Conheça Cristian Budu, o pianista brasileiro de 36 anos que faz a música clássica descer do Olimpo


Talento precoce, ele ganhou seu primeiro prêmio aos 9 anos. Na adolescência, teve uma epifania ao ver Antônio Nóbrega e seu espetáculo popular Brincante - e isso o fez tocar piano profissionalmente e seguir seu caminho na música erudita. Agora, lança ‘Pianolatria’; ouça

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Esqueça a casaca preta e a figura do pianista caminhando para o seu instrumento na sala de concertos. Prepare-se para se surpreender, ter seus ouvidos sacudidos por sonoridades inéditas. De repente, a música ouvida no ambiente clássico adquire musculatura, revive no momento da execução como se tivesse sido composta – supremo sacrilégio – pelo intérprete. É música de carne e osso, que desce do Olimpo das obras-primas e “conversa” com a gente, que paga para “ficar em silêncio”, na expressão contundente do pianista Cristian Budu, 36 anos, em entrevista ao Estadão.

Ele acaba de lançar um álbum duplo intitulado Pianolatria, pelo Selo SESC, que tem tudo para estimular novas gerações de músicos, não só pianistas, a assumir o papel não só de ser fiel à obra musical escrita no pentagrama pelo compositor, mas de fato conviver com ela, trazê-la para o mundo contemporâneo. “Preciso me surpreender com uma coisa sempre nova. Do contrário, perco o interesse. Num recital em que não errei nenhuma nota, o que tinha programado saiu exatamente como tinha ensaiado, saí infeliz”.

Cristian Budu, hoje o maior pianista brasileiro, nasceu em São Bernardo, mas foi criado em Diadema.  Foto: Werther Santana/Estadão
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Num mundo em que a fidelidade à obra dos grandes mestres é um mantra intocável, este tipo de declaração choca. E não só os músicos, mas sobretudo um público acostumado a ouvir sua interpretação favorita milhões de vezes e que quer vê-la reproduzida, como um simulacro, no palco.

Mesmo assim, o mundo musical está a seus pés, muito por causa de suas conquistas extraordinárias nos últimos catorze anos. De repente, ele apareceu numa lista das dez gravações mais relevantes de Chopin, e outra de Beethoven, ambas da revista inglesa Gramophone.

Cristian relembra que “foi um baque muito grande, as pessoas começaram a me tratar muito diferente. Este tratamento não era sincero. Parei de tocar nos meses seguintes, porque não havia sinceridade comigo, portanto eu também não estava sendo sincero. Neguei convites. Foi bem difícil. No ano seguinte tive depressão, não gostava daquele olhar diferente”.

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A sequência de prêmios foi de fato impactante. Começou aos 9 anos, quando ganhou um Concurso Magda Tagliaferro; dez anos depois, aos 19, o Prelúdio, da TV Cultura, em 2007; aos 22, o Concurso Nelson Freire no Rio de Janeiro em 2010; e aos 25, em 2013, o Grande Prêmio e dois prêmios extras de um dos mais reputados concursos de piano no planeta: o Clara Haskil (1895-1960), na Suíça, que já premiou pianistas como Steven Osborne e Till Fellner. Foi um reencontro com suas raízes, já que Haskil era romena como seus pais, imigrantes que se fixaram no Grande ABC. Ele nasceu em São Bernardo, mas foi criado em Diadema. Família musical, pai clarinetista e mãe violinista.

Cristian, no entanto, é muito mais do que um pianista excepcional. Ele é um músico que pensa criticamente seu ofício. Ele credita a alguns de seus professores. Quando estudou numa das mais afamadas escolas do planeta, o New England Conservatory, em Boston, nos Estados Unidos, ele teve em Russell Sherman (1930-2023) uma estrela-guia: “Conheci Schoenherg por ele”.

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O compositor austríaco foi responsável por uma das maiores revoluções da música, com a adoção do atonalismo e em seguida a da música serial. Cristian não disse, mas Sherman conta que o fundamental para o pianista é “o prazer de tocar, não apenas o virtuosismo técnico” e atribui a frase a seu professor, o ucraniano Eduard Steuermann (1892-1964), braço direito de Schoenberg na Sociedade de Execuções Musicais Privadas em Viena, entre 1918 e 1922, então vivendo nos EUA.

O pianista Cristian Budu está lançando 'Pianolatria' Foto: Werther Santana/Estadão

Outro dado essencial que nos ajuda a entender as razões da maravilhosa liberdade criativa que Budu exerce em seu ofício: em 1967, Sherman foi convidado para dar aulas no New England por seu diretor, Gunther Schuller (1925-2015), não por acaso criador, em 1957, da Third Stream, uma fusão entre o jazz e a música clássica que escandalizou os puristas eruditos.

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Mais uma detalhe: o pianista canadense Marc-André Hamelin, 62 anos, foi aluno de Sherman. Basta olhar para a discografia de Hamelin para perceber semelhanças com a postura de Budu: em mais de 60 álbuns, ele garimpa compositores soterrados que no entanto merecem ser tocados no século 21. Nomes injustamente desconhecidos como Sorabji, Alkan, Roslavets, Catoire, Max Reger. Também compõe: gravou em 2010 seus Estudos em todas as tonalidades menores. E também um delicioso álbum de “rags”.

O maior mestre

Mas o encontro mais decisivo de sua vida aconteceu quando Cristian tinha 13 anos e estudava no SESC Ipiranga com Marina Brandão. “Eu não achava atrativo o ambiente. Minha realidade de adolescente era outra, não havia nenhuma abertura pra se conversar ou pensar como sair daquilo”. E conclui: “Sempre olhamos muito pra Europa”.

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Foi, porém, no SESC Ipiranga, que ele assistiu a um espetáculo dos Brincante de Antonio Nóbrega que foi a maior epifania de sua vida. Aos 71 anos, nascido no Recife, Nóbrega foi convidado por Ariano Suassuna, criador do Movimento Armorial, para integrar o Quinteto Armorial. Ele tocava violino. Muito além do Auto da Compadecida, Suassuna conseguiu a proeza de transformar a cultura popular no vulcão que constitui o magma das artes em geral e da música no Brasil. Atitude-chave: não há palco e plateia, há brincantes que participam de mesma atividade criativa.

