“Se uma bomba cair neste lugar, John Denver estará de volta ao topo das paradas!”, brincou Paul Simon, com seu humor ácido, enquanto um punhado de estrelas da música pop se aglomerava dentro de um estúdio, em Los Angeles.
A noite em questão é a de 28 de janeiro de 1985, quando dezenas de astros norte-americanos se reuniram para a gravação do hino We Are the World – canção que todo mundo já ouviu pelo menos uma vez na vida, a não ser que viva dentro de uma bolha.
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A iniciativa do projeto USA For Africa, cujo objetivo era arrecadar fundos para o combate à fome no continente africano, acaba de ser revisitada pela Netflix no novo documentário A Noite que Mudou o Pop, que chegou à plataforma na última segunda, 29 de janeiro.
“Eu tinha apenas dois anos quando a canção saiu, mas o impacto dela foi enorme em diferentes nações. Meus pais eram refugiados vietnamitas, tinham acabado de chegar aos Estados Unidos e adoravam ouvi-la. Para se ter uma ideia, antes de começarmos a produção do filme, fui visitar minha família no Vietnã e, quando entrei no táxi, We Are the World estava tocando”, conta o diretor Bao Nguyen ao Estadão.
Basicamente, a história começa com o ator Harry Belafonte, ativista e defensor dos direitos civis. Foi ele quem teve a ideia de conciliar a nata do pop americano para uma música beneficente. Num primeiro momento, Lionel Richie e Stevie Wonder seriam os responsáveis pela composição da faixa. No entanto, a demora de uma resposta de Wonder abriu caminho para Michael Jackson unir esforços com Richie para a gênese de We Are the World. Os dois eram velhos amigos desde os tempos de Motown, quando um liderava os Commodores e o outro emergia com os Jackson 5.
Uma vez que o esqueleto da música ficou pronto, coube ao famoso produtor Quincy Jones escolher os arranjos e domar todas aquelas personalidades – um grupo que ia de gênios consagrados como Ray Charles a novas sensações como Cindy Lauper: “Por favor, deixem seus egos na porta”, escreveu Jones numa plaquinha colocada na entrada do estúdio.
Lionel Richie, que também é produtor executivo, assume um papel de guia durante o filme, que ainda traz depoimentos exclusivos de Bruce Springsteen, Smokey Robinson, Cindy Lauper, Kenny Loggins, Dionne Warwick e Huey Lewis, além de membros da equipe técnica de gravação que estavam presentes naquela jornada.
“Lionel foi um verdadeiro parceiro. Ele é uma das poucas pessoas vivas que conhecem essa história do início ao fim. Ele não interferiu no processo de edição e confiou em nós. A presença dele abriu muitas portas e validou o projeto”, relata o diretor, que tem no currículo documentários sobre o ator Bruce Lee (Be Water, 2020) e o programa Saturday Night Live (Live from New York!, 2015).
Prince X Michael Jackson
Prince é a ausência mais lamentada em We Are the World. Houve a tentativa de convencê-lo a participar por meio da percussionista Sheila E., que tocava com o artista, mas sem sucesso. Em primeira mão, ela conta que acabou abandonando a sessão por estar se sentindo explorada como um trampolim para chegar até Prince.
Pouco sociável, o autor de Purple Rain tinha uma rixa com Michael Jackson e concordou em gravar apenas se pudesse fazer um solo de guitarra, separado do resto do grupo – demanda prontamente recusada.
A exaustão dos astros no estúdio era eventualmente aliviada por piadas. Em certo momento, Ray Charles disse que precisava ir ao banheiro e foi logo auxiliado por Stevie Wonder: “Vem comigo, eu te mostro onde é!”, falou um cego para o outro, arrancando gargalhadas de todos.
Também havia tensão em torno da figura introvertida de Bob Dylan. Com cara de poucos amigos, ele só parecia estar de corpo presente no local. Foi então que, na hora de gravar seu solo vocal, ele perdeu o nervosismo graças a Stevie Wonder, que assumiu o piano e imitou a voz anasalada de Dylan, trazendo descontração ao ambiente.
Outra anedota saborosa é sobre o cantor Al Jarreau, que resolveu celebrar antes da hora e abusou do vinho. Não à toa, errou vários takes ao lado de Willie Nelson e instaurou um clima de impaciência. Nada comparado, no entanto, ao nervosismo generalizado quando Stevie Wonder quis incluir trechos em suaíli no meio da música. “Um cara simples do campo não canta suaíli. Vou dar o fora”, reclamou o ícone do country Waylon Jennings antes de abandonar o estúdio.
“Vendo o material bruto da sessão, dava pra sentir a tensão, mas não era algo cinematográfico. Foi uma noite muito corrida, com cronograma apertado, então quisemos explorar o suspense em torno do relógio que tinha lá dentro. Foi uma forma de usar a linguagem de cinema para realçar o drama”, explica o diretor.
Infelizmente, o documentário não menciona o percussionista brasileiro Paulinho da Costa, que tocou na gravação e era um dos mais requisitados músicos da época.