Como Beethoven revolucionou a música com sua ‘Nona Sinfonia’ que, 200 anos depois, ainda fascina


Conheça os bastidores da estreia de uma das mais famosas sinfonias do compositor, no dia 7 de maio de 1824. Com seu quarto e revolucionário movimento ‘Ode à Alegria’, com solistas e coral, ela é considerada a obra máxima da música ocidental; ouça as gravações mais emblemáticas

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Ludwig van Beethoven (1770-1827) sempre foi um compositor político. Quando compôs sua terceira sinfonia, em 1803, apelidada Eroica, estava arrebatado pelos ideais da Revolução Francesa, pretendia mudar-se para Paris e dedicou-a a Napoleão Bonaparte. A obra gira em torno de uma marcha fúnebre que evoca as cerimônias patrióticas típicas da Revolução Francesa que o fascinava.

Esta história já foi repetida mil e uma vezes: e quando este se autocoorou imperador da França a substituiu para em louvor de um herói. Vinte e um anos depois, quando estreou sua Nona Sinfonia em 7 de maio de 1824, seu quarto e revolucionário movimento, a Ode à Alegria, com solistas e coral, transformou-a na sinfonia que reina até hoje, e provavelmente nos próximos séculos, como obra máxima da música ocidental. A Eroica e a Ode à Alegria foram duas das músicas mais manipuladas politicamente nos últimos dois séculos.

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Na República de Weimar, os comunistas celebraram a Eroica como obra revolucionária, enquanto os nazistas ouviam nela uma representação do poder militar. Aliás, outra de suas sinfonias, a Sétima, também entra neste balaio ideológico: os mesmos nazistas, já então de 1933 em diante, com a instalação do Terceiro Reich, declararam que a Sétima era a “sinfonia do triunfo nazi”, enquanto no mundo pós-segunda guerra os comunistas da República Democrática Alemã a interpretaram como uma antecipação do triunfo do proletariado. A Filarmônica de Berlim tinha de tocá-la em todos os anos no aniversário de Hitler.

Um folder com o retrato do compositor alemão Ludwig van Beethoven é visto na loja de lembranças do museu Beethovenhaus, onde Beethoven passou alguns de seus verões e compôs partes de sua 'Nona Sinfonia', que completa 200 anos. Foto: Joe Klamar / AFP

Na década de 1970 continuou a esquizofrenia ideológica em plena Guerra Fria: se foi coroada, a partir de 1972, como o hino do Conselho da Europa e a partir de 1985 como hino oficial da Comunidade Europeia, também a partir de 1974 foi adotada como hino oficial da Rodésia, o regime branco racista da África do Sul.

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Em 1989, marcando o final da União Soviética e da guerra fria, o muro que separou por décadas a Alemanha foi derrubado. A comemoração foi um acontecimento transmitido pela televisão para o mundo inteiro, com Leonard Bernstein regendo a Nona junto aos destroços do muro nefasto. E, como Lenny também era um sujeito político, não teve dúvidas: substituiu freude por freihert o título de poema de Schiller e o coro cantou Ode à liberdade.

Não cabem culpas. Afinal, a vida se encarrega de plantar contradições no decorrer da vida de todo ser humano. Com Beethoven também foi assim. Em 1814, escreveu: “Nunca mostre abertamente a todos os homens o desprezo que eles merecem, pois nunca se sabe quando se há de precisar deles”. Dez anos depois, aliás, semanas após a estreia da Nona, Beethoven inclinou-se a considerar a Ode à Alegria um erro – mais do que isso, uma “besteira”, e pretendeu substituí-la por um movimento puramente instrumental.

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Uma estreia conturbada

Felizmente, deixou a Nona intacta, tal como estreou há exatos 200 anos. Theodore Albrecht, norte-americano de 78 anos que vem dedicando sua vida a Beethoven, é professor emérito de história da música na Universidade de Kent em Ohio, onde começou a lecionar em 1992. Traduziu para o inglês e editou a correspondência e quatro volumes contendo todos os cadernos de conversação do compositor. E acaba de lançar o livro Beethoven’s Ninth Symphony – Rehearsing and Performing Its 1824 Première (Boydell Press, 322 pgs., fevereiro/2024). (Nona Sinfonia de Beethoven - Ensaiando e Apresentando sua Estreia em 1824, em tradução literal).

Ele declara de início que não vai discutir tecnicamente a sinfonia, nem seu legado do ponto de vista música, político e na cultura do planeta. Debruça-se sobre o concerto mítico do dia 7 de maio de 200 anos atrás em Viena para recriá-lo em todas as minúcias. E entrega o que promete: um raio-X que desmonta versões reproduzidas em muitos livros e vários filmes. Aliás, um dos melhores filmes é O Segredo de Beethoven, de 2006, com Ed Harris ótimo no papel-título, que se permite uma monumental licença poética inventando uma assistente glamorosa que o ajuda a compor a sinfonia; nem ela nem o romance jamais existiram.

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Cena do filme 'O segredo de Beethoven', com Ed Harris e Diane Kruger e direção de Agnieszka Holland. Foto: Lukács Dávid/ Myriad Pictures/Divulgação

A história por trás da Nona Sinfonia de Beethoven

Albrecht me lembra um Sherlock Holmes com sua lupa examinando com minúcias inimagináveis cada detalhe daquele dia. Aliás, não só daquele dia. Ele conta a história desde o início de 1823, quando o compositor teve a ideia de faturar uma bolada dos endinheirado ingleses com uma nova obra.

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Vou me concentrar no dia 7 de maio de 1824. Como era seu hábito, Beethoven acordou cedo. Era uma sexta-feira de primavera. Seu querido sobrinho Karl saiu às 8 horas para fazer plantão na bilheteria do Teatro Kärntnertor. Seu factótum Anton Schindler chegou em seguida e pediu-lhe um punhado de ingressos de cortesia para o concerto daquela noite. Foi ao barbeiro. Já na hora do almoço, Karl chegou entusiasmado com o volume de ingressos vendidos naquela manhã, mas não o encontrou. Deixou-lhe este bilhete:

“Querido tio! Como devo estar na bilheteria às 3 horas, comi rápido, porque demoraria muito para esperar por você. Nos veremos esta noite (...) houve até brigas nas filas”.

Depois do almoço, Schindler voltou contando que os ensaios não estavam indo bem: a soprano Gertrude Walpurgis Sontag, de apenas 18 anos, e a contralto vienense Caroline Unger, de 20, deixaram enfurecido o maestro Michael Umlauf, que insistia em fazer novo ensaio com elas à tarde. Sarcástico, Beethoven perguntou-lhe se havia mais amadores recrutados para o concerto. Schindler negou, mas acrescentou: “Por favor, perdoe-me por notar que esta Sinfonia é realmente uma exceção em relação a todas as anteriores, e você mesmo deve admitir que é a mais grandiosa e a mais difícil”.

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Deste momento em diante, até o retorno à casa após o concerto, o caderno de conversação que Beethoven mantinha sempre consigo devido à surdez não registra mais nada. Isso comprova, afirma Albrecht, “que, na maior parte dos casos, Schindler e o público que estava assistindo - devido ao barulho e à excitação reinante - poderiam falar em voz alta a sua parte das conversas e que Beethoven poderia responder oralmente. Isto fornece uma nova imagem de Beethoven em público durante este período”. Simplificando: ele não estava totalmente surdo, podia conversar com qualquer pessoa desde que o interlocutor falasse mais alto que o habitual. Nem estava mal vestido ou com o cabelo desgrenhado.

Voltemos às preliminares. O concerto começou às 19 horas. Beethoven e Schindler chegaram ao Teatro Kärntnertor às 18h15 e foram aos bastidores cumprimentar os artistas e desejar-lhes boa sorte.

Foi um concerto curto em relação aos habituais, que costumavam durar entre 4 e 6 horas cada. Era difícil para qualquer compositor viabilizar uma academia. Ele precisava fazer um anúncio em jornal pedindo subscrições visando arrecadar dinheiro suficiente para bancar copistas para fazer cópias da partitura e das partes dos naipes de cada obra, assim como alugar o teatro e contratar os músicos. Por isso os programas não tinham a lógica atual dos concertos: empilhavam piano solo, canções, música de câmara, concertos com orquestra, música religiosa, sinfonias, etc.

Um manuscrito da Sinfonia nº 9 em Ré menor, op. 125 do compositor alemão Ludwig van Beethoven é visto em exposição no Theater Museum em Viena, Áustria.  Foto: Joe Klamar / AFP

Talvez pelo prestígio de que já desfrutava àquela altura de sua vida, a Academia de 7 de maio até que foi curta, pouco mais de duas horas. Pela ordem: Abertura Consagração da Casa opus 124 (12′), Kyrie (10′), Credo (20′) e Agnus Dei (15′), da Missa Solemnis opus 123 – intervalo – e Nona, opus 125.

“A orquestra estava situada no palco com o maestro no centro”, escreve Albrecht. Os solistas vocais provavelmente teriam sido colocados à sua frente, para melhor contato visual, com Beethoven (e uma estante separada para sua partitura) perto de Caroline Unger. O coro foi colocado no fosso, provavelmente voltado meio para a frente, para poder observar o maestro no palco.