Leitor de Suassuna que viu suas “aulas-espetáculo” disponíveis no YouTube, Cristian se entusiasma: “Um artista e pensador incrível. Carregou sempre a importância da identidade brasileira ‘descolonizada’, e que fala tão bem do ‘Brasil profundo’, tão rico e tão complexo”.

Por isso, seu guru é Nóbrega: “Se não fosse ele, eu não estaria fazendo música profissionalmente. Claro, continuaria gostando, tocaria em casa, mas de forma amadora. Eu não queria fazer uma carreira. Com o Nóbrega entendi como linguagens diferentes convivem juntas. E descobri que posso fazer isso através do piano”.

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O álbum duplo Pianolatria faz escolhas surpreendentes para mostrar a música brasileira no período modernista. O título remete ao célebre artigo de Mário de Andrade de 1922 desancando a vida musical pauliasta dominada avassaladoramente pelo piano. Ele clamava por mais concertos sinfônicos, camerísticos, ópera – àquela altura um sonho, que se concretizou na década seguinte quando criou os corpos estáveis no Teatro Municipal de São Paulo.

“Fui muito ajudado na escolha de repertório por Alexandre Dias”, diz Cristian. Alexandre criou em 2015 o Instituto Piano Brasileiro e vem realizando um trabalho fundamental de recenseamento e resgate de partituras e gravações de pianistas brasileiros.

Três exemplos dão a dimensão desta concepção inclusiva da música, que não distingue gêneros ou rótulos. Uma das melodias mais conhecidas da dita música erudita brasileira é a “Alvorada” da ópera Lo Schiavo, de Carlos Gomes. Obra sinfônica. Cristian faz uma surpreendente e maravilhosa parceria com Ulrich Schneider, responsável pela produção musical, edição, mixagem e masterização.

“Em princípio, eu queria fazer uma fantasia sobre a ópera Lo Schiavo, não só sobre a Alvorada. Mostrei pra ele, que sugeriu fazermos alguns dobramentos. Quando ele deu a ideia, achei superlegal. Ele sugeriu nos limitarmos à Alvorada, música muito emblemática, é chamada para o público na Sala São Paulo. Por que não, como diz o Mário de Andrade, não pegar uma peça antiquada, mas fazê-la de outro jeito, que só daria pra fazer com as superposições em estúdio e efeitos sonoros”, diz.

Cristian Budu é considerado o sucessor de Nelson Freire. Foto: Werther Santana/Estadão

“Abracei a ideia, dividi as vozes enquanto estávamos gravando. Fizemos no último dia de gravação. Fiquei muito feliz, porque em geral nas transcrições para piano que existem sempre falta alguma coisa. Como só dá pra fazer em estúdio, nada mais contemporâneo, neste sentido, de uma peça antiga”, completa.

O resultado é fantástico. De repente, esta melodia tão conhecida e antiga soa novinha em folha. O mesmo acontece com a derradeira e 22ª. faixa. Dez em cada dez pianistas tocam Apanhei-te Cavaquinho de Ernesto Nazareth. Cristian também fecha com ela, só que num arranjo seu, que ora encarna o pianeiro carioca, ora o leva para outras paisagens sonoras. Ele conta rindo e orgulhoso que “acabar com Nazareth e sua peça mais conhecida numa versão minha é puro Nóbrega”.

Entre uma e outra, Cristian tira a poeira de outra peça conhecidíssima que toda orquestra brasileira costuma tocar em concertos fora do Brasil: o Batuque de Lorenzo Fernández, em transcrição de Souza Lima. Só que Cristian deu vários pitacos, ampliando a sonoridade, suingando. “Tenho essa péssima mania!!”, respondeu Budu, por mensagem, dias após a entrevista. “Ainda mais quando são obras transcritas... mas tento fazer isso de uma maneira pra não desnaturar a obra”. Desnaturar não, ao contrário, ele injeta vida nelas, como quando sangue novo corre pelas nossas veias.

Além disso, Pianolatria também dá acesso a três videoclips – Cabaré Onírico, O Protetor Exu e Evoca Pompeia – e o doc Reflexões sobre a identidade brasileira na música, com a pesquisadora Camila Fresca e o pianista Hércules Gomes.

O futuro

Quando estudava em Boston, foi no apartamento de Cristian que um grupo de estudantes criou em 2010 o GroupMuse, um novo conceito de fazer música: reunir um grupo de músicos para conviverem juntos e fazerem música as 24 horas do dia. E apresentar os resultados à população local. Pode-se chama-lo de sarau. É o formato dos Festivais Ilumina, que vêm sendo realizados no Brasil nos últimos anos.

Ao retornar para o Brasil, Cristian criou Pianosofia, a versão brasileira deste encontro de músicos e público em pequenos espaços que favorecem a participação de todos. “Eu queria chegar perto das pessoas de verdade, inclusive com os músicos, que eles corressem riscos, tentassem coisas novas. Gostava da sensação de que as pessoas estavam ouvindo de verdade. A maneira de ver música tradicional não incentiva isso. São estruturas gigantes que mandam nisso”. Hoje, o projeto “está hibernando. Quero reestruturá-lo, mas sempre com o objetivo de estimular músicos locais a fazer música de câmara em saraus, unindo gerações diferentes de musicistas”.

Este ano, fará turnês no Japão e no Vietnã. Em novembro, três recitais em Tóquio, no Vietnã com orquestra. E também toca em setembro em embaixadas em Bruxelas e Bratislava. Repertório? “Só música brasileira, quero mergulhar cada vez mais na música brasileira”. Em Tóquio também? Ele ri e diz: “Não, eles não toparam. Negociamos: metade repertório europeu, metade brasileiro”.

Em gravações, sua ideia é construir um álbum semelhante ao Pianolatria, com obras de 2000 pra cá de compositores brasileiros vivos. “E quero espalhar os festivais de residência artística”.

