E o que faria Chico César depois de Estado de Poesia, era algo que o fã perguntava havia um tempo. Ali, em uma hora, sete minutos e 40 segundos, Chico concluía um dos discos brasileiros de status clássico, vencedor em sua versão ao vivo do Prêmio da Música Brasileira. Apurava a poesia, equilibrava a sanha dos trocadilhos e desenvolvia uma linguagem afro-pop hendrixiniana sem perder o poder da comunicação imediata. Ficou, assim, quase cinco anos com ele na estrada e o sedimentou flutuando na superfície de seu repertório. Aquela coleção cantada pela plateia se une agora a Mama África e À Primeira Vista para formar a base de seu cancioneiro.
Era 2015, a presidente do País era Dilma Rousseff e Chico voltava às caldeiras depois de um período sem discos, retirado da cena artística por força de um cargo de secretário estadual de Cultura da Paraíba. Vivia também as liberdades do amor recente pela cineasta Barbara Santos, que o levava a lugares como Caracajus, Da Taça e a própria definição que colocou no dicionário como sinônimo de embriaguez da alma, da paixão pela vida, o Estado de Poesia.
É 2019 e, contra as previsões, nem tudo são cinzas também porque, nas palavras de Chico, a poesia não está perdida. “Se abrimos mão da poesia para fazermos panfleto, aquilo que combatemos já venceu”, ele diz. O Amor É Um Ato Revolucionário, com dois shows de lançamento nesta quinta, 19, e sexta, 20, no Sesc Pinheiros, tem talvez suas respostas na própria frase. Não há um novo Reis do Agronegócio, sua canção mais combativa, de linguagem mais implacável contra os “pinóquios velhos” da velha política, que já estava em Estado de Poesia. “Muita gente me vê como esse artista de combate, envia músicas com esse teor. Mas eu quis também falar agora de outras coisas.” O álbum tem, assim, as duas faces de um homem que se equilibra entre a indignação profunda do que seus olhos veem e a doçura tocante do que pode perceber além disso. Se um dos dois vencesse a batalha, o caminho, talvez, se tornasse algo temerário.
O Amor É um Ato Revolucionário é, assim, mais complemento de Estado de Poesia do que uma contraposição. Sob as mesmas mãos instrumentais e quase o mesmo conceito sonoro, ele cria um arco que parte do ato de amor ritualístico e roqueiro do tema-título, uma deliciosa canção que remete aos anos 70 com frases proféticas e edificantes em coro e uma liberdade de solos dada ao guitarrista Luis Carlini, ex-Tutti-Frutti, e termina com um estado de raiva revolucionária de Eu Quero Quebrar.
Chico César reforça os polos de forças complementares que já havia mostrado em Estado de Poesia, mas que agora aparecem mais nítidos em O Amor É um Ato Revolucionário. O amor puro está em De Peito Aberto, com Agnes Nunez, uma pérola de Campina Grande, de 17 anos, ou em Minha Morena, cool, com linha de baixo que poderia ser de Bill Withers em Ain’t no Sunshine, e improvisos da guitarra de Chico, sempre saída de algum canto de Cabo Verde. Um dos atos revolucionários aparece em Pedrada, um reggae que ganha flutuação na voz de apoio luxuoso de Dada Yute, que não deixa nada ser simplesmente pesado, mesmo quando a letra diz: “Cães danados do fascismo / Babam e arreganham os dentes / Sai do ovo a serpente / Fruto podre do cinismo / Para oprimir as gentes / Nos manter no escravismo / Pra nos empurrar no abismo / E nos triturar com os dentes”. Creia, fica leve.
O peso do rock sai do tempero de Estado de Poesia e ganha protagonismo, talvez como reflexo do tom a mais de rudeza do discurso. Luzia Negra tem um riff de guitarra, dobrado pelo timbre de teclado Hammond, que ao vivo, se trabalhado com as luzes que merece, deve se tornar um dos momentos mais tensos e inebriantes do espetáculo. Um solo de guitarra com pedal wah wah, mais uma de Hendrix, corre solto no novo padrão circular grandiloquente de dinâmica roqueira, o mesmo que acontece na faixa O Amor É um Ato Revolucionário, mas com um detalhe. Quem toca aqui é Chico César, e ele mostra estar em forma como guitarrista.
Cruviana é um vaudeville de cabaré, no mesmo campo do sarro para não chorar, começando com a vinheta do Jornal Nacional (e então, imagine-se o resto). Quem dá a graça a Chico, aqui, é a voz desordenadamente graciosa da recifense Flaira Ferro. Um pulo para As Negras e a África volta como a gira de terreiro, desta vez trazendo as mulheres de lá: “As negras estão chegando / trazendo d’África o axé vital / herança das matriarcas / da arca sagrada original”. Uma introdução tão Gil para um refrão tão Chico em um momento de festa.
O Homem Sob O Cobertor Puído é outra inspiração em Bob Dylan depois da discursiva Os Reis do Agronegócio. O cenário aqui parte da área onde o céu e o inferno estão mais próximos na cidade, os entornos da Sala São Paulo. A dez passos do abrigo dos eruditos prestes à experiência celestial que as sinfonias prometem, uma população de zumbis definha a céu aberto. Ao passarmos por eles e os ignorarmos para não estragarmos a noite (e a primeira pessoa do plural é necessária), um pouco de cada um já está morto. Chico canta assim: “Você que vai ver o concerto com seu fraque / Nem vê no chão o homem caído na onda do crack / Não vê as trevas que descem sobre a Estação da Luz / Está feliz pois há concerto neste mundo / Mas no fundo no fundo sabe o desconcerto imundo / Que mais une que separa a fortuna e a sorte avara / Sim, cara, você meu caro é o homem estendido sob o cobertor puído / Sim, cara, você é a máscara do deus impiedoso e indiferente”.
Não se trata de uma letra politizada, não é mais uma pedrada e não tem o governador João Doria como alvo, ao contrário de comentários que surgiram na internet quando foi revelado um esboço da canção. Não desta vez, ele diz. “Eu mesmo tento, às vezes, passar por cima do homem que está no crack. O homem sob o cobertor puído sou eu mesmo. Não é uma música contra o Doria, mas contra o Doria que existe dentro de mim.”
Há um terceiro elemento que aparece na composição de traço geracional, que em geral vira tema dos artistas que viveram a conversão analógica para a facebookiana, das fotos de papel para o Instagram. Os olhos passam por aí pelo menos em History e em Like, uma balada de amor das curtidas, das carícias em forma de like e das crises conjugais em forma de não like: “Quando curto essas besteiras que você posta / às vezes eu me sinto um bosta / mas eu posto pois eu sei que você gosta”. Simples assim, pra desabafar o quanto a forma de chamego dos tempos de polegares é tão incomodamente irresistível.
Seria o discurso da raiva um veneno a ser tomado com parcimônia? A pergunta quer saber de Chico se ele busca um equilíbrio na composição quando sente poder ser levado pela ira. “Eu prefiro pensar mais como os Mutantes do que como o Geraldo Vandré”, diz. “Nunca consegui, por exemplo, compor uma música para Marielle Franco, não posso. Aqueles que a mataram já estão condenados a uma morte eterna e serão sempre medíocres. Ela não, se tornou um gigante em todo o mundo.”
CHICO CÉSAR / SESC PINHEIROS. TEATRO PAULO AUTRAN RUA PAES LEME, 195. TEL. 3095-9400. COM PARTICIPAÇÃO DE FLAIRA FERRO. 5ª (19) e 6ª (20), ÀS 21H. R$ 40, R$ 20 E R$ 12