Em seguida, Albrecht mistura um pouco de suposições com fatos comprovados. Diz que Beethoven “provavelmente” subiu ao palco com o maestro Michael Umlauf antes da abertura. Mas é incisivo ao afirmar que, “ao contrário dos mitos reproduzidos em textos e nos filmes, Beethoven não parecia um gênio desgrenhado. Em vez disso, exibia um novo corte de cabelo (ainda visível no retrato de Decker de 27 de maio), estava barbeado e banhado e – com casaco preto ou verde - estava vestido a caráter. Enquanto Umlauf ficou na frente da orquestra para reger, Beethoven aparentemente ficou de costas para o público e com outra partitura à sua frente. Ele pode até ter indicado os andamentos iniciais para cada movimento, mas isso teria sido mais para demonstrar sua anunciada participação pessoal no concerto do que por qualquer necessidade real”.

Como a Nona soou pela primeira vez

Uma das lendas mais repetidas a respeito da primeira execução da Nona Sinfonia conta que, no final, Caroline Unger pegou o totalmente surdo Beethoven (que virava as páginas de sua partitura) pela manga e apontou-o para o público, para que ele pudesse ver os aplausos e reconhecê-los.

“Os relatos deste incidente são contraditórios”, anota Albrecht. Schindler relatou que “no final da apresentação”, Unger virou o surdo Beethoven para que pudesse ver os aplausos do público. Em 1869, em Londres, a própria Caroline Unger (1803-1877) disse a George Grove que ‘no final desta grande obra, [Beethoven] continuou de pé, de costas para o público, e marcando o tempo, até que [ela] o virou, ou o induziu a se virar e encarar as pessoas que estavam batendo palmas’.”

Nove anos antes, em 1860, o biógrafo americano de Beethoven, Alexander Wheelock Thayer, conheceu o pianista Sigismund Thalberg (1812–1871), maior rival de Liszt, que, aos 12 anos, assistiu àquele concerto. “Vi Thalberg em Paris. Ele me disse [que] estava presente no concerto de Beethoven… [em] 1824. Beethoven estava vestido com fraque preto, lenço de pescoço e colete brancos, roupas íntimas de cetim preto, meias de seda pretas, sapatos com fivelas. Após o Scherzo da Nona Sinfonia, ele viu como Beethoven estava virando as páginas de sua partitura, completamente surdo aos imensos aplausos, e Unger puxou-o pela manga e depois apontou para o público quando ele se virou e fez uma reverência. Umlauf disse ao coro e à orquestra que não prestassem atenção alguma aos gestos de Beethoven naquele momento, mas que todos o observassem”.

Pequenas caixas de música com o retrato do compositor alemão Ludwig van Beethoven são vistas na loja de lembranças do museu Beethovenhaus em Baden bei Wien, Áustria. Foto: Joe Klamar / AFP)

Albrecht argumenta que, do ponto de vista musical, este incidente não faz sentido, pois é impossível confundir o coral final Maestoso (”Alegria, linda centelha dos deuses! Faíscas dos deuses!”, em tradução literal) com o prestíssimo orquestral na coda. Beethoven teria percebido, “através de sua audição existente, mas fraca e vibratória” quando a música parou e quando o ambiente visual geral mudou. No final de um concerto tão cansativo, provavelmente houve tanto alvoroço no palco quanto na plateia. E conclui: “Beethoven nunca teria continuado a virar as páginas e Unger nunca teria tido que virá-lo nessas circunstâncias”.

Estes e outras centenas de exemplos sepultam muitas histórias repetidas nestes dois séculos e que não resistem à pesquisa de Albrecht. Este livro é resultado de uma vida dedicada à garimpagem de fatos e informações de primeira mão, documentais, que clareiem um pouco mais os detalhes daquela mítica sexta-feira histórica, duzentos anos atrás.

Naquela noite nascia uma obra-prima atemporal, que soa contemporânea a cada vez que é interpretada em qualquer lugar do planeta. Justifica-se plenamente, portanto, o esforço e criteriosa pesquisa de décadas de Theodore Albrecht. Os fatos em relação à Nona não parecem mais tão fantasiosos, têm cheiro de fatos reais.

A Nona em gravações

  • A mais emocionante: Leonard Bernstein, Filarmônica de Berlim 1989
  • A da plena maturidade de um maestro: Coro e Orquestra de Chicago – Camilla Nylund, soprano; Ekaterina Gubanova, mezzo-soprano; Matthew Polenzani, tenor; Eric Owens, baixo-baritono - regência de Riccardo Muti. Vídeo ao vivo em concerto em 19 de setembro de 2014.
  • Uma reinvenção: Sinf. 9 em versão para 2 pianos de Liszt mas com tímpanos: Kevin Suherman & Junyan Chen, piano Ethan Skuodas, tímpanos 1h05′

Beethoven, segundo as cartas

Frases típicas do primeiro período:

“Não sou cruel – o sangue fogoso é toda a minha malícia, e meu crime é a juventude. Cruel eu não sou, verdadeiramente eu não sou cruel; embora turbulentos vagalhões sempre deponham contra o meu coração, meu coração é bom. Para ajudar onde for possível, amar a liberdade acima de todas as coisas, nunca negar a verdade, mesmo ao pé do trono!” (no álbum de um amigo, 1792)

Para Franz Anton Hoffmeister:

Viena, 15 de janeiro de 1801

“Deveria haver um único Mercado de Arte no mundo; o artista simplesmente enviaria para lá as suas obras e receberia tanto quanto necessita; da maneira como as coisas são, cada um deve ser meio comerciante acima de tudo, e a sensação que isso desperta em mim – por Deus! – qualifico-a de lastimável.”

Ludwig van Beethoven

Período Maduro:

“Nunca mostre abertamente a todos os homens o desprezo que eles merecem, pois nunca se sabe quando se há de precisar deles.” (Caderno de Anotações, 1814)

“Destino, mostra o teu poder! Não temos nenhum domínio sobre nós mesmos: o que quer que tenha sido determinado deve ser, e que seja então! (...) Viva apenas em sua arte! Embora esteja atualmente restringido por causa dos seus sentidos (defeituosos), esta é contudo a única forma possível de existência para você.” (Caderno de Anotações, 1816)

“A calma e a liberdade são as mais preciosas de todas as posses.” (Caderno de Anotações, 1817)

Ludwig van Beethoven (1770-1827) sempre foi um compositor político. Quando compôs sua terceira sinfonia, em 1803, apelidada Eroica, estava arrebatado pelos ideais da Revolução Francesa, pretendia mudar-se para Paris e dedicou-a a Napoleão Bonaparte. A obra gira em torno de uma marcha fúnebre que evoca as cerimônias patrióticas típicas da Revolução Francesa que o fascinava.

Esta história já foi repetida mil e uma vezes: e quando este se autocoorou imperador da França a substituiu para em louvor de um herói. Vinte e um anos depois, quando estreou sua Nona Sinfonia em 7 de maio de 1824, seu quarto e revolucionário movimento, a Ode à Alegria, com solistas e coral, transformou-a na sinfonia que reina até hoje, e provavelmente nos próximos séculos, como obra máxima da música ocidental. A Eroica e a Ode à Alegria foram duas das músicas mais manipuladas politicamente nos últimos dois séculos.

Na República de Weimar, os comunistas celebraram a Eroica como obra revolucionária, enquanto os nazistas ouviam nela uma representação do poder militar. Aliás, outra de suas sinfonias, a Sétima, também entra neste balaio ideológico: os mesmos nazistas, já então de 1933 em diante, com a instalação do Terceiro Reich, declararam que a Sétima era a “sinfonia do triunfo nazi”, enquanto no mundo pós-segunda guerra os comunistas da República Democrática Alemã a interpretaram como uma antecipação do triunfo do proletariado. A Filarmônica de Berlim tinha de tocá-la em todos os anos no aniversário de Hitler.

Um folder com o retrato do compositor alemão Ludwig van Beethoven é visto na loja de lembranças do museu Beethovenhaus, onde Beethoven passou alguns de seus verões e compôs partes de sua 'Nona Sinfonia', que completa 200 anos. Foto: Joe Klamar / AFP

Na década de 1970 continuou a esquizofrenia ideológica em plena Guerra Fria: se foi coroada, a partir de 1972, como o hino do Conselho da Europa e a partir de 1985 como hino oficial da Comunidade Europeia, também a partir de 1974 foi adotada como hino oficial da Rodésia, o regime branco racista da África do Sul.

Em 1989, marcando o final da União Soviética e da guerra fria, o muro que separou por décadas a Alemanha foi derrubado. A comemoração foi um acontecimento transmitido pela televisão para o mundo inteiro, com Leonard Bernstein regendo a Nona junto aos destroços do muro nefasto. E, como Lenny também era um sujeito político, não teve dúvidas: substituiu freude por freihert o título de poema de Schiller e o coro cantou Ode à liberdade.

Não cabem culpas. Afinal, a vida se encarrega de plantar contradições no decorrer da vida de todo ser humano. Com Beethoven também foi assim. Em 1814, escreveu: “Nunca mostre abertamente a todos os homens o desprezo que eles merecem, pois nunca se sabe quando se há de precisar deles”. Dez anos depois, aliás, semanas após a estreia da Nona, Beethoven inclinou-se a considerar a Ode à Alegria um erro – mais do que isso, uma “besteira”, e pretendeu substituí-la por um movimento puramente instrumental.