Para Ouvir

  • Alvorada da ópera ‘Lo Schiavo’, de Carlos Gomes, arranjo de Cristian Budu e Ulrich Schneider:
  • Batuque, de Lorenzo Fernandez, arranjo de Souza Lima:
  • Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, arranjo Cristian Budu:

Para assistir

O projeto Pianolatria é muito mais do que um álbum duplo, inclui três vídeoclips e um doc:

  • Cabaré Onírico: 5′44

Cristian Budu revisita o universo dos pianeiros. Esses profissionais, que atuavam em ambientes festivos no Brasil do século 20 (bailes dançantes, gafieiras, cinema mudo…) foram muitas vezes responsáveis por trazer as músicas populares para o piano, dando assim um sabor brasileiro para o instrumento. Tia Amélia, que se inspirava no pandeiro, e Ernesto Nazareth, que na música desse videoclipe toca o piano como se fosse um cavaquinho, animam esse cabaré.

  • O protetor Exu 3′26

O protetor Exu é um dos movimentos da Suíte Litúrgica Negra, de Brasílio Itiberê II. Ao tocar essa peça o pianista Cristian Budu tem sua consciência alterada e viaja para um universo desconhecido. Nele, encontra a coreógrafa Rosângela Silvestre que lhe transmite memórias ancestrais através do corpo de Exu. Seus códigos e os elementos da natureza trazem uma revelação ao pianista.

  • Evoca Pompeia: 4′52

A música de Camargo Guarnieri inspira um encontro improvável: de um lado a exuberância das danças e tradições nordestinas, e do outro a profundidade e delicadeza do Teatro Nô. A arquitetura de Lina Bo Bardi e suas pontes suspensas criam um clima mágico para o pianista Cristian Budu realizar uma missão arriscada: tirar o piano da sala de concerto e fazer a música ressoar pela cidade.

  • Reflexões Sobre Identidade Brasileira na Música 27′35:

O que é música brasileira? Cristian Budu investiga um repertório variado de compositores brasileiros para piano. Nascido no Brasil, filho de pais romenos, navegando entre o erudito o popular, o músico também reflete sobre a sua própria identidade brasileira. Os convidados Hercules Gomes (pianista e estudioso do choro) e Camila Fresca (pesquisadora especializada em música clássica) trazem reflexões sobre identidade brasileira na música e o papel do piano nessa história.

Esqueça a casaca preta e a figura do pianista caminhando para o seu instrumento na sala de concertos. Prepare-se para se surpreender, ter seus ouvidos sacudidos por sonoridades inéditas. De repente, a música ouvida no ambiente clássico adquire musculatura, revive no momento da execução como se tivesse sido composta – supremo sacrilégio – pelo intérprete. É música de carne e osso, que desce do Olimpo das obras-primas e “conversa” com a gente, que paga para “ficar em silêncio”, na expressão contundente do pianista Cristian Budu, 36 anos, em entrevista ao Estadão.

Ele acaba de lançar um álbum duplo intitulado Pianolatria, pelo Selo SESC, que tem tudo para estimular novas gerações de músicos, não só pianistas, a assumir o papel não só de ser fiel à obra musical escrita no pentagrama pelo compositor, mas de fato conviver com ela, trazê-la para o mundo contemporâneo. “Preciso me surpreender com uma coisa sempre nova. Do contrário, perco o interesse. Num recital em que não errei nenhuma nota, o que tinha programado saiu exatamente como tinha ensaiado, saí infeliz”.

Cristian Budu, hoje o maior pianista brasileiro, nasceu em São Bernardo, mas foi criado em Diadema.  Foto: Werther Santana/Estadão

Num mundo em que a fidelidade à obra dos grandes mestres é um mantra intocável, este tipo de declaração choca. E não só os músicos, mas sobretudo um público acostumado a ouvir sua interpretação favorita milhões de vezes e que quer vê-la reproduzida, como um simulacro, no palco.

Mesmo assim, o mundo musical está a seus pés, muito por causa de suas conquistas extraordinárias nos últimos catorze anos. De repente, ele apareceu numa lista das dez gravações mais relevantes de Chopin, e outra de Beethoven, ambas da revista inglesa Gramophone.

Cristian relembra que “foi um baque muito grande, as pessoas começaram a me tratar muito diferente. Este tratamento não era sincero. Parei de tocar nos meses seguintes, porque não havia sinceridade comigo, portanto eu também não estava sendo sincero. Neguei convites. Foi bem difícil. No ano seguinte tive depressão, não gostava daquele olhar diferente”.

A sequência de prêmios foi de fato impactante. Começou aos 9 anos, quando ganhou um Concurso Magda Tagliaferro; dez anos depois, aos 19, o Prelúdio, da TV Cultura, em 2007; aos 22, o Concurso Nelson Freire no Rio de Janeiro em 2010; e aos 25, em 2013, o Grande Prêmio e dois prêmios extras de um dos mais reputados concursos de piano no planeta: o Clara Haskil (1895-1960), na Suíça, que já premiou pianistas como Steven Osborne e Till Fellner. Foi um reencontro com suas raízes, já que Haskil era romena como seus pais, imigrantes que se fixaram no Grande ABC. Ele nasceu em São Bernardo, mas foi criado em Diadema. Família musical, pai clarinetista e mãe violinista.

Cristian, no entanto, é muito mais do que um pianista excepcional. Ele é um músico que pensa criticamente seu ofício. Ele credita a alguns de seus professores. Quando estudou numa das mais afamadas escolas do planeta, o New England Conservatory, em Boston, nos Estados Unidos, ele teve em Russell Sherman (1930-2023) uma estrela-guia: “Conheci Schoenherg por ele”.

O compositor austríaco foi responsável por uma das maiores revoluções da música, com a adoção do atonalismo e em seguida a da música serial. Cristian não disse, mas Sherman conta que o fundamental para o pianista é “o prazer de tocar, não apenas o virtuosismo técnico” e atribui a frase a seu professor, o ucraniano Eduard Steuermann (1892-1964), braço direito de Schoenberg na Sociedade de Execuções Musicais Privadas em Viena, entre 1918 e 1922, então vivendo nos EUA.

O pianista Cristian Budu está lançando 'Pianolatria' Foto: Werther Santana/Estadão

Outro dado essencial que nos ajuda a entender as razões da maravilhosa liberdade criativa que Budu exerce em seu ofício: em 1967, Sherman foi convidado para dar aulas no New England por seu diretor, Gunther Schuller (1925-2015), não por acaso criador, em 1957, da Third Stream, uma fusão entre o jazz e a música clássica que escandalizou os puristas eruditos.

