mendes fomos para os Estados Unidos. Vinicius foi pra Paris.”

O que explicaria o fato de a Bossa Nova não ter participado da Era dos Festivais? “Não sei. Os festivais foram de 1965 a 1969 e eu estava em meu auto-exílio. Mesmo que estivesse no Brasil, não participaria. Acho que música não compete. A música mais bonita para você pode ser uma, para mim pode ser outra e acho um absurdo Tom, Chico e Milton serem julgados para decidir quem fez a melhor música... Mas perceba que a época dos festivais foi, exatamente, a época em que estávamos morando no exterior.”  A juventude, então, era reinventada. Saía a Bossa, chegava o rock. Saía Tom Jobim, entrava Roberto Carlos. O que os bossa nova conversavam sobre isso? Lyra diz que não havia essas conversas fora do Brasil, lugar em que era muito requisitado, mas um dia ele voltou e a realidade se materializou em um diálogo com o já diretor artístico da gravadora Philips, Roberto Menescal. “Quando cheguei ao Brasil e voltei à Philips – minha gravadora original – fui chamado pelo Menescal e ouvi dele que o que estava vendendo era a Jovem Guarda e que a gravadora reservava 80% da verba de divulgação para os que vendiam muito e 20% para os que não vendiam muito. E que ele não teria verba para divulgar o meu disco. Foi por isso que fui para a Continental e só naquele momento percebi a realidade do mercado fonográfico brasileiro.”

O termo Bossa Nova, no final das contas, ajuda ou atrapalha? “Meu entendimento do que é Bossa Nova é muito diferente do que a mídia e o público consideram. A ideia de Bossa Nova ficou engessada no ‘samba bossa nova’ que João Gilberto divulgou pelo mundo na sua famosa batida de violão. Aquilo não define para mim o que é esse gênero. Bossa Nova é a maneira com que lidamos com a composição, preocupados em fazer melodias elaboradas, harmonias sofisticadas, porém orgânicas, encadeadas, sem complicações ou excessos... Esse rótulo atrapalha porque os que não são chegados à Bossa Nova acabam não me ouvindo, e você tem que ficar insistindo para conseguir quebrar e ultrapassar essa barreira.”

Ele estava lá quando tudo começou, há 60 anos, em 1959, assim que João Gilberto cometeu Chega de Saudade, a tábua dos mandamentos da Bossa Nova. Maria Ninguém, Lobo Bobo e Saudade fez um Samba, todas de Carlos Lyra, duas delas com parceiros, estavam no álbum produzido por Aloysio de Oliveira, todas que João tocaria por uma vida. Apenas três anos depois, ele estava lá também, quando o mundo pode ver de perto o que era essa tal de Bossa em um concerto no Carnegie Hall, Nova York, com os personagens principais da história. Tom Jobim, João Gilberto, Luiz Bonfá, Roberto Menescal, Milton Banana, Oscar Castro Neves, Sérgio Ricardo, Sérgio Mendes, muito mais gente e ele, Carlos Lyra. Foi uma produção trôpega, desgovernada, mas de contos saborosos como o embarque forçado aos Estados Unidos de Tom Jobim e que simbolizou a grande diáspora. Muitos artistas, como Jobim e João, só voltariam para o Brasil anos depois da noite em que foram aplaudidos por Tony Bennett, Dizzy Gillespie, Miles Davis, Gerry Mulligan, Herbie Mann e muita gente graúda que respiraria daquele oxigênio por muitos anos.

Lyra, em seu apartamento no Rio Foto: UANDERSON FERNANDES / ESTADÃO

Ele está lá e aqui. Carlos Lyra, aos 85 anos, tem uma fala generosa, um senso crítico inegociável e um pensamento harmônico intacto. O “magno instrumento grego antigo”, como lhe chamou Caetano Veloso na música A Bossa Nova é Foda, sai agora com um álbum de músicas que escreveu por anos, algumas nunca gravadas. Seu primeiro disco autoral desde 1994, quando lançou Carioca de Algema. Além da Bossa, o nome do disco, é também a música que o abre, feita em 2012 com Daltony Nobrega. A voz de Lyra tem o brilho de uma gravação técnica cuidadosa e o disco traz o tempo todo o peso das boas amizades. Sua história lhe garante estar ao lado dos melhores.

Marcos Valle, que se tornaria seu padrinho de casamento, faz os arranjos e a orquestração de Além da Bossa, a canção. Ronaldo Bastos assina com ele a delícia de Belle Époque, de 2008. Joyce Moreno é parceira em E Era Copacabana..., de 2005, das “noites febris /tempos gentis,/eu já fui tão feliz /mais do que eu quis/ mais do que eu puder querer...”. Um arranjo de cordas sedutoras de Dori Caymmi e um solo de trombone de Rafael Rocha a tornam nova, mais uma vez. Pelo Bem da Vida, de 1979, tem mais drama e delicadeza no violoncelo de Jaques Morelenbaum do que na versão gravada por Nelson Gonçalves nos anos 80. “Ele vivia me ligando para saber se eu tinha música nova para seus discos”, lembra Lyra. É a deixa para pularmos do presente para as memórias.