Uma estreia conturbada

Felizmente, deixou a Nona intacta, tal como estreou há exatos 200 anos. Theodore Albrecht, norte-americano de 78 anos que vem dedicando sua vida a Beethoven, é professor emérito de história da música na Universidade de Kent em Ohio, onde começou a lecionar em 1992. Traduziu para o inglês e editou a correspondência e quatro volumes contendo todos os cadernos de conversação do compositor. E acaba de lançar o livro Beethoven’s Ninth Symphony – Rehearsing and Performing Its 1824 Première (Boydell Press, 322 pgs., fevereiro/2024). (Nona Sinfonia de Beethoven - Ensaiando e Apresentando sua Estreia em 1824, em tradução literal).

Ele declara de início que não vai discutir tecnicamente a sinfonia, nem seu legado do ponto de vista música, político e na cultura do planeta. Debruça-se sobre o concerto mítico do dia 7 de maio de 200 anos atrás em Viena para recriá-lo em todas as minúcias. E entrega o que promete: um raio-X que desmonta versões reproduzidas em muitos livros e vários filmes. Aliás, um dos melhores filmes é O Segredo de Beethoven, de 2006, com Ed Harris ótimo no papel-título, que se permite uma monumental licença poética inventando uma assistente glamorosa que o ajuda a compor a sinfonia; nem ela nem o romance jamais existiram.

Cena do filme 'O segredo de Beethoven', com Ed Harris e Diane Kruger e direção de Agnieszka Holland. Foto: Lukács Dávid/ Myriad Pictures/Divulgação

A história por trás da Nona Sinfonia de Beethoven

Albrecht me lembra um Sherlock Holmes com sua lupa examinando com minúcias inimagináveis cada detalhe daquele dia. Aliás, não só daquele dia. Ele conta a história desde o início de 1823, quando o compositor teve a ideia de faturar uma bolada dos endinheirado ingleses com uma nova obra.

Vou me concentrar no dia 7 de maio de 1824. Como era seu hábito, Beethoven acordou cedo. Era uma sexta-feira de primavera. Seu querido sobrinho Karl saiu às 8 horas para fazer plantão na bilheteria do Teatro Kärntnertor. Seu factótum Anton Schindler chegou em seguida e pediu-lhe um punhado de ingressos de cortesia para o concerto daquela noite. Foi ao barbeiro. Já na hora do almoço, Karl chegou entusiasmado com o volume de ingressos vendidos naquela manhã, mas não o encontrou. Deixou-lhe este bilhete:

“Querido tio! Como devo estar na bilheteria às 3 horas, comi rápido, porque demoraria muito para esperar por você. Nos veremos esta noite (...) houve até brigas nas filas”.

Depois do almoço, Schindler voltou contando que os ensaios não estavam indo bem: a soprano Gertrude Walpurgis Sontag, de apenas 18 anos, e a contralto vienense Caroline Unger, de 20, deixaram enfurecido o maestro Michael Umlauf, que insistia em fazer novo ensaio com elas à tarde. Sarcástico, Beethoven perguntou-lhe se havia mais amadores recrutados para o concerto. Schindler negou, mas acrescentou: “Por favor, perdoe-me por notar que esta Sinfonia é realmente uma exceção em relação a todas as anteriores, e você mesmo deve admitir que é a mais grandiosa e a mais difícil”.

Deste momento em diante, até o retorno à casa após o concerto, o caderno de conversação que Beethoven mantinha sempre consigo devido à surdez não registra mais nada. Isso comprova, afirma Albrecht, “que, na maior parte dos casos, Schindler e o público que estava assistindo - devido ao barulho e à excitação reinante - poderiam falar em voz alta a sua parte das conversas e que Beethoven poderia responder oralmente. Isto fornece uma nova imagem de Beethoven em público durante este período”. Simplificando: ele não estava totalmente surdo, podia conversar com qualquer pessoa desde que o interlocutor falasse mais alto que o habitual. Nem estava mal vestido ou com o cabelo desgrenhado.

Voltemos às preliminares. O concerto começou às 19 horas. Beethoven e Schindler chegaram ao Teatro Kärntnertor às 18h15 e foram aos bastidores cumprimentar os artistas e desejar-lhes boa sorte.

Foi um concerto curto em relação aos habituais, que costumavam durar entre 4 e 6 horas cada. Era difícil para qualquer compositor viabilizar uma academia. Ele precisava fazer um anúncio em jornal pedindo subscrições visando arrecadar dinheiro suficiente para bancar copistas para fazer cópias da partitura e das partes dos naipes de cada obra, assim como alugar o teatro e contratar os músicos. Por isso os programas não tinham a lógica atual dos concertos: empilhavam piano solo, canções, música de câmara, concertos com orquestra, música religiosa, sinfonias, etc.

Um manuscrito da Sinfonia nº 9 em Ré menor, op. 125 do compositor alemão Ludwig van Beethoven é visto em exposição no Theater Museum em Viena, Áustria.  Foto: Joe Klamar / AFP

Talvez pelo prestígio de que já desfrutava àquela altura de sua vida, a Academia de 7 de maio até que foi curta, pouco mais de duas horas. Pela ordem: Abertura Consagração da Casa opus 124 (12′), Kyrie (10′), Credo (20′) e Agnus Dei (15′), da Missa Solemnis opus 123 – intervalo – e Nona, opus 125.

“A orquestra estava situada no palco com o maestro no centro”, escreve Albrecht. Os solistas vocais provavelmente teriam sido colocados à sua frente, para melhor contato visual, com Beethoven (e uma estante separada para sua partitura) perto de Caroline Unger. O coro foi colocado no fosso, provavelmente voltado meio para a frente, para poder observar o maestro no palco.

Em seguida, Albrecht mistura um pouco de suposições com fatos comprovados. Diz que Beethoven “provavelmente” subiu ao palco com o maestro Michael Umlauf antes da abertura. Mas é incisivo ao afirmar que, “ao contrário dos mitos reproduzidos em textos e nos filmes, Beethoven não parecia um gênio desgrenhado. Em vez disso, exibia um novo corte de cabelo (ainda visível no retrato de Decker de 27 de maio), estava barbeado e banhado e – com casaco preto ou verde - estava vestido a caráter. Enquanto Umlauf ficou na frente da orquestra para reger, Beethoven aparentemente ficou de costas para o público e com outra partitura à sua frente. Ele pode até ter indicado os andamentos iniciais para cada movimento, mas isso teria sido mais para demonstrar sua anunciada participação pessoal no concerto do que por qualquer necessidade real”.

Como a Nona soou pela primeira vez

Uma das lendas mais repetidas a respeito da primeira execução da Nona Sinfonia conta que, no final, Caroline Unger pegou o totalmente surdo Beethoven (que virava as páginas de sua partitura) pela manga e apontou-o para o público, para que ele pudesse ver os aplausos e reconhecê-los.

“Os relatos deste incidente são contraditórios”, anota Albrecht. Schindler relatou que “no final da apresentação”, Unger virou o surdo Beethoven para que pudesse ver os aplausos do público. Em 1869, em Londres, a própria Caroline Unger (1803-1877) disse a George Grove que ‘no final desta grande obra, [Beethoven] continuou de pé, de costas para o público, e marcando o tempo, até que [ela] o virou, ou o induziu a se virar e encarar as pessoas que estavam batendo palmas’.”

Nove anos antes, em 1860, o biógrafo americano de Beethoven, Alexander Wheelock Thayer, conheceu o pianista Sigismund Thalberg (1812–1871), maior rival de Liszt, que, aos 12 anos, assistiu àquele concerto. “Vi Thalberg em Paris. Ele me disse [que] estava presente no concerto de Beethoven… [em] 1824. Beethoven estava vestido com fraque preto, lenço de pescoço e colete brancos, roupas íntimas de cetim preto, meias de seda pretas, sapatos com fivelas. Após o Scherzo da Nona Sinfonia, ele viu como Beethoven estava virando as páginas de sua partitura, completamente surdo aos imensos aplausos, e Unger puxou-o pela manga e depois apontou para o público quando ele se virou e fez uma reverência. Umlauf disse ao coro e à orquestra que não prestassem atenção alguma aos gestos de Beethoven naquele momento, mas que todos o observassem”.

Pequenas caixas de música com o retrato do compositor alemão Ludwig van Beethoven são vistas na loja de lembranças do museu Beethovenhaus em Baden bei Wien, Áustria. Foto: Joe Klamar / AFP)

Albrecht argumenta que, do ponto de vista musical, este incidente não faz sentido, pois é impossível confundir o coral final Maestoso (”Alegria, linda centelha dos deuses! Faíscas dos deuses!”, em tradução literal) com o prestíssimo orquestral na coda. Beethoven teria percebido, “através de sua audição existente, mas fraca e vibratória” quando a música parou e quando o ambiente visual geral mudou. No final de um concerto tão cansativo, provavelmente houve tanto alvoroço no palco quanto na plateia. E conclui: “Beethoven nunca teria continuado a virar as páginas e Unger nunca teria tido que virá-lo nessas circunstâncias”.

Estes e outras centenas de exemplos sepultam muitas histórias repetidas nestes dois séculos e que não resistem à pesquisa de Albrecht. Este livro é resultado de uma vida dedicada à garimpagem de fatos e informações de primeira mão, documentais, que clareiem um pouco mais os detalhes daquela mítica sexta-feira histórica, duzentos anos atrás.

Naquela noite nascia uma obra-prima atemporal, que soa contemporânea a cada vez que é interpretada em qualquer lugar do planeta. Justifica-se plenamente, portanto, o esforço e criteriosa pesquisa de décadas de Theodore Albrecht. Os fatos em relação à Nona não parecem mais tão fantasiosos, têm cheiro de fatos reais.