Mais uma detalhe: o pianista canadense Marc-André Hamelin, 62 anos, foi aluno de Sherman. Basta olhar para a discografia de Hamelin para perceber semelhanças com a postura de Budu: em mais de 60 álbuns, ele garimpa compositores soterrados que no entanto merecem ser tocados no século 21. Nomes injustamente desconhecidos como Sorabji, Alkan, Roslavets, Catoire, Max Reger. Também compõe: gravou em 2010 seus Estudos em todas as tonalidades menores. E também um delicioso álbum de “rags”.

O maior mestre

Mas o encontro mais decisivo de sua vida aconteceu quando Cristian tinha 13 anos e estudava no SESC Ipiranga com Marina Brandão. “Eu não achava atrativo o ambiente. Minha realidade de adolescente era outra, não havia nenhuma abertura pra se conversar ou pensar como sair daquilo”. E conclui: “Sempre olhamos muito pra Europa”.

Foi, porém, no SESC Ipiranga, que ele assistiu a um espetáculo dos Brincante de Antonio Nóbrega que foi a maior epifania de sua vida. Aos 71 anos, nascido no Recife, Nóbrega foi convidado por Ariano Suassuna, criador do Movimento Armorial, para integrar o Quinteto Armorial. Ele tocava violino. Muito além do Auto da Compadecida, Suassuna conseguiu a proeza de transformar a cultura popular no vulcão que constitui o magma das artes em geral e da música no Brasil. Atitude-chave: não há palco e plateia, há brincantes que participam de mesma atividade criativa.

Leitor de Suassuna que viu suas “aulas-espetáculo” disponíveis no YouTube, Cristian se entusiasma: “Um artista e pensador incrível. Carregou sempre a importância da identidade brasileira ‘descolonizada’, e que fala tão bem do ‘Brasil profundo’, tão rico e tão complexo”.

Por isso, seu guru é Nóbrega: “Se não fosse ele, eu não estaria fazendo música profissionalmente. Claro, continuaria gostando, tocaria em casa, mas de forma amadora. Eu não queria fazer uma carreira. Com o Nóbrega entendi como linguagens diferentes convivem juntas. E descobri que posso fazer isso através do piano”.

O álbum duplo Pianolatria faz escolhas surpreendentes para mostrar a música brasileira no período modernista. O título remete ao célebre artigo de Mário de Andrade de 1922 desancando a vida musical pauliasta dominada avassaladoramente pelo piano. Ele clamava por mais concertos sinfônicos, camerísticos, ópera – àquela altura um sonho, que se concretizou na década seguinte quando criou os corpos estáveis no Teatro Municipal de São Paulo.

“Fui muito ajudado na escolha de repertório por Alexandre Dias”, diz Cristian. Alexandre criou em 2015 o Instituto Piano Brasileiro e vem realizando um trabalho fundamental de recenseamento e resgate de partituras e gravações de pianistas brasileiros.

Três exemplos dão a dimensão desta concepção inclusiva da música, que não distingue gêneros ou rótulos. Uma das melodias mais conhecidas da dita música erudita brasileira é a “Alvorada” da ópera Lo Schiavo, de Carlos Gomes. Obra sinfônica. Cristian faz uma surpreendente e maravilhosa parceria com Ulrich Schneider, responsável pela produção musical, edição, mixagem e masterização.

“Em princípio, eu queria fazer uma fantasia sobre a ópera Lo Schiavo, não só sobre a Alvorada. Mostrei pra ele, que sugeriu fazermos alguns dobramentos. Quando ele deu a ideia, achei superlegal. Ele sugeriu nos limitarmos à Alvorada, música muito emblemática, é chamada para o público na Sala São Paulo. Por que não, como diz o Mário de Andrade, não pegar uma peça antiquada, mas fazê-la de outro jeito, que só daria pra fazer com as superposições em estúdio e efeitos sonoros”, diz.

Cristian Budu é considerado o sucessor de Nelson Freire. Foto: Werther Santana/Estadão

“Abracei a ideia, dividi as vozes enquanto estávamos gravando. Fizemos no último dia de gravação. Fiquei muito feliz, porque em geral nas transcrições para piano que existem sempre falta alguma coisa. Como só dá pra fazer em estúdio, nada mais contemporâneo, neste sentido, de uma peça antiga”, completa.

O resultado é fantástico. De repente, esta melodia tão conhecida e antiga soa novinha em folha. O mesmo acontece com a derradeira e 22ª. faixa. Dez em cada dez pianistas tocam Apanhei-te Cavaquinho de Ernesto Nazareth. Cristian também fecha com ela, só que num arranjo seu, que ora encarna o pianeiro carioca, ora o leva para outras paisagens sonoras. Ele conta rindo e orgulhoso que “acabar com Nazareth e sua peça mais conhecida numa versão minha é puro Nóbrega”.

Entre uma e outra, Cristian tira a poeira de outra peça conhecidíssima que toda orquestra brasileira costuma tocar em concertos fora do Brasil: o Batuque de Lorenzo Fernández, em transcrição de Souza Lima. Só que Cristian deu vários pitacos, ampliando a sonoridade, suingando. “Tenho essa péssima mania!!”, respondeu Budu, por mensagem, dias após a entrevista. “Ainda mais quando são obras transcritas... mas tento fazer isso de uma maneira pra não desnaturar a obra”. Desnaturar não, ao contrário, ele injeta vida nelas, como quando sangue novo corre pelas nossas veias.

Além disso, Pianolatria também dá acesso a três videoclips – Cabaré Onírico, O Protetor Exu e Evoca Pompeia – e o doc Reflexões sobre a identidade brasileira na música, com a pesquisadora Camila Fresca e o pianista Hércules Gomes.

O futuro

Quando estudava em Boston, foi no apartamento de Cristian que um grupo de estudantes criou em 2010 o GroupMuse, um novo conceito de fazer música: reunir um grupo de músicos para conviverem juntos e fazerem música as 24 horas do dia. E apresentar os resultados à população local. Pode-se chama-lo de sarau. É o formato dos Festivais Ilumina, que vêm sendo realizados no Brasil nos últimos anos.