Além da Bossa é um nome e uma ideia. A Bossa Nova, o primeiro gênero brasileiro a arregalar os olhos de um mundo que até aquele instante insistia em ver o Brasil como o lugar de um certo exotismo tribal e folclórico, muitas vezes confundindo-o com o berço de ritmos caribenhos, também cobrou seu preço. Ao contrário de nomes que surgiriam anos depois livres da agenda de uma linguagem tão bem definida, dos toques precisos de um violão dividindo um tempo novo mas calculado e dos encadeamentos harmônicos sofisticados, muitos dos bossa nova seriam também reduzidos à jurisdição da bossa nova. Como uma diáspora ao contrário, Gil, Caetano, Chico e toda a boa onda que chegava desfrutaria da carta branca que os palcos dos festivais do início lhes dariam para sempre, mas Carlos Lyra, Edu Lobo, João Donato, Roberto Menescal, Joyce Moreno e alguns outros seriam sempre, para o bem e para o mal, o pessoal da bossa nova. “Esse negócio só me atrapalhou”, disse João Donato em certa entrevista ao Estado. Assim como Lyra, Donato é um bom exemplo do equívoco em que podemos cair ao trancar artistas em gavetas.

Além da Bossa, de volta ao disco, faz um pouco desse passeio. Há sambas, boleros, uma pérola como Pelo Bem da Vida e outros momentos que não caberiam na definição mais crua de bossa nova. “As pessoas não imaginam que eu ouvi muito mais Debussy e Ravel do que Bossa, e isso está tudo em minhas músicas”, diz Lyra, abrindo o flanco para algumas provocações irresistíveis de se fazer a um homem como ele: “Lyra, olhando hoje para aquele momento da Bossa Nova dos anos 1960, você diria que faltou em algum momento uma politização das letras e do discurso dos bossa novistas? A falta de uma postura política teria influenciado no enfraquecimento da cena sobretudo depois que os militares assumiram o poder?” Ele responde: “Não sei. O CPC foi fundando em 1961. Eu já politizava as letras nesse momento. Tom também, junto com Vinicius. É claro que uma vertente ficou estacionada no amor, no sorriso e na flor, mas depois que os militares tomaram o poder foi também a época que sucedeu o Concerto do Carnegie Hall e que levou nossa música para o mundo e nós fomos também aceitando convites para trabalhar lá fora. Acho que foi a diáspora que enfraqueceu a cena no Brasil enquanto a fortificou no resto no mundo. Eu, Tom, João Gilberto, João Donato e Sergio Mendes fomos para os Estados Unidos. Vinicius foi pra Paris.”

O que explicaria o fato de a Bossa Nova não ter participado da Era dos Festivais? “Não sei. Os festivais foram de 1965 a 1969 e eu estava em meu auto-exílio. Mesmo que estivesse no Brasil, não participaria. Acho que música não compete. A música mais bonita para você pode ser uma, para mim pode ser outra e acho um absurdo Tom, Chico e Milton serem julgados para decidir quem fez a melhor música... Mas perceba que a época dos festivais foi, exatamente, a época em que estávamos morando no exterior.”  A juventude, então, era reinventada. Saía a Bossa, chegava o rock. Saía Tom Jobim, entrava Roberto Carlos. O que os bossa nova conversavam sobre isso? Lyra diz que não havia essas conversas fora do Brasil, lugar em que era muito requisitado, mas um dia ele voltou e a realidade se materializou em um diálogo com o já diretor artístico da gravadora Philips, Roberto Menescal. “Quando cheguei ao Brasil e voltei à Philips – minha gravadora original – fui chamado pelo Menescal e ouvi dele que o que estava vendendo era a Jovem Guarda e que a gravadora reservava 80% da verba de divulgação para os que vendiam muito e 20% para os que não vendiam muito. E que ele não teria verba para divulgar o meu disco. Foi por isso que fui para a Continental e só naquele momento percebi a realidade do mercado fonográfico brasileiro.”

O termo Bossa Nova, no final das contas, ajuda ou atrapalha? “Meu entendimento do que é Bossa Nova é muito diferente do que a mídia e o público consideram. A ideia de Bossa Nova ficou engessada no ‘samba bossa nova’ que João Gilberto divulgou pelo mundo na sua famosa batida de violão. Aquilo não define para mim o que é esse gênero. Bossa Nova é a maneira com que lidamos com a composição, preocupados em fazer melodias elaboradas, harmonias sofisticadas, porém orgânicas, encadeadas, sem complicações ou excessos... Esse rótulo atrapalha porque os que não são chegados à Bossa Nova acabam não me ouvindo, e você tem que ficar insistindo para conseguir quebrar e ultrapassar essa barreira.”

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