A Nona em gravações

  • A mais emocionante: Leonard Bernstein, Filarmônica de Berlim 1989
  • A da plena maturidade de um maestro: Coro e Orquestra de Chicago – Camilla Nylund, soprano; Ekaterina Gubanova, mezzo-soprano; Matthew Polenzani, tenor; Eric Owens, baixo-baritono - regência de Riccardo Muti. Vídeo ao vivo em concerto em 19 de setembro de 2014.
  • Uma reinvenção: Sinf. 9 em versão para 2 pianos de Liszt mas com tímpanos: Kevin Suherman & Junyan Chen, piano Ethan Skuodas, tímpanos 1h05′

Beethoven, segundo as cartas

Frases típicas do primeiro período:

“Não sou cruel – o sangue fogoso é toda a minha malícia, e meu crime é a juventude. Cruel eu não sou, verdadeiramente eu não sou cruel; embora turbulentos vagalhões sempre deponham contra o meu coração, meu coração é bom. Para ajudar onde for possível, amar a liberdade acima de todas as coisas, nunca negar a verdade, mesmo ao pé do trono!” (no álbum de um amigo, 1792)

Para Franz Anton Hoffmeister:

Viena, 15 de janeiro de 1801

“Deveria haver um único Mercado de Arte no mundo; o artista simplesmente enviaria para lá as suas obras e receberia tanto quanto necessita; da maneira como as coisas são, cada um deve ser meio comerciante acima de tudo, e a sensação que isso desperta em mim – por Deus! – qualifico-a de lastimável.”

Ludwig van Beethoven

Período Maduro:

“Nunca mostre abertamente a todos os homens o desprezo que eles merecem, pois nunca se sabe quando se há de precisar deles.” (Caderno de Anotações, 1814)

“Destino, mostra o teu poder! Não temos nenhum domínio sobre nós mesmos: o que quer que tenha sido determinado deve ser, e que seja então! (...) Viva apenas em sua arte! Embora esteja atualmente restringido por causa dos seus sentidos (defeituosos), esta é contudo a única forma possível de existência para você.” (Caderno de Anotações, 1816)

“A calma e a liberdade são as mais preciosas de todas as posses.” (Caderno de Anotações, 1817)

Ludwig van Beethoven (1770-1827) sempre foi um compositor político. Quando compôs sua terceira sinfonia, em 1803, apelidada Eroica, estava arrebatado pelos ideais da Revolução Francesa, pretendia mudar-se para Paris e dedicou-a a Napoleão Bonaparte. A obra gira em torno de uma marcha fúnebre que evoca as cerimônias patrióticas típicas da Revolução Francesa que o fascinava.

Esta história já foi repetida mil e uma vezes: e quando este se autocoorou imperador da França a substituiu para em louvor de um herói. Vinte e um anos depois, quando estreou sua Nona Sinfonia em 7 de maio de 1824, seu quarto e revolucionário movimento, a Ode à Alegria, com solistas e coral, transformou-a na sinfonia que reina até hoje, e provavelmente nos próximos séculos, como obra máxima da música ocidental. A Eroica e a Ode à Alegria foram duas das músicas mais manipuladas politicamente nos últimos dois séculos.

Na República de Weimar, os comunistas celebraram a Eroica como obra revolucionária, enquanto os nazistas ouviam nela uma representação do poder militar. Aliás, outra de suas sinfonias, a Sétima, também entra neste balaio ideológico: os mesmos nazistas, já então de 1933 em diante, com a instalação do Terceiro Reich, declararam que a Sétima era a “sinfonia do triunfo nazi”, enquanto no mundo pós-segunda guerra os comunistas da República Democrática Alemã a interpretaram como uma antecipação do triunfo do proletariado. A Filarmônica de Berlim tinha de tocá-la em todos os anos no aniversário de Hitler.

Um folder com o retrato do compositor alemão Ludwig van Beethoven é visto na loja de lembranças do museu Beethovenhaus, onde Beethoven passou alguns de seus verões e compôs partes de sua 'Nona Sinfonia', que completa 200 anos. Foto: Joe Klamar / AFP

Na década de 1970 continuou a esquizofrenia ideológica em plena Guerra Fria: se foi coroada, a partir de 1972, como o hino do Conselho da Europa e a partir de 1985 como hino oficial da Comunidade Europeia, também a partir de 1974 foi adotada como hino oficial da Rodésia, o regime branco racista da África do Sul.

Em 1989, marcando o final da União Soviética e da guerra fria, o muro que separou por décadas a Alemanha foi derrubado. A comemoração foi um acontecimento transmitido pela televisão para o mundo inteiro, com Leonard Bernstein regendo a Nona junto aos destroços do muro nefasto. E, como Lenny também era um sujeito político, não teve dúvidas: substituiu freude por freihert o título de poema de Schiller e o coro cantou Ode à liberdade.

Não cabem culpas. Afinal, a vida se encarrega de plantar contradições no decorrer da vida de todo ser humano. Com Beethoven também foi assim. Em 1814, escreveu: “Nunca mostre abertamente a todos os homens o desprezo que eles merecem, pois nunca se sabe quando se há de precisar deles”. Dez anos depois, aliás, semanas após a estreia da Nona, Beethoven inclinou-se a considerar a Ode à Alegria um erro – mais do que isso, uma “besteira”, e pretendeu substituí-la por um movimento puramente instrumental.

Uma estreia conturbada

Felizmente, deixou a Nona intacta, tal como estreou há exatos 200 anos. Theodore Albrecht, norte-americano de 78 anos que vem dedicando sua vida a Beethoven, é professor emérito de história da música na Universidade de Kent em Ohio, onde começou a lecionar em 1992. Traduziu para o inglês e editou a correspondência e quatro volumes contendo todos os cadernos de conversação do compositor. E acaba de lançar o livro Beethoven’s Ninth Symphony – Rehearsing and Performing Its 1824 Première (Boydell Press, 322 pgs., fevereiro/2024). (Nona Sinfonia de Beethoven - Ensaiando e Apresentando sua Estreia em 1824, em tradução literal).

Ele declara de início que não vai discutir tecnicamente a sinfonia, nem seu legado do ponto de vista música, político e na cultura do planeta. Debruça-se sobre o concerto mítico do dia 7 de maio de 200 anos atrás em Viena para recriá-lo em todas as minúcias. E entrega o que promete: um raio-X que desmonta versões reproduzidas em muitos livros e vários filmes. Aliás, um dos melhores filmes é O Segredo de Beethoven, de 2006, com Ed Harris ótimo no papel-título, que se permite uma monumental licença poética inventando uma assistente glamorosa que o ajuda a compor a sinfonia; nem ela nem o romance jamais existiram.

Cena do filme 'O segredo de Beethoven', com Ed Harris e Diane Kruger e direção de Agnieszka Holland. Foto: Lukács Dávid/ Myriad Pictures/Divulgação

A história por trás da Nona Sinfonia de Beethoven

Albrecht me lembra um Sherlock Holmes com sua lupa examinando com minúcias inimagináveis cada detalhe daquele dia. Aliás, não só daquele dia. Ele conta a história desde o início de 1823, quando o compositor teve a ideia de faturar uma bolada dos endinheirado ingleses com uma nova obra.

Vou me concentrar no dia 7 de maio de 1824. Como era seu hábito, Beethoven acordou cedo. Era uma sexta-feira de primavera. Seu querido sobrinho Karl saiu às 8 horas para fazer plantão na bilheteria do Teatro Kärntnertor. Seu factótum Anton Schindler chegou em seguida e pediu-lhe um punhado de ingressos de cortesia para o concerto daquela noite. Foi ao barbeiro. Já na hora do almoço, Karl chegou entusiasmado com o volume de ingressos vendidos naquela manhã, mas não o encontrou. Deixou-lhe este bilhete:

“Querido tio! Como devo estar na bilheteria às 3 horas, comi rápido, porque demoraria muito para esperar por você. Nos veremos esta noite (...) houve até brigas nas filas”.

Depois do almoço, Schindler voltou contando que os ensaios não estavam indo bem: a soprano Gertrude Walpurgis Sontag, de apenas 18 anos, e a contralto vienense Caroline Unger, de 20, deixaram enfurecido o maestro Michael Umlauf, que insistia em fazer novo ensaio com elas à tarde. Sarcástico, Beethoven perguntou-lhe se havia mais amadores recrutados para o concerto. Schindler negou, mas acrescentou: “Por favor, perdoe-me por notar que esta Sinfonia é realmente uma exceção em relação a todas as anteriores, e você mesmo deve admitir que é a mais grandiosa e a mais difícil”.

Deste momento em diante, até o retorno à casa após o concerto, o caderno de conversação que Beethoven mantinha sempre consigo devido à surdez não registra mais nada. Isso comprova, afirma Albrecht, “que, na maior parte dos casos, Schindler e o público que estava assistindo - devido ao barulho e à excitação reinante - poderiam falar em voz alta a sua parte das conversas e que Beethoven poderia responder oralmente. Isto fornece uma nova imagem de Beethoven em público durante este período”. Simplificando: ele não estava totalmente surdo, podia conversar com qualquer pessoa desde que o interlocutor falasse mais alto que o habitual. Nem estava mal vestido ou com o cabelo desgrenhado.

Voltemos às preliminares. O concerto começou às 19 horas. Beethoven e Schindler chegaram ao Teatro Kärntnertor às 18h15 e foram aos bastidores cumprimentar os artistas e desejar-lhes boa sorte.