Ao retornar para o Brasil, Cristian criou Pianosofia, a versão brasileira deste encontro de músicos e público em pequenos espaços que favorecem a participação de todos. “Eu queria chegar perto das pessoas de verdade, inclusive com os músicos, que eles corressem riscos, tentassem coisas novas. Gostava da sensação de que as pessoas estavam ouvindo de verdade. A maneira de ver música tradicional não incentiva isso. São estruturas gigantes que mandam nisso”. Hoje, o projeto “está hibernando. Quero reestruturá-lo, mas sempre com o objetivo de estimular músicos locais a fazer música de câmara em saraus, unindo gerações diferentes de musicistas”.

Este ano, fará turnês no Japão e no Vietnã. Em novembro, três recitais em Tóquio, no Vietnã com orquestra. E também toca em setembro em embaixadas em Bruxelas e Bratislava. Repertório? “Só música brasileira, quero mergulhar cada vez mais na música brasileira”. Em Tóquio também? Ele ri e diz: “Não, eles não toparam. Negociamos: metade repertório europeu, metade brasileiro”.

Em gravações, sua ideia é construir um álbum semelhante ao Pianolatria, com obras de 2000 pra cá de compositores brasileiros vivos. “E quero espalhar os festivais de residência artística”.

Para Ouvir

  • Alvorada da ópera ‘Lo Schiavo’, de Carlos Gomes, arranjo de Cristian Budu e Ulrich Schneider:
  • Batuque, de Lorenzo Fernandez, arranjo de Souza Lima:
  • Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, arranjo Cristian Budu:

Para assistir

O projeto Pianolatria é muito mais do que um álbum duplo, inclui três vídeoclips e um doc:

  • Cabaré Onírico: 5′44

Cristian Budu revisita o universo dos pianeiros. Esses profissionais, que atuavam em ambientes festivos no Brasil do século 20 (bailes dançantes, gafieiras, cinema mudo…) foram muitas vezes responsáveis por trazer as músicas populares para o piano, dando assim um sabor brasileiro para o instrumento. Tia Amélia, que se inspirava no pandeiro, e Ernesto Nazareth, que na música desse videoclipe toca o piano como se fosse um cavaquinho, animam esse cabaré.

  • O protetor Exu 3′26

O protetor Exu é um dos movimentos da Suíte Litúrgica Negra, de Brasílio Itiberê II. Ao tocar essa peça o pianista Cristian Budu tem sua consciência alterada e viaja para um universo desconhecido. Nele, encontra a coreógrafa Rosângela Silvestre que lhe transmite memórias ancestrais através do corpo de Exu. Seus códigos e os elementos da natureza trazem uma revelação ao pianista.

  • Evoca Pompeia: 4′52

A música de Camargo Guarnieri inspira um encontro improvável: de um lado a exuberância das danças e tradições nordestinas, e do outro a profundidade e delicadeza do Teatro Nô. A arquitetura de Lina Bo Bardi e suas pontes suspensas criam um clima mágico para o pianista Cristian Budu realizar uma missão arriscada: tirar o piano da sala de concerto e fazer a música ressoar pela cidade.

  • Reflexões Sobre Identidade Brasileira na Música 27′35:

O que é música brasileira? Cristian Budu investiga um repertório variado de compositores brasileiros para piano. Nascido no Brasil, filho de pais romenos, navegando entre o erudito o popular, o músico também reflete sobre a sua própria identidade brasileira. Os convidados Hercules Gomes (pianista e estudioso do choro) e Camila Fresca (pesquisadora especializada em música clássica) trazem reflexões sobre identidade brasileira na música e o papel do piano nessa história.

Esqueça a casaca preta e a figura do pianista caminhando para o seu instrumento na sala de concertos. Prepare-se para se surpreender, ter seus ouvidos sacudidos por sonoridades inéditas. De repente, a música ouvida no ambiente clássico adquire musculatura, revive no momento da execução como se tivesse sido composta – supremo sacrilégio – pelo intérprete. É música de carne e osso, que desce do Olimpo das obras-primas e “conversa” com a gente, que paga para “ficar em silêncio”, na expressão contundente do pianista Cristian Budu, 36 anos, em entrevista ao Estadão.

Ele acaba de lançar um álbum duplo intitulado Pianolatria, pelo Selo SESC, que tem tudo para estimular novas gerações de músicos, não só pianistas, a assumir o papel não só de ser fiel à obra musical escrita no pentagrama pelo compositor, mas de fato conviver com ela, trazê-la para o mundo contemporâneo. “Preciso me surpreender com uma coisa sempre nova. Do contrário, perco o interesse. Num recital em que não errei nenhuma nota, o que tinha programado saiu exatamente como tinha ensaiado, saí infeliz”.

Cristian Budu, hoje o maior pianista brasileiro, nasceu em São Bernardo, mas foi criado em Diadema.  Foto: Werther Santana/Estadão

Num mundo em que a fidelidade à obra dos grandes mestres é um mantra intocável, este tipo de declaração choca. E não só os músicos, mas sobretudo um público acostumado a ouvir sua interpretação favorita milhões de vezes e que quer vê-la reproduzida, como um simulacro, no palco.

Mesmo assim, o mundo musical está a seus pés, muito por causa de suas conquistas extraordinárias nos últimos catorze anos. De repente, ele apareceu numa lista das dez gravações mais relevantes de Chopin, e outra de Beethoven, ambas da revista inglesa Gramophone.

Cristian relembra que “foi um baque muito grande, as pessoas começaram a me tratar muito diferente. Este tratamento não era sincero. Parei de tocar nos meses seguintes, porque não havia sinceridade comigo, portanto eu também não estava sendo sincero. Neguei convites. Foi bem difícil. No ano seguinte tive depressão, não gostava daquele olhar diferente”.

A sequência de prêmios foi de fato impactante. Começou aos 9 anos, quando ganhou um Concurso Magda Tagliaferro; dez anos depois, aos 19, o Prelúdio, da TV Cultura, em 2007; aos 22, o Concurso Nelson Freire no Rio de Janeiro em 2010; e aos 25, em 2013, o Grande Prêmio e dois prêmios extras de um dos mais reputados concursos de piano no planeta: o Clara Haskil (1895-1960), na Suíça, que já premiou pianistas como Steven Osborne e Till Fellner. Foi um reencontro com suas raízes, já que Haskil era romena como seus pais, imigrantes que se fixaram no Grande ABC. Ele nasceu em São Bernardo, mas foi criado em Diadema. Família musical, pai clarinetista e mãe violinista.

Cristian, no entanto, é muito mais do que um pianista excepcional. Ele é um músico que pensa criticamente seu ofício. Ele credita a alguns de seus professores. Quando estudou numa das mais afamadas escolas do planeta, o New England Conservatory, em Boston, nos Estados Unidos, ele teve em Russell Sherman (1930-2023) uma estrela-guia: “Conheci Schoenherg por ele”.

O compositor austríaco foi responsável por uma das maiores revoluções da música, com a adoção do atonalismo e em seguida a da música serial. Cristian não disse, mas Sherman conta que o fundamental para o pianista é “o prazer de tocar, não apenas o virtuosismo técnico” e atribui a frase a seu professor, o ucraniano Eduard Steuermann (1892-1964), braço direito de Schoenberg na Sociedade de Execuções Musicais Privadas em Viena, entre 1918 e 1922, então vivendo nos EUA.

O pianista Cristian Budu está lançando 'Pianolatria' Foto: Werther Santana/Estadão

Outro dado essencial que nos ajuda a entender as razões da maravilhosa liberdade criativa que Budu exerce em seu ofício: em 1967, Sherman foi convidado para dar aulas no New England por seu diretor, Gunther Schuller (1925-2015), não por acaso criador, em 1957, da Third Stream, uma fusão entre o jazz e a música clássica que escandalizou os puristas eruditos.

Mais uma detalhe: o pianista canadense Marc-André Hamelin, 62 anos, foi aluno de Sherman. Basta olhar para a discografia de Hamelin para perceber semelhanças com a postura de Budu: em mais de 60 álbuns, ele garimpa compositores soterrados que no entanto merecem ser tocados no século 21. Nomes injustamente desconhecidos como Sorabji, Alkan, Roslavets, Catoire, Max Reger. Também compõe: gravou em 2010 seus Estudos em todas as tonalidades menores. E também um delicioso álbum de “rags”.

O maior mestre

Mas o encontro mais decisivo de sua vida aconteceu quando Cristian tinha 13 anos e estudava no SESC Ipiranga com Marina Brandão. “Eu não achava atrativo o ambiente. Minha realidade de adolescente era outra, não havia nenhuma abertura pra se conversar ou pensar como sair daquilo”. E conclui: “Sempre olhamos muito pra Europa”.

Foi, porém, no SESC Ipiranga, que ele assistiu a um espetáculo dos Brincante de Antonio Nóbrega que foi a maior epifania de sua vida. Aos 71 anos, nascido no Recife, Nóbrega foi convidado por Ariano Suassuna, criador do Movimento Armorial, para integrar o Quinteto Armorial. Ele tocava violino. Muito além do Auto da Compadecida, Suassuna conseguiu a proeza de transformar a cultura popular no vulcão que constitui o magma das artes em geral e da música no Brasil. Atitude-chave: não há palco e plateia, há brincantes que participam de mesma atividade criativa.

Leitor de Suassuna que viu suas “aulas-espetáculo” disponíveis no YouTube, Cristian se entusiasma: “Um artista e pensador incrível. Carregou sempre a importância da identidade brasileira ‘descolonizada’, e que fala tão bem do ‘Brasil profundo’, tão rico e tão complexo”.

Por isso, seu guru é Nóbrega: “Se não fosse ele, eu não estaria fazendo música profissionalmente. Claro, continuaria gostando, tocaria em casa, mas de forma amadora. Eu não queria fazer uma carreira. Com o Nóbrega entendi como linguagens diferentes convivem juntas. E descobri que posso fazer isso através do piano”.

O álbum duplo Pianolatria faz escolhas surpreendentes para mostrar a música brasileira no período modernista. O título remete ao célebre artigo de Mário de Andrade de 1922 desancando a vida musical pauliasta dominada avassaladoramente pelo piano. Ele clamava por mais concertos sinfônicos, camerísticos, ópera – àquela altura um sonho, que se concretizou na década seguinte quando criou os corpos estáveis no Teatro Municipal de São Paulo.

“Fui muito ajudado na escolha de repertório por Alexandre Dias”, diz Cristian. Alexandre criou em 2015 o Instituto Piano Brasileiro e vem realizando um trabalho fundamental de recenseamento e resgate de partituras e gravações de pianistas brasileiros.

Três exemplos dão a dimensão desta concepção inclusiva da música, que não distingue gêneros ou rótulos. Uma das melodias mais conhecidas da dita música erudita brasileira é a “Alvorada” da ópera Lo Schiavo, de Carlos Gomes. Obra sinfônica. Cristian faz uma surpreendente e maravilhosa parceria com Ulrich Schneider, responsável pela produção musical, edição, mixagem e masterização.

“Em princípio, eu queria fazer uma fantasia sobre a ópera Lo Schiavo, não só sobre a Alvorada. Mostrei pra ele, que sugeriu fazermos alguns dobramentos. Quando ele deu a ideia, achei superlegal. Ele sugeriu nos limitarmos à Alvorada, música muito emblemática, é chamada para o público na Sala São Paulo. Por que não, como diz o Mário de Andrade, não pegar uma peça antiquada, mas fazê-la de outro jeito, que só daria pra fazer com as superposições em estúdio e efeitos sonoros”, diz.

Cristian Budu é considerado o sucessor de Nelson Freire. Foto: Werther Santana/Estadão

“Abracei a ideia, dividi as vozes enquanto estávamos gravando. Fizemos no último dia de gravação. Fiquei muito feliz, porque em geral nas transcrições para piano que existem sempre falta alguma coisa. Como só dá pra fazer em estúdio, nada mais contemporâneo, neste sentido, de uma peça antiga”, completa.

O resultado é fantástico. De repente, esta melodia tão conhecida e antiga soa novinha em folha. O mesmo acontece com a derradeira e 22ª. faixa. Dez em cada dez pianistas tocam Apanhei-te Cavaquinho de Ernesto Nazareth. Cristian também fecha com ela, só que num arranjo seu, que ora encarna o pianeiro carioca, ora o leva para outras paisagens sonoras. Ele conta rindo e orgulhoso que “acabar com Nazareth e sua peça mais conhecida numa versão minha é puro Nóbrega”.

Entre uma e outra, Cristian tira a poeira de outra peça conhecidíssima que toda orquestra brasileira costuma tocar em concertos fora do Brasil: o Batuque de Lorenzo Fernández, em transcrição de Souza Lima. Só que Cristian deu vários pitacos, ampliando a sonoridade, suingando. “Tenho essa péssima mania!!”, respondeu Budu, por mensagem, dias após a entrevista. “Ainda mais quando são obras transcritas... mas tento fazer isso de uma maneira pra não desnaturar a obra”. Desnaturar não, ao contrário, ele injeta vida nelas, como quando sangue novo corre pelas nossas veias.

Além disso, Pianolatria também dá acesso a três videoclips – Cabaré Onírico, O Protetor Exu e Evoca Pompeia – e o doc Reflexões sobre a identidade brasileira na música, com a pesquisadora Camila Fresca e o pianista Hércules Gomes.

O futuro

Quando estudava em Boston, foi no apartamento de Cristian que um grupo de estudantes criou em 2010 o GroupMuse, um novo conceito de fazer música: reunir um grupo de músicos para conviverem juntos e fazerem música as 24 horas do dia. E apresentar os resultados à população local. Pode-se chama-lo de sarau. É o formato dos Festivais Ilumina, que vêm sendo realizados no Brasil nos últimos anos.

Ao retornar para o Brasil, Cristian criou Pianosofia, a versão brasileira deste encontro de músicos e público em pequenos espaços que favorecem a participação de todos. “Eu queria chegar perto das pessoas de verdade, inclusive com os músicos, que eles corressem riscos, tentassem coisas novas. Gostava da sensação de que as pessoas estavam ouvindo de verdade. A maneira de ver música tradicional não incentiva isso. São estruturas gigantes que mandam nisso”. Hoje, o projeto “está hibernando. Quero reestruturá-lo, mas sempre com o objetivo de estimular músicos locais a fazer música de câmara em saraus, unindo gerações diferentes de musicistas”.

Este ano, fará turnês no Japão e no Vietnã. Em novembro, três recitais em Tóquio, no Vietnã com orquestra. E também toca em setembro em embaixadas em Bruxelas e Bratislava. Repertório? “Só música brasileira, quero mergulhar cada vez mais na música brasileira”. Em Tóquio também? Ele ri e diz: “Não, eles não toparam. Negociamos: metade repertório europeu, metade brasileiro”.

Em gravações, sua ideia é construir um álbum semelhante ao Pianolatria, com obras de 2000 pra cá de compositores brasileiros vivos. “E quero espalhar os festivais de residência artística”.

Para Ouvir

  • Alvorada da ópera ‘Lo Schiavo’, de Carlos Gomes, arranjo de Cristian Budu e Ulrich Schneider:
  • Batuque, de Lorenzo Fernandez, arranjo de Souza Lima:
  • Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, arranjo Cristian Budu:

Para assistir

O projeto Pianolatria é muito mais do que um álbum duplo, inclui três vídeoclips e um doc:

  • Cabaré Onírico: 5′44

Cristian Budu revisita o universo dos pianeiros. Esses profissionais, que atuavam em ambientes festivos no Brasil do século 20 (bailes dançantes, gafieiras, cinema mudo…) foram muitas vezes responsáveis por trazer as músicas populares para o piano, dando assim um sabor brasileiro para o instrumento. Tia Amélia, que se inspirava no pandeiro, e Ernesto Nazareth, que na música desse videoclipe toca o piano como se fosse um cavaquinho, animam esse cabaré.

  • O protetor Exu 3′26

O protetor Exu é um dos movimentos da Suíte Litúrgica Negra, de Brasílio Itiberê II. Ao tocar essa peça o pianista Cristian Budu tem sua consciência alterada e viaja para um universo desconhecido. Nele, encontra a coreógrafa Rosângela Silvestre que lhe transmite memórias ancestrais através do corpo de Exu. Seus códigos e os elementos da natureza trazem uma revelação ao pianista.

  • Evoca Pompeia: 4′52

A música de Camargo Guarnieri inspira um encontro improvável: de um lado a exuberância das danças e tradições nordestinas, e do outro a profundidade e delicadeza do Teatro Nô. A arquitetura de Lina Bo Bardi e suas pontes suspensas criam um clima mágico para o pianista Cristian Budu realizar uma missão arriscada: tirar o piano da sala de concerto e fazer a música ressoar pela cidade.

  • Reflexões Sobre Identidade Brasileira na Música 27′35:

O que é música brasileira? Cristian Budu investiga um repertório variado de compositores brasileiros para piano. Nascido no Brasil, filho de pais romenos, navegando entre o erudito o popular, o músico também reflete sobre a sua própria identidade brasileira. Os convidados Hercules Gomes (pianista e estudioso do choro) e Camila Fresca (pesquisadora especializada em música clássica) trazem reflexões sobre identidade brasileira na música e o papel do piano nessa história.

Esqueça a casaca preta e a figura do pianista caminhando para o seu instrumento na sala de concertos. Prepare-se para se surpreender, ter seus ouvidos sacudidos por sonoridades inéditas. De repente, a música ouvida no ambiente clássico adquire musculatura, revive no momento da execução como se tivesse sido composta – supremo sacrilégio – pelo intérprete. É música de carne e osso, que desce do Olimpo das obras-primas e “conversa” com a gente, que paga para “ficar em silêncio”, na expressão contundente do pianista Cristian Budu, 36 anos, em entrevista ao Estadão.

Ele acaba de lançar um álbum duplo intitulado Pianolatria, pelo Selo SESC, que tem tudo para estimular novas gerações de músicos, não só pianistas, a assumir o papel não só de ser fiel à obra musical escrita no pentagrama pelo compositor, mas de fato conviver com ela, trazê-la para o mundo contemporâneo. “Preciso me surpreender com uma coisa sempre nova. Do contrário, perco o interesse. Num recital em que não errei nenhuma nota, o que tinha programado saiu exatamente como tinha ensaiado, saí infeliz”.

Cristian Budu, hoje o maior pianista brasileiro, nasceu em São Bernardo, mas foi criado em Diadema.  Foto: Werther Santana/Estadão

Num mundo em que a fidelidade à obra dos grandes mestres é um mantra intocável, este tipo de declaração choca. E não só os músicos, mas sobretudo um público acostumado a ouvir sua interpretação favorita milhões de vezes e que quer vê-la reproduzida, como um simulacro, no palco.

Mesmo assim, o mundo musical está a seus pés, muito por causa de suas conquistas extraordinárias nos últimos catorze anos. De repente, ele apareceu numa lista das dez gravações mais relevantes de Chopin, e outra de Beethoven, ambas da revista inglesa Gramophone.

Cristian relembra que “foi um baque muito grande, as pessoas começaram a me tratar muito diferente. Este tratamento não era sincero. Parei de tocar nos meses seguintes, porque não havia sinceridade comigo, portanto eu também não estava sendo sincero. Neguei convites. Foi bem difícil. No ano seguinte tive depressão, não gostava daquele olhar diferente”.

A sequência de prêmios foi de fato impactante. Começou aos 9 anos, quando ganhou um Concurso Magda Tagliaferro; dez anos depois, aos 19, o Prelúdio, da TV Cultura, em 2007; aos 22, o Concurso Nelson Freire no Rio de Janeiro em 2010; e aos 25, em 2013, o Grande Prêmio e dois prêmios extras de um dos mais reputados concursos de piano no planeta: o Clara Haskil (1895-1960), na Suíça, que já premiou pianistas como Steven Osborne e Till Fellner. Foi um reencontro com suas raízes, já que Haskil era romena como seus pais, imigrantes que se fixaram no Grande ABC. Ele nasceu em São Bernardo, mas foi criado em Diadema. Família musical, pai clarinetista e mãe violinista.

Cristian, no entanto, é muito mais do que um pianista excepcional. Ele é um músico que pensa criticamente seu ofício. Ele credita a alguns de seus professores. Quando estudou numa das mais afamadas escolas do planeta, o New England Conservatory, em Boston, nos Estados Unidos, ele teve em Russell Sherman (1930-2023) uma estrela-guia: “Conheci Schoenherg por ele”.

O compositor austríaco foi responsável por uma das maiores revoluções da música, com a adoção do atonalismo e em seguida a da música serial. Cristian não disse, mas Sherman conta que o fundamental para o pianista é “o prazer de tocar, não apenas o virtuosismo técnico” e atribui a frase a seu professor, o ucraniano Eduard Steuermann (1892-1964), braço direito de Schoenberg na Sociedade de Execuções Musicais Privadas em Viena, entre 1918 e 1922, então vivendo nos EUA.

O pianista Cristian Budu está lançando 'Pianolatria' Foto: Werther Santana/Estadão

Outro dado essencial que nos ajuda a entender as razões da maravilhosa liberdade criativa que Budu exerce em seu ofício: em 1967, Sherman foi convidado para dar aulas no New England por seu diretor, Gunther Schuller (1925-2015), não por acaso criador, em 1957, da Third Stream, uma fusão entre o jazz e a música clássica que escandalizou os puristas eruditos.

Mais uma detalhe: o pianista canadense Marc-André Hamelin, 62 anos, foi aluno de Sherman. Basta olhar para a discografia de Hamelin para perceber semelhanças com a postura de Budu: em mais de 60 álbuns, ele garimpa compositores soterrados que no entanto merecem ser tocados no século 21. Nomes injustamente desconhecidos como Sorabji, Alkan, Roslavets, Catoire, Max Reger. Também compõe: gravou em 2010 seus Estudos em todas as tonalidades menores. E também um delicioso álbum de “rags”.

O maior mestre

Mas o encontro mais decisivo de sua vida aconteceu quando Cristian tinha 13 anos e estudava no SESC Ipiranga com Marina Brandão. “Eu não achava atrativo o ambiente. Minha realidade de adolescente era outra, não havia nenhuma abertura pra se conversar ou pensar como sair daquilo”. E conclui: “Sempre olhamos muito pra Europa”.

Foi, porém, no SESC Ipiranga, que ele assistiu a um espetáculo dos Brincante de Antonio Nóbrega que foi a maior epifania de sua vida. Aos 71 anos, nascido no Recife, Nóbrega foi convidado por Ariano Suassuna, criador do Movimento Armorial, para integrar o Quinteto Armorial. Ele tocava violino. Muito além do Auto da Compadecida, Suassuna conseguiu a proeza de transformar a cultura popular no vulcão que constitui o magma das artes em geral e da música no Brasil. Atitude-chave: não há palco e plateia, há brincantes que participam de mesma atividade criativa.

Leitor de Suassuna que viu suas “aulas-espetáculo” disponíveis no YouTube, Cristian se entusiasma: “Um artista e pensador incrível. Carregou sempre a importância da identidade brasileira ‘descolonizada’, e que fala tão bem do ‘Brasil profundo’, tão rico e tão complexo”.

Por isso, seu guru é Nóbrega: “Se não fosse ele, eu não estaria fazendo música profissionalmente. Claro, continuaria gostando, tocaria em casa, mas de forma amadora. Eu não queria fazer uma carreira. Com o Nóbrega entendi como linguagens diferentes convivem juntas. E descobri que posso fazer isso através do piano”.

O álbum duplo Pianolatria faz escolhas surpreendentes para mostrar a música brasileira no período modernista. O título remete ao célebre artigo de Mário de Andrade de 1922 desancando a vida musical pauliasta dominada avassaladoramente pelo piano. Ele clamava por mais concertos sinfônicos, camerísticos, ópera – àquela altura um sonho, que se concretizou na década seguinte quando criou os corpos estáveis no Teatro Municipal de São Paulo.

“Fui muito ajudado na escolha de repertório por Alexandre Dias”, diz Cristian. Alexandre criou em 2015 o Instituto Piano Brasileiro e vem realizando um trabalho fundamental de recenseamento e resgate de partituras e gravações de pianistas brasileiros.

Três exemplos dão a dimensão desta concepção inclusiva da música, que não distingue gêneros ou rótulos. Uma das melodias mais conhecidas da dita música erudita brasileira é a “Alvorada” da ópera Lo Schiavo, de Carlos Gomes. Obra sinfônica. Cristian faz uma surpreendente e maravilhosa parceria com Ulrich Schneider, responsável pela produção musical, edição, mixagem e masterização.

“Em princípio, eu queria fazer uma fantