Quando Maria do Céu se transformou na Céu, música e números não eram um só. Até se conectavam, com as quantidades de vendas de discos, as classificações de discos de ouro, platina, diamante, ou com as paradas de sucesso contabilizadas nos Estados Unidos e Europa (no Brasil, essa contagem nunca foi lá muito confiável, é bom registrar).
Quase 20 anos atrás (o álbum de estreia da cantora e compositora é datado de 2005, veja só), um disco era aquilo para o qual ele foi criado para ser: um conjunto de fonogramas musicais que se entrelaçam em um conceito, se o artista assim quisesse. Surfava-se, então, no mundo dos downloads (ilegais ou legalizados) da música, insignificantes para artistas independentes como Céu.
Se este texto fosse um filme, adiantaríamos os acontecimentos para a chegada de Novela, o sexto álbum de inéditas da cantora, nesta sexta-feira, 26, diante de um contexto outro. Números e músicas andam juntos, goste ou não, inquiete-se ou não. Novela, por si só, é um disco orgânico e sobre relações humanas, que vem ao mundo dentro deste contexto digital, contábil e frio de uma Matrix da vida real.
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Céu não é avessa às modernidades contemporâneas, claro, negá-la é desconfortavelmente impossível - exceto se você for um “Deus do rock” como Robert Smith, vocalista do The Cure e sua recusa a “tocar em telas” - mas, ainda assim, Céu se vê desplugada com a ideia do que se tornou quem produz arte, principalmente após a pandemia, quando a música ao vivo sucumbiu e o que restou foram eles, os números, geladamente cruéis.
Céu, sobre o novo universo da música
‘Novela’ trata de quem é de carne e osso
Céu até fez da tecnologia a sua morada nos dois álbuns de inéditas anteriores. “Tropix [2016] e Apka! [2019] discorrem sobre digitalismos. Novela, sobre humanos”, ela explica.
Fato. Tropix, o quarto álbum de 2016, arranhou a temática (e escancarou em música como “Amor Pixelado”), enquanto tratava de desamores e novas descobertas, e APKÁ! (2019) digitalizou-se por inteiro com uma narrativa de um coração ciborgue, que pulsava e enviava megabites com a mesma intensidade.
Em Novela, Céu explora o ser e sentir. Daí o título, inclusive, derivado à ideia dos folhetins. “Novelas são roteiros, obras fictícias baseadas em fatos reais, comum a todos”, justifica. ”Esse disco traz um recorte da vida, celebra encontros, discorre sobre prismas infindáveis do amor”, completa.
Gravado no exterior, sem glamour
“Não é todo dia que você tem uma semana pra gravar as bases do seu disco na Califórnia, com essas pessoas”, elogia Céu, “Agarrei com todas as forças.”
Incluído aí está o co-produtor Adrian Younge , dono do Linear Labs, estúdio californiano onde o álbum foi gravado, e multi-instrumentista com experiência trabalhar com artistas do hip-hop como Wu Tang Clan, Kendrick Lammar e Snoop Dogg, além do time reunido a gravar tudo ao vivo no mesmo cômodo, com Céu nos vocais: Pupillo (co-produtor, companheiro de estúdio e de vida da Céu) na bateria e percussão, Younge em teclados e pianos, Lucas Martins no baixo e os coros de Jensine Benitez e Loren Oden.
As únicas adições no estúdio foram LadyBug Mecca, uma MC e compositora nascida nos Estados Unidos, filha de brasileiros, em “Raiou’, e de anaiis (grafia com todas as letras minúsculas, mesmo), artista franco-senegalesa, em “Gerando a Alta”. “LadyBug Mecca é uma lenda do Digable Planets, que eu, como fã de rap dos anos 90, fiquei alucinada quando soube que poderia rolar”, detalha.
Faz parte do processo de Younge gravar tudo em um take, na fita, no processo mais analógico e menos digital possível.
Portanto, a voz que você ouve em “Raiou”, é fruto de uma garganta que deixou São Paulo e recém-pousou na seca e quente Los Angeles - há também a nota mais álbum de Céu no álbum. “Los Angeles é seca, poluída, não teve glamour. Apesar de que teve também”, admite.
Uma pandemia de distância
Novela apresenta a Céu-compositora de volta. Cinco anos se passaram desde um álbum com músicas assinadas por ela (aliás, aqui, a única composição sem ao menos a participação da artista é “Corpo e Colo”, assinada por Nando Reis e Kleber Lucas). Neste meio tempo, a pandemia de covid-19 trocou algumas percepções, ela explica.
“Lustrando Estrela”, primeira composição do disco, irradia energia com uma bateria pulsante de Pupillo, é fruto de um uma reflexão pós-pandêmica. “Todos temos uma estrela, seja um talento, ou algo que brilha dentro em nós e nos acende”, analisa. “Como vencer tantos B.O.s aqui na Terra, e ainda assim dar conta de cuidar do que te acende, levar essa estrela para brilhar?”, ela questiona.
Céu escreveu a música com muito autoquestionamento. “Achava que jamais conseguiria voltar a fazer as coisas que me alimentam, como artista, que me acendem e me dão forças”, admite, a cantora, que continua, “apesar de ser uma artista muito ligada às ‘alegrias mundanas’ do dia a dia, de curtir a vida sem glamour, os problemas estavam tão enormes que cheguei a achar que não seria mais possível.”
Aos poucos, Novela se constrói como uma narrativa única, mesmo que sem repetição de fórmulas e estéticas sonoras em cada uma das 12 faixas. Tal qual os folhetins, cada música é uma subtrama que se desenrola em paralelo, com ritmos e paleta de cores individual.
Traça-se ali uma Céu própria e dona de si, de sua carreira, e não dependente de números e tendências - sem dancinhas de TikTok, sem colaborações interessadas em plays e seguidores e outras artimanhas do mercado atual.
“Tudo mudou bastante após a pandemia. Os artistas passaram a ser cobrados massivamente a serem influenciadores. Gostam de usar o termo ‘creators’, mas a verdade é que a arte, feita por estes artistas, já deveria suprir essa ideia”.
“É um recorte dessa noveleira aqui, mulher, artista, mãe, brasileira, mas também acho que pode ser de quem se identificar. Nossos dramas e amores, nossos desejos de amar com liberdade sendo protagonistas de nossas vidas, amor-próprio, de vulnerabilidade humana, amizade, até vingança”, explica. “De uma coisa eu tenho certeza: de tédio eu não sofro.”
O trabalho é tanto político quanto é pessoal, explora, sambas, bossas, experimenta timbres e sabores. “Tudo ao mesmo tempo”, ela brinca. “Sou um grande balaio, que leva em si as alegrias e desafios da sociedade conflitada, da maternidade, da mulher, da poesia, música. Como vou escrever um disco que separe tudo? Quando é pra vir de dentro da dona Maria aqui, é mistura!” Só não “criadora de conteúdo”, obviamente.