Foi um concerto curto em relação aos habituais, que costumavam durar entre 4 e 6 horas cada. Era difícil para qualquer compositor viabilizar uma academia. Ele precisava fazer um anúncio em jornal pedindo subscrições visando arrecadar dinheiro suficiente para bancar copistas para fazer cópias da partitura e das partes dos naipes de cada obra, assim como alugar o teatro e contratar os músicos. Por isso os programas não tinham a lógica atual dos concertos: empilhavam piano solo, canções, música de câmara, concertos com orquestra, música religiosa, sinfonias, etc.

Um manuscrito da Sinfonia nº 9 em Ré menor, op. 125 do compositor alemão Ludwig van Beethoven é visto em exposição no Theater Museum em Viena, Áustria.  Foto: Joe Klamar / AFP

Talvez pelo prestígio de que já desfrutava àquela altura de sua vida, a Academia de 7 de maio até que foi curta, pouco mais de duas horas. Pela ordem: Abertura Consagração da Casa opus 124 (12′), Kyrie (10′), Credo (20′) e Agnus Dei (15′), da Missa Solemnis opus 123 – intervalo – e Nona, opus 125.

“A orquestra estava situada no palco com o maestro no centro”, escreve Albrecht. Os solistas vocais provavelmente teriam sido colocados à sua frente, para melhor contato visual, com Beethoven (e uma estante separada para sua partitura) perto de Caroline Unger. O coro foi colocado no fosso, provavelmente voltado meio para a frente, para poder observar o maestro no palco.

Em seguida, Albrecht mistura um pouco de suposições com fatos comprovados. Diz que Beethoven “provavelmente” subiu ao palco com o maestro Michael Umlauf antes da abertura. Mas é incisivo ao afirmar que, “ao contrário dos mitos reproduzidos em textos e nos filmes, Beethoven não parecia um gênio desgrenhado. Em vez disso, exibia um novo corte de cabelo (ainda visível no retrato de Decker de 27 de maio), estava barbeado e banhado e – com casaco preto ou verde - estava vestido a caráter. Enquanto Umlauf ficou na frente da orquestra para reger, Beethoven aparentemente ficou de costas para o público e com outra partitura à sua frente. Ele pode até ter indicado os andamentos iniciais para cada movimento, mas isso teria sido mais para demonstrar sua anunciada participação pessoal no concerto do que por qualquer necessidade real”.

Como a Nona soou pela primeira vez

Uma das lendas mais repetidas a respeito da primeira execução da Nona Sinfonia conta que, no final, Caroline Unger pegou o totalmente surdo Beethoven (que virava as páginas de sua partitura) pela manga e apontou-o para o público, para que ele pudesse ver os aplausos e reconhecê-los.

“Os relatos deste incidente são contraditórios”, anota Albrecht. Schindler relatou que “no final da apresentação”, Unger virou o surdo Beethoven para que pudesse ver os aplausos do público. Em 1869, em Londres, a própria Caroline Unger (1803-1877) disse a George Grove que ‘no final desta grande obra, [Beethoven] continuou de pé, de costas para o público, e marcando o tempo, até que [ela] o virou, ou o induziu a se virar e encarar as pessoas que estavam batendo palmas’.”

Nove anos antes, em 1860, o biógrafo americano de Beethoven, Alexander Wheelock Thayer, conheceu o pianista Sigismund Thalberg (1812–1871), maior rival de Liszt, que, aos 12 anos, assistiu àquele concerto. “Vi Thalberg em Paris. Ele me disse [que] estava presente no concerto de Beethoven… [em] 1824. Beethoven estava vestido com fraque preto, lenço de pescoço e colete brancos, roupas íntimas de cetim preto, meias de seda pretas, sapatos com fivelas. Após o Scherzo da Nona Sinfonia, ele viu como Beethoven estava virando as páginas de sua partitura, completamente surdo aos imensos aplausos, e Unger puxou-o pela manga e depois apontou para o público quando ele se virou e fez uma reverência. Umlauf disse ao coro e à orquestra que não prestassem atenção alguma aos gestos de Beethoven naquele momento, mas que todos o observassem”.

Pequenas caixas de música com o retrato do compositor alemão Ludwig van Beethoven são vistas na loja de lembranças do museu Beethovenhaus em Baden bei Wien, Áustria. Foto: Joe Klamar / AFP)

Albrecht argumenta que, do ponto de vista musical, este incidente não faz sentido, pois é impossível confundir o coral final Maestoso (”Alegria, linda centelha dos deuses! Faíscas dos deuses!”, em tradução literal) com o prestíssimo orquestral na coda. Beethoven teria percebido, “através de sua audição existente, mas fraca e vibratória” quando a música parou e quando o ambiente visual geral mudou. No final de um concerto tão cansativo, provavelmente houve tanto alvoroço no palco quanto na plateia. E conclui: “Beethoven nunca teria continuado a virar as páginas e Unger nunca teria tido que virá-lo nessas circunstâncias”.

Estes e outras centenas de exemplos sepultam muitas histórias repetidas nestes dois séculos e que não resistem à pesquisa de Albrecht. Este livro é resultado de uma vida dedicada à garimpagem de fatos e informações de primeira mão, documentais, que clareiem um pouco mais os detalhes daquela mítica sexta-feira histórica, duzentos anos atrás.

Naquela noite nascia uma obra-prima atemporal, que soa contemporânea a cada vez que é interpretada em qualquer lugar do planeta. Justifica-se plenamente, portanto, o esforço e criteriosa pesquisa de décadas de Theodore Albrecht. Os fatos em relação à Nona não parecem mais tão fantasiosos, têm cheiro de fatos reais.

A Nona em gravações

  • A mais emocionante: Leonard Bernstein, Filarmônica de Berlim 1989
  • A da plena maturidade de um maestro: Coro e Orquestra de Chicago – Camilla Nylund, soprano; Ekaterina Gubanova, mezzo-soprano; Matthew Polenzani, tenor; Eric Owens, baixo-baritono - regência de Riccardo Muti. Vídeo ao vivo em concerto em 19 de setembro de 2014.
  • Uma reinvenção: Sinf. 9 em versão para 2 pianos de Liszt mas com tímpanos: Kevin Suherman & Junyan Chen, piano Ethan Skuodas, tímpanos 1h05′

Beethoven, segundo as cartas

Frases típicas do primeiro período:

“Não sou cruel – o sangue fogoso é toda a minha malícia, e meu crime é a juventude. Cruel eu não sou, verdadeiramente eu não sou cruel; embora turbulentos vagalhões sempre deponham contra o meu coração, meu coração é bom. Para ajudar onde for possível, amar a liberdade acima de todas as coisas, nunca negar a verdade, mesmo ao pé do trono!” (no álbum de um amigo, 1792)

Para Franz Anton Hoffmeister:

Viena, 15 de janeiro de 1801

“Deveria haver um único Mercado de Arte no mundo; o artista simplesmente enviaria para lá as suas obras e receberia tanto quanto necessita; da maneira como as coisas são, cada um deve ser meio comerciante acima de tudo, e a sensação que isso desperta em mim – por Deus! – qualifico-a de lastimável.”

Ludwig van Beethoven

Período Maduro:

“Nunca mostre abertamente a todos os homens o desprezo que eles merecem, pois nunca se sabe quando se há de precisar deles.” (Caderno de Anotações, 1814)

“Destino, mostra o teu poder! Não temos nenhum domínio sobre nós mesmos: o que quer que tenha sido determinado deve ser, e que seja então! (...) Viva apenas em sua arte! Embora esteja atualmente restringido por causa dos seus sentidos (defeituosos), esta é contudo a única forma possível de existência para você.” (Caderno de Anotações, 1816)

“A calma e a liberdade são as mais preciosas de todas as posses.” (Caderno de Anotações, 1817)

Ludwig van Beethoven (1770-1827) sempre foi um compositor político. Quando compôs sua terceira sinfonia, em 1803, apelidada Eroica, estava arrebatado pelos ideais da Revolução Francesa, pretendia mudar-se para Paris e dedicou-a a Napoleão Bonaparte. A obra gira em torno de uma marcha fúnebre que evoca as cerimônias patrióticas típicas da Revolução Francesa que o fascinava.

Esta história já foi repetida mil e uma vezes: e quando este se autocoorou imperador da França a substituiu para em louvor de um herói. Vinte e um anos depois, quando estreou sua Nona Sinfonia em 7 de maio de 1824, seu quarto e revolucionário movimento, a Ode à Alegria, com solistas e coral, transformou-a na sinfonia que reina até hoje, e provavelmente nos próximos séculos, como obra máxima da música ocidental. A Eroica e a Ode à Alegria foram duas das músicas mais manipuladas politicamente nos últimos dois séculos.

Na República de Weimar, os comunistas celebraram a Eroica como obra revolucionária, enquanto os nazistas ouviam nela uma representação do poder militar. Aliás, outra de suas sinfonias, a Sétima, também entra neste balaio ideológico: os mesmos nazistas, já então de 1933 em diante, com a instalação do Terceiro Reich, declararam que a Sétima era a “sinfonia do triunfo nazi”, enquanto no mundo pós-segunda guerra os comunistas da República Democrática Alemã a interpretaram como uma antecipação do triunfo do proletariado. A Filarmônica de Berlim tinha de tocá-la em todos os anos no aniversário de Hitler.

Um folder com o retrato do compositor alemão Ludwig van Beethoven é visto na loja de lembranças do museu Beethovenhaus, onde Beethoven passou alguns de seus verões e compôs partes de sua 'Nona Sinfonia', que completa 200 anos. Foto: Joe Klamar / AFP

Na década de 1970 continuou a esquizofrenia ideológica em plena Guerra Fria: se foi coroada, a partir de 1972, como o hino do Conselho da Europa e a partir de 1985 como hino oficial da Comunidade Europeia, também a partir de 1974 foi adotada como hino oficial da Rodésia, o regime branco racista da África do Sul.

Em 1989, marcando o final da União Soviética e da guerra fria, o muro que separou por décadas a Alemanha foi derrubado. A comemoração foi um acontecimento transmitido pela televisão para o mundo inteiro, com Leonard Bernstein regendo a Nona junto aos destroços do muro nefasto. E, como Lenny também era um sujeito político, não teve dúvidas: substituiu freude por freihert o título de poema de Schiller e o coro cantou Ode à liberdade.

Não cabem culpas. Afinal, a vida se encarrega de plantar contradições no decorrer da vida de todo ser humano. Com Beethoven também foi assim. Em 1814, escreveu: “Nunca mostre abertamente a todos os homens o desprezo que eles merecem, pois nunca se sabe quando se há de precisar deles”. Dez anos depois, aliás, semanas após a estreia da Nona, Beethoven inclinou-se a considerar a Ode à Alegria um erro – mais do que isso, uma “besteira”, e pretendeu substituí-la por um movimento puramente instrumental.

Uma estreia conturbada

Felizmente, deixou a Nona intacta, tal como estreou há exatos 200 anos. Theodore Albrecht, norte-americano de 78 anos que vem dedicando sua vida a Beethoven, é professor emérito de história da música na Universidade de Kent em Ohio, onde começou a lecionar em 1992. Traduziu para o inglês e editou a correspondência e quatro volumes contendo todos os cadernos de conversação do compositor. E acaba de lançar o livro Beethoven’s Ninth Symphony – Rehearsing and Performing Its 1824 Première (Boydell Press, 322 pgs., fevereiro/2024). (Nona Sinfonia de Beethoven - Ensaiando e Apresentando sua Estreia em 1824, em tradução literal).

Ele declara de início que não vai discutir tecnicamente a sinfonia, nem seu legado do ponto de vista música, político e na cultura do planeta. Debruça-se sobre o concerto mítico do dia 7 de maio de 200 anos atrás em Viena para recriá-lo em todas as minúcias. E entrega o que promete: um raio-X que desmonta versões reproduzidas em muitos livros e vários filmes. Aliás, um dos melhores filmes é O Segredo de Beethoven, de 2006, com Ed Harris ótimo no papel-título, que se permite uma monumental licença poética inventando uma assistente glamorosa que o ajuda a compor a sinfonia; nem ela nem o romance jamais existiram.

Cena do filme 'O segredo de Beethoven', com Ed Harris e Diane Kruger e direção de Agnieszka Holland. Foto: Lukács Dávid/ Myriad Pictures/Divulgação

A história por trás da Nona Sinfonia de Beethoven

Albrecht me lembra um Sherlock Holmes com sua lupa examinando com minúcias inimagináveis cada detalhe daquele dia. Aliás, não só daquele dia. Ele conta a história desde o início de 1823, quando o compositor teve a ideia de faturar uma bolada dos endinheirado ingleses com uma nova obra.

Vou me concentrar no dia 7 de maio de 1824. Como era seu hábito, Beethoven acordou cedo. Era uma sexta-feira de primavera. Seu querido sobrinho Karl saiu às 8 horas para fazer plantão na bilheteria do Teatro Kärntnertor. Seu factótum Anton Schindler chegou em seguida e pediu-lhe um punhado de ingressos de cortesia para o concerto daquela noite. Foi ao barbeiro. Já na hora do almoço, Karl chegou entusiasmado com o volume de ingressos vendidos naquela manhã, mas não o encontrou. Deixou-lhe este bilhete:

“Querido tio! Como devo estar na bilheteria às 3 horas, comi rápido, porque demoraria muito para esperar por você. Nos veremos esta noite (...) houve até brigas nas filas”.

Depois do almoço, Schindler voltou contando que os ensaios não estavam indo bem: a soprano Gertrude Walpurgis Sontag, de apenas 18 anos, e a contralto vienense Caroline Unger, de 20, deixaram enfurecido o maestro Michael Umlauf, que insistia em fazer novo ensaio com elas à tarde. Sarcástico, Beethoven perguntou-lhe se havia mais amadores recrutados para o concerto. Schindler negou, mas acrescentou: “Por favor, perdoe-me por notar que esta Sinfonia é realmente uma exceção em relação a todas as anteriores, e você mesmo deve admitir que é a mais grandiosa e a mais difícil”.

Deste momento em diante, até o retorno à casa após o concerto, o caderno de conversação que Beethoven mantinha sempre consigo devido à surdez não registra mais nada. Isso comprova, afirma Albrecht, “que, na maior parte dos casos, Schindler e o público que estava assistindo - devido ao barulho e à excitação reinante - poderiam falar em voz alta a sua parte das conversas e que Beethoven poderia responder oralmente. Isto fornece uma nova imagem de Beethoven em público durante este período”. Simplificando: ele não estava totalmente surdo, podia conversar com qualquer pessoa desde que o interlocutor falasse mais alto que o habitual. Nem estava mal vestido ou com o cabelo desgrenhado.

Voltemos às preliminares. O concerto começou às 19 horas. Beethoven e Schindler chegaram ao Teatro Kärntnertor às 18h15 e foram aos bastidores cumprimentar os artistas e desejar-lhes boa sorte.

Foi um concerto curto em relação aos habituais, que costumavam durar entre 4 e 6 horas cada. Era difícil para qualquer compositor viabilizar uma academia. Ele precisava fazer um anúncio em jornal pedindo subscrições visando arrecadar dinheiro suficiente para bancar copistas para fazer cópias da partitura e das partes dos naipes de cada obra, assim como alugar o teatro e contratar os músicos. Por isso os programas não tinham a lógica atual dos concertos: empilhavam piano solo, canções, música de câmara, concertos com orquestra, música religiosa, sinfonias, etc.

Um manuscrito da Sinfonia nº 9 em Ré menor, op. 125 do compositor alemão Ludwig van Beethoven é visto em exposição no Theater Museum em Viena, Áustria.  Foto: Joe Klamar / AFP

Talvez pelo prestígio de que já desfrutava àquela altura de sua vida, a Academia de 7 de maio até que foi curta, pouco mais de duas horas. Pela ordem: Abertura Consagração da Casa opus 124 (12′), Kyrie (10′), Credo (20′) e Agnus Dei (15′), da Missa Solemnis opus 123 – intervalo – e Nona, opus 125.

“A orquestra estava situada no palco com o maestro no centro”, escreve Albrecht. Os solistas vocais provavelmente teriam sido colocados à sua frente, para melhor contato visual, com Beethoven (e uma estante separada para sua partitura) perto de Caroline Unger. O coro foi colocado no fosso, provavelmente voltado meio para a frente, para poder observar o maestro no palco.

Em seguida, Albrecht mistura um pouco de suposições com fatos comprovados. Diz que Beethoven “provavelmente” subiu ao palco com o maestro Michael Umlauf antes da abertura. Mas é incisivo ao afirmar que, “ao contrário dos mitos reproduzidos em textos e nos filmes, Beethoven não parecia um gênio desgrenhado. Em vez disso, exibia um novo corte de cabelo (ainda visível no retrato de Decker de 27 de maio), estava barbeado e banhado e – com casaco preto ou verde - estava vestido a caráter. Enquanto Umlauf ficou na frente da orquestra para reger, Beethoven aparentemente ficou de costas para o público e com outra partitura à sua frente. Ele pode até ter indicado os andamentos iniciais para cada movimento, mas isso teria sido mais para demonstrar sua anunciada participação pessoal no concerto do que por qualquer necessidade real”.

Como a Nona soou pela primeira vez

Uma das lendas mais repetidas a respeito da primeira execução da Nona Sinfonia conta que, no final, Caroline Unger pegou o totalmente surdo Beethoven (que virava as páginas de sua partitura) pela manga e apontou-o para o público, para que ele pudesse ver os aplausos e reconhecê-los.

“Os relatos deste incidente são contraditórios”, anota Albrecht. Schindler relatou que “no final da apresentação”, Unger virou o surdo Beethoven para que pudesse ver os aplausos do público. Em 1869, em Londres, a própria Caroline Unger (1803-1877) disse a George Grove que ‘no final desta grande obra, [Beethoven] continuou de pé, de costas para o público, e marcando o tempo, até que [ela] o virou, ou o induziu a se virar e encarar as pessoas que estavam batendo palmas’.”

Nove anos antes, em 1860, o biógrafo americano de Beethoven, Alexander Wheelock Thayer, conheceu o pianista Sigismund Thalberg (1812–1871), maior rival de Liszt, que, aos 12 anos, assistiu àquele concerto. “Vi Thalberg em Paris. Ele me disse [que] estava presente no concerto de Beethoven… [em] 1824. Beethoven estava vestido com fraque preto, lenço de pescoço e colete brancos, roupas íntimas de cetim preto, meias de seda pretas, sapatos com fivelas. Após o Scherzo da Nona Sinfonia, ele viu como Beethoven estava virando as páginas de sua partitura, completamente surdo aos imensos aplausos, e Unger puxou-o pela manga e depois apontou para o público quando ele se virou e fez uma reverência. Umlauf disse ao coro e à orquestra que não prestassem atenção alguma aos gestos de Beethoven naquele momento, mas que todos o observassem”.

Pequenas caixas de música com o retrato do compositor alemão Ludwig van Beethoven são vistas na loja de lembranças do museu Beethovenhaus em Baden bei Wien, Áustria. Foto: Joe Klamar / AFP)

Albrecht argumenta que, do ponto de vista musical, este incidente não faz sentido, pois é impossível confundir o coral final Maestoso (”Alegria, linda centelha dos deuses! Faíscas dos deuses!”, em tradução literal) com o prestíssimo orquestral na coda. Beethoven teria percebido, “através de sua audição existente, mas fraca e vibratória” quando a música parou e quando o ambiente visual geral mudou. No final de um concerto tão cansativo, provavelmente houve tanto alvoroço no palco quanto na plateia. E conclui: “Beethoven nunca teria continuado a virar as páginas e Unger nunca teria tido que virá-lo nessas circunstâncias”.

Estes e outras centenas de exemplos sepultam muitas histórias repetidas nestes dois séculos e que não resistem à pesquisa de Albrecht. Este livro é resultado de uma vida dedicada à garimpagem de fatos e informações de primeira mão, documentais, que clareiem um pouco mais os detalhes daquela mítica sexta-feira histórica, duzentos anos atrás.

Naquela noite nascia uma obra-prima atemporal, que soa contemporânea a cada vez que é interpretada em qualquer lugar do planeta. Justifica-se plenamente, portanto, o esforço e criteriosa pesquisa de décadas de Theodore Albrecht. Os fatos em relação à Nona não parecem mais tão fantasiosos, têm cheiro de fatos reais.

A Nona em gravações

  • A mais emocionante: Leonard Bernstein, Filarmônica de Berlim 1989
  • A da plena maturidade de um maestro: Coro e Orquestra de Chicago – Camilla Nylund, soprano; Ekaterina Gubanova, mezzo-soprano; Matthew Polenzani, tenor; Eric Owens, baixo-baritono - regência de Riccardo Muti. Vídeo ao vivo em concerto em 19 de setembro de 2014.
  • Uma reinvenção: Sinf. 9 em versão para 2 pianos de Liszt mas com tímpanos: Kevin Suherman & Junyan Chen, piano Ethan Skuodas, tímpanos 1h05′

Beethoven, segundo as cartas

Frases típicas do primeiro período:

“Não sou cruel – o sangue fogoso é toda a minha malícia, e meu crime é a juventude. Cruel eu não sou, verdadeiramente eu não sou cruel; embora turbulentos vagalhões sempre deponham contra o meu coração, meu coração é bom. Para ajudar onde for possível, amar a liberdade acima de todas as coisas, nunca negar a verdade, mesmo ao pé do trono!” (no álbum de um amigo, 1792)

Para Franz Anton Hoffmeister:

Viena, 15 de janeiro de 1801

“Deveria haver um único Mercado de Arte no mundo; o artista simplesmente enviaria para lá as suas obras e receberia tanto quanto necessita; da maneira como as coisas são, cada um deve ser meio comerciante acima de tudo, e a sensação que isso desperta em mim – por Deus! – qualifico-a de lastimável.”

Ludwig van Beethoven

Período Maduro:

“Nunca mostre abertamente a todos os homens o desprezo que eles merecem, pois nunca se sabe quando se há de precisar deles.” (Caderno de Anotações, 1814)

“Destino, mostra o teu poder! Não temos nenhum domínio sobre nós mesmos: o que quer que tenha sido determinado deve ser, e que seja então! (...) Viva apenas em sua arte! Embora esteja atualmente restringido por causa dos seus sentidos (defeituosos), esta é contudo a única forma possível de existência para você.” (Caderno de Anotações, 1816)

“A calma e a liberdade são as mais preciosas de todas as posses.” (Caderno de Anotações, 1817)

Ludwig van Beethoven (1770-1827) sempre foi um compositor político. Quando compôs sua terceira sinfonia, em 1803, apelidada Eroica, estava arrebatado pelos ideais da Revolução Francesa, pretendia mudar-se para Paris e dedicou-a a Napoleão Bonaparte. A obra gira em torno de uma marcha fúnebre que evoca as cerimônias patrióticas típicas da Revolução Francesa que o fascinava.

Esta história já foi repetida mil e uma vezes: e quando este se autocoorou imperador da França a substituiu para em louvor de um herói. Vinte e um anos depois, quando estreou sua Nona Sinfonia em 7 de maio de 1824, seu quarto e revolucionário movimento, a Ode à Alegria, com solistas e coral, transformou-a na sinfonia que reina até hoje, e provavelmente nos próximos séculos, como obra máxima da música ocidental. A Eroica e a Ode à Alegria foram duas das músicas mais manipuladas politicamente nos últimos dois séculos.

Na República de Weimar, os comunistas celebraram a Eroica como obra revolucionária, enquanto os nazistas ouviam nela uma representação do poder militar. Aliás, outra de suas sinfonias, a Sétima, também entra neste balaio ideológico: os mesmos nazistas, já então de 1933 em diante, com a instalação do Terceiro Reich, declararam que a Sétima era a “sinfonia do triunfo nazi”, enquanto no mundo pós-segunda guerra os comunistas da República Democrática Alemã a interpretaram como uma antecipação do triunfo do proletariado. A Filarmônica de Berlim tinha de tocá-la em todos os anos no aniversário de Hitler.

Um folder com o retrato do compositor alemão Ludwig van Beethoven é visto na loja de lembranças do museu Beethovenhaus, onde Beethoven passou alguns de seus verões e compôs partes de sua 'Nona Sinfonia', que completa 200 anos. Foto: Joe Klamar / AFP

Na década de 1970 continuou a esquizofrenia ideológica em plena Guerra Fria: se foi coroada, a partir de 1972, como o hino do Conselho da Europa e a partir de 1985 como hino oficial da Comunidade Europeia, também a partir de 1974 foi adotada como hino oficial da Rodésia, o regime branco racista da África do Sul.

Em 1989, marcando o final da União Soviética e da guerra fria, o muro que separou por décadas a Alemanha foi derrubado. A comemoração foi um acontecimento transmitido pela televisão para o mundo inteiro, com Leonard Bernstein regendo a Nona junto aos destroços do muro nefasto. E, como Lenny também era um sujeito político, não teve dúvidas: substituiu freude por freihert o título de poema de Schiller e o coro cantou Ode à liberdade.

Não cabem culpas. Afinal, a vida se encarrega de plantar contradições no decorrer da vida de todo ser humano. Com Beethoven também foi assim. Em 1814, escreveu: “Nunca mostre abertamente a todos os homens o desprezo que eles merecem, pois nunca se sabe quando se há de precisar deles”. Dez anos depois, aliás, semanas após a estreia da Nona, Beethoven inclinou-se a considerar a Ode à Alegria um erro – mais do que isso, uma “besteira”, e pretendeu substituí-la por um movimento puramente instrumental.

Uma estreia conturbada

Felizmente, deixou a Nona intacta, tal como estreou há exatos 200 anos. Theodore Albrecht, norte-americano de 78 anos que vem dedicando sua vida a Beethoven, é professor emérito de história da música na Universidade de Kent em Ohio, onde começou a lecionar em 1992. Traduziu para o inglês e editou a correspondência e quatro volumes contendo todos os cadernos de conversação do compositor. E acaba de lançar o livro Beethoven’s Ninth Symphony – Rehearsing and Performing Its 1824 Première (Boydell Press, 322 pgs., fevereiro/2024). (Nona Sinfonia de Beethoven - Ensaiando e Apresentando sua Estreia em 1824, em tradução literal).

Ele declara de início que não vai discutir tecnicamente a sinfonia, nem seu legado do ponto de vista música, político e na cultura do planeta. Debruça-se sobre o concerto mítico do dia 7 de maio de 200 anos atrás em Viena para recriá-lo em todas as minúcias. E entrega o que promete: um raio-X que desmonta versões reproduzidas em muitos livros e vários filmes. Aliás, um dos melhores filmes é O Segredo de Beethoven, de 2006, com Ed Harris ótimo no papel-título, que se permite uma monumental licença poética inventando uma assistente glamorosa que o ajuda a compor a sinfonia; nem ela nem o romance jamais existiram.

Cena do filme 'O segredo de Beethoven', com Ed Harris e Diane Kruger e direção de Agnieszka Holland. Foto: Lukács Dávid/ Myriad Pictures/Divulgação

A história por trás da Nona Sinfonia de Beethoven

Albrecht me lembra um Sherlock Holmes com sua lupa examinando com minúcias inimagináveis cada detalhe daquele dia. Aliás, não só daquele dia. Ele conta a história desde o início de 1823, quando o compositor teve a ideia de faturar uma bolada dos endinheirado ingleses com uma nova obra.

Vou me concentrar no dia 7 de maio de 1824. Como era seu hábito, Beethoven acordou cedo. Era uma sexta-feira de primavera. Seu querido sobrinho Karl saiu às 8 horas para fazer plantão na bilheteria do Teatro Kärntnertor. Seu factótum Anton Schindler chegou em seguida e pediu-lhe um punhado de ingressos de cortesia para o concerto daquela noite. Foi ao barbeiro. Já na hora do almoço, Karl chegou entusiasmado com o volume de ingressos vendidos naquela manhã, mas não o encontrou. Deixou-lhe este bilhete:

“Querido tio! Como devo estar na bilheteria às 3 horas, comi rápido, porque demoraria muito para esperar por você. Nos veremos esta noite (...) houve até brigas nas filas”.

Depois do almoço, Schindler voltou contando que os ensaios não estavam indo bem: a soprano Gertrude Walpurgis Sontag, de apenas 18 anos, e a contralto vienense Caroline Unger, de 20, deixaram enfurecido o maestro Michael Umlauf, que insistia em fazer novo ensaio com elas à tarde. Sarcástico, Beethoven perguntou-lhe se havia mais amadores recrutados para o concerto. Schindler negou, mas acrescentou: “Por favor, perdoe-me por notar que esta Sinfonia é realmente uma exceção em relação a todas as anteriores, e você mesmo deve admitir que é a mais grandiosa e a mais difícil”.

Deste momento em diante, até o retorno à casa após o concerto, o caderno de conversação que Beethoven mantinha sempre consigo devido à surdez não registra mais nada. Isso comprova, afirma Albrecht, “que, na maior parte dos casos, Schindler e o público que estava assistindo - devido ao barulho e à excitação reinante - poderiam falar em voz alta a sua parte das conversas e que Beethoven poderia responder oralmente. Isto fornece uma nova imagem de Beethoven em público durante este período”. Simplificando: ele não estava totalmente surdo, podia conversar com qualquer pessoa desde que o interlocutor falasse mais alto que o habitual. Nem estava mal vestido ou com o cabelo desgrenhado.

Voltemos às preliminares. O concerto começou às 19 horas. Beethoven e Schindler chegaram ao Teatro Kärntnertor às 18h15 e foram aos bastidores cumprimentar os artistas e desejar-lhes boa sorte.

Foi um concerto curto em relação aos habituais, que costumavam durar entre 4 e 6 horas cada. Era difícil para qualquer compositor viabilizar uma academia. Ele precisava fazer um anúncio em jornal pedindo subscrições visando arrecadar dinheiro suficiente para bancar copistas para fazer cópias da partitura e das partes dos naipes de cada obra, assim como alugar o teatro e contratar os músicos. Por isso os programas não tinham a lógica atual dos concertos: empilhavam piano solo, canções, música de câmara, concertos com orquestra, música religiosa, sinfonias, etc.

Um manuscrito da Sinfonia nº 9 em Ré menor, op. 125 do compositor alemão Ludwig van Beethoven é visto em exposição no Theater Museum em Viena, Áustria.  Foto: Joe Klamar / AFP

Talvez pelo prestígio de que já desfrutava àquela altura de sua vida, a Academia de 7 de maio até que foi curta, pouco mais de duas horas. Pela ordem: Abertura Consagração da Casa opus 124 (12′), Kyrie (10′), Credo (20′) e Agnus Dei (15′), da Missa Solemnis opus 123 – intervalo – e Nona, opus 125.

“A orquestra estava situada no palco com o maestro no centro”, escreve Albrecht. Os solistas vocais provavelmente teriam sido colocados à sua frente, para melhor contato visual, com Beethoven (e uma estante separada para sua partitura) perto de Caroline Unger. O coro foi colocado no fosso, provavelmente voltado meio para a frente, para poder observar o maestro no palco.

Em seguida, Albrecht mistura um pouco de suposições com fatos comprovados. Diz que Beethoven “provavelmente” subiu ao palco com o maestro Michael Umlauf antes da abertura. Mas é incisivo ao afirmar que, “ao contrário dos mitos reproduzidos em textos e nos filmes, Beethoven não parecia um gênio desgrenhado. Em vez disso, exibia um novo corte de cabelo (ainda visível no retrato de Decker de 27 de maio), estava barbeado e banhado e – com casaco preto ou verde - estava vestido a caráter. Enquanto Umlauf ficou na frente da orquestra para reger, Beethoven aparentemente ficou de costas para o público e com outra partitura à sua frente. Ele pode até ter indicado os andamentos iniciais para cada movimento, mas isso teria sido mais para demonstrar sua anunciada participação pessoal no concerto do que por qualquer necessidade real”.

Como a Nona soou pela primeira vez

Uma das lendas mais repetidas a respeito da primeira execução da Nona Sinfonia conta que, no final, Caroline Unger pegou o totalmente surdo Beethoven (que virava as páginas de sua partitura) pela manga e apontou-o para o público, para que ele pudesse ver os aplausos e reconhecê-los.

“Os relatos deste incidente são contraditórios”, anota Albrecht. Schindler relatou que “no final da apresentação”, Unger virou o surdo Beethoven para que pudesse ver os aplausos do público. Em 1869, em Londres, a própria Caroline Unger (1803-1877) disse a George Grove que ‘no final desta grande obra, [Beethoven] continuou de pé, de costas para o público, e marcando o tempo, até que [ela] o virou, ou o induziu a se virar e encarar as pessoas que estavam batendo palmas’.”

Nove anos antes, em 1860, o biógrafo americano de Beethoven, Alexander Wheelock Thayer, conheceu o pianista Sigismund Thalberg (1812–1871), maior rival de Liszt, que, aos 12 anos, assistiu àquele concerto. “Vi Thalberg em Paris. Ele me disse [que] estava presente no concerto de Beethoven… [em] 1824. Beethoven estava vestido com fraque preto, lenço de pescoço e colete brancos, roupas íntimas de cetim preto, meias de seda pretas, sapatos com fivelas. Após o Scherzo da Nona Sinfonia, ele viu como Beethoven estava virando as páginas de sua partitura, completamente surdo aos imensos aplausos, e Unger puxou-o pela manga e depois apontou para o público quando ele se virou e fez uma reverência. Umlauf disse ao coro e à orquestra que não prestassem atenção alguma aos gestos de Beethoven naquele momento, mas que todos o observassem”.

Pequenas caixas de música com o retrato do compositor alemão Ludwig van Beethoven são vistas na loja de lembranças do museu Beethovenhaus em Baden bei Wien, Áustria. Foto: Joe Klamar / AFP)

Albrecht argumenta que, do ponto de vista musical, este incidente não faz sentido, pois é impossível confundir o coral final Maestoso (”Alegria, linda centelha dos deuses! Faíscas dos deuses!”, em tradução literal) com o prestíssimo orquestral na coda. Beethoven teria percebido, “através de sua audição existente, mas fraca e vibratória” quando a música parou e quando o ambiente visual geral mudou. No final de um concerto tão cansativo, provavelmente houve tanto alvoroço no palco quanto na plateia. E conclui: “Beethoven nunca teria continuado a virar as páginas e Unger nunca teria tido que virá-lo nessas circunstâncias”.

Estes e outras centenas de exemplos sepultam muitas histórias repetidas nestes dois séculos e que não resistem à pesquisa de Albrecht. Este livro é resultado de uma vida dedicada à garimpagem de fatos e informações de primeira mão, documentais, que clareiem um pouco mais os detalhes daquela mítica sexta-feira histórica, duzentos anos atrás.

Naquela noite nascia uma obra-prima atemporal, que soa contemporânea a cada vez que é interpretada em qualquer lugar do planeta. Justifica-se plenamente, portanto, o esforço e criteriosa pesquisa de décadas de Theodore Albrecht. Os fatos em relação à Nona não parecem mais tão fantasiosos, têm cheiro de fatos reais.

A Nona em gravações

  • A mais emocionante: Leonard Bernstein, Filarmônica de Berlim 1989
  • A da plena maturidade de um maestro: Coro e Orquestra de Chicago – Camilla Nylund, soprano; Ekaterina Gubanova, mezzo-soprano; Matthew Polenzani, tenor; Eric Owens, baixo-baritono - regência de Riccardo Muti. Vídeo ao vivo em concerto em 19 de setembro de 2014.
  • Uma reinvenção: Sinf. 9 em versão para 2 pianos de Liszt mas com tímpanos: Kevin Suherman & Junyan Chen, piano Ethan Skuodas, tímpanos 1h05′

Beethoven, segundo as cartas

Frases típicas do primeiro período:

“Não sou cruel – o sangue fogoso é toda a minha malícia, e meu crime é a juventude. Cruel eu não sou, verdadeiramente eu não sou cruel; embora turbulentos vagalhões sempre deponham contra o meu coração, meu coração é bom. Para ajudar onde for possível, amar a liberdade acima de todas as coisas, nunca negar a verdade, mesmo ao pé do trono!” (no álbum de um amigo, 1792)

Para Franz Anton Hoffmeister:

Viena, 15 de janeiro de 1801

“Deveria haver um único Mercado de Arte no mundo; o artista simplesmente enviaria para lá as suas obras e receberia tanto quanto necessita; da maneira como as coisas são, cada um deve ser meio comerciante acima de tudo, e a sensação que isso desperta em mim – por Deus! – qualifico-a de lastimável.”

Ludwig van Beethoven

Período Maduro:

“Nunca mostre abertamente a todos os homens o desprezo que eles merecem, pois nunca se sabe quando se há de precisar deles.” (Caderno de Anotações, 1814)

“Destino, mostra o teu poder! Não temos nenhum domínio sobre nós mesmos: o que quer que tenha sido determinado deve ser, e que seja então! (...) Viva apenas em sua arte! Embora esteja atualmente restringido por causa dos seus sentidos (defeituosos), esta é contudo a única forma possível de existência para você.” (Caderno de Anotações, 1816)

“A calma e a liberdade são as mais preciosas de todas as posses.” (Caderno de Anotações, 1817)

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