Chiquinho era um mistério, um homem na lista dos desaparecidos de uma geração inteira. “Deve viver no interior de São Paulo”, sugeriu Ivan Lins, do Rio de Janeiro. “Nunca mais o vi aqui na padaria”, disse Hugo Tozzi, de Tatuí. “Ele sempre adorou o isolamento”, falou Zuza Homem de Mello, de São Paulo. “Ele está vivo?”, surpreenderam-se músicos com mais de 50 anos consultados pela reportagem. Um grupo de instrumentistas já pensava em sair em caravana até o interior para resgatá-lo de algum infortúnio. Amigos, filhos, nada. Afinal, onde estaria Chiquinho de Moraes?
Manoel Francisco de Moraes Mello atendeu ao telefone do Estado depois de ouvi-lo tocar por três semanas. “Sim?” Por traquinagem do destino, o homem que acompanhou mais da metade da música brasileira feita entre as décadas de 1960 e 1970 decidiu morar sozinho em Tietê, no interior de São Paulo. “Melhor assim.”
Aos 77 anos, Chiquinho está vivo, inteiro e lúcido. Seu começo foi tocando piano para Celly Campello em Banho de Lua e Estúpido Cupido, em 1959. Veio depois sua primeira fase com Elis Regina, como orquestrador do programa O Fino da Bossa, da TV Record, e seu encontro com Roberto Carlos, com quem ficou de 1970 a 1977. Em meados dos 70, voltou também a fazer arranjos para discos de Elis e ainda Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Nascimento, Simone, Emílio Santiago e uma lista que não caberia aqui.
Os músicos cariocas o consideram “o especialista das cordas”. Os paulistas falam de sua habilidade com os metais. Alguns o chamam de “o maestro herói da MPB”. “E o que eu queria mesmo era ser como o Gil Evans”, diz ele, sobre os arranjos soturnos que fez inspirados no maestro norte-americano do jazz. Distante da batuta há cinco anos, Chico é hoje um contador de histórias impagáveis, obrigatório aos biógrafos e temido pelos biografados. É só dizer um nome e ajeitar-se na cadeira.
Quem é Chiquinho de Moraes?Eu nasci na religião católica, mas meus pais viraram Testemunhas de Jeová. Com 13, 14 anos, eu fazia conferências públicas que duravam uma hora. Eu sujava as minhas calças de medo. Tinha que sair todo domingo batendo de casa em casa pra dizer que o mundo iria acabar. Eu morria de medo de Jeová, dos exércitos, de seus castigos – e para tirar isso da cabeça de uma criança não é fácil. Fui parar no psiquiatra. Eu queria ser advogado, mas minha mãe, quanto ignorância, falou que Direito era profissão de vagabundo. E então, depois de me ver segurando um galho de árvore para imitar um maestro que regia um grupo no coreto da minha cidade, Tietê, ela decidiu que eu seria músico.
Qual foi seu primeiro arranjo?Comecei como arranjador e pianista de Celly Campello em Banho de Lua e Estúpido Cupido. Não precisava arranjar nada. Era só sentar e tocar, mas eu fiquei dias pensando em um arranjo par aquelas músicas.
Como foi sua convivência com Roberto Carlos?Quando eu fazia um show com o Roberto Carlos – você não vai acreditar –, eu torcia para que alguma coisa desse errado. Era sempre igual. Mas ele gostava de ensaio. Geralmente, um artista marcava três ou quatro ensaios antes de um show. Roberto queria dez.
Algum problema com ele por causa das manias?Havia um número épico, maravilhoso, que era feito com um coro. Em um belo dia, ouço os rapazes do backing cantando um arranjo que eu não havia escrito. Quando terminou o show, eu fui saber o que havia acontecido e eles responderam: “Fizemos porque achamos que ia ficar bom”. Imagina se cada músico fosse fazer aquilo que acha que fica bom? Pedi com educação para não fazerem de novo. Ok, dois shows depois, voltaram a fazer e eu falei com todos de novo. E então, na terceira vez, parei o show na hora. O Roberto ficou cantando sozinho. Chamei a segurança do Canecão e pedi para tirarem todos do teatro. Depois do show, fui para um restaurante com alguns amigos. Quando vi os backings entrando, tive certeza de que estavam atrás de mim. Virei a mesa na hora e parti pra cima. Eles estavam em sete, mas algumas pessoas não deixaram a briga ir adiante.
E as manias?Eu tinha com o Roberto um ensaio daqueles no Canecão, e havia escrito notas na partitura com tinta roxa. Uma hora, Roberto chegou para falar comigo e viu a tinta roxa. “Tinta roxa! Não, Chico, não!” Ele suspendeu o ensaio.
A essa altura é só dizer um nome que você conta uma história?Podemos tentar.
Simone.Essa eu chamei pra a briga.
Briga?Sim. Havia um momento em que ela resolvia dizer ao trombonista o que ele deveria fazer. E o cara ficava sem graça, olhando pra mim com cara de “o que eu faço agora?”. Eu chamei a Simone e disse: “Simone, assim não dá, minha querida. Se você me desautorizar na frente da orquestra, não vai dar certo. E você vai precisar da minha autoridade.” Mas ela continuou. Na terceira vez, perdi a paciência e a chamei pra briga. “Então tá, vamos ver quem é mais macho nessa m..., vamos sair no pau agora!” Ela veio pra cima fungando, uma mulher daquele tamanho, atleta, eu pensei: “Vou apanhar, mas vou dar o melhor de mim”. Ela me encarou, eu fiz careta pra ela, e ela voltou pisando duro até a outra ponta do palco. Aí eu só ouvi uma vozinha da orquestra: “Oh, maestro, se livrou de uma, hein?” A Simone me fez voltar para o psicanalista. Eu brigava com ela de igual pra igual e, de repente, ela virava uma doce mulher. E eu pensava que eu era um maluco e voltava para o psicanalista: “Eu acho que estou apaixonado por essa mulher”.
Elizeth Cardoso.O único arranjo que não consegui fazer foi para ela. Queriam que eu fizesse Águas de Março, do Tom Jobim. Não conseguiria nada que se aproximasse de uma música de Tom. Não saiu uma nota.
Nana Caymmi.Havia uma música do Edu Lobo, singela, que falava de uma horta. Logo de cara, ela veio e disse: “Não me venha com essas cordas que eu não aguento mais essas cordas”. “O que você quer?”, perguntei. “Bota o que você quiser, mas não quero cordas.” Gravamos. Ao final, ela veio e falou: “Chico, eu acho que ficou uma m...”. E eu disse: “Eu avisei”.
Chico Buarque.Eu estava gravando e o Chico me aparece com um cara compridão, segurando duas garrafas de vodca. Eu vi que ele estava tomando aquilo no gargalo e pensei: “Onde que o Chico foi arrumar esse cara?” Depois vi que existia entre eles uma ligação esotérica. Aí o cara chama o (músico) Carlinhos Vergueiro, que estava com um problema no joelho, e resolve fazer uma operação espírita ali mesmo. “Ok, vamos suspender a gravação, café pra todo mundo”, disse Chico. Era ele quem mandava. O funcionário do estúdio veio e tirou tudo para caber o Carlinhos deitado no chão. O magrão disse que a anestesia tinha de ser com música e juntamos eu, o Chico e o baixista para tocar qualquer coisa enquanto Carlinhos era operado. O médium pegou uma lâmina de barbear e uma tesoura velha e cortou o Carlinhos abaixo do joelho. E o Carlinhos de cueca. Com aquela tesoura velha, enfiou por dentro e começou a mexer. Aí virou pra mim: “Oh gordinho, vem ajudar aqui”. Eu parei de tocar – o que foi ótimo, já que eu não estava achando nenhuma nota mesmo – cheguei ao lado dele e segurei a tesoura. Mexi um pouco, puxei e vi sair uma cartilagem. Em dois ou três dias, soube que o Carlinhos estava jogando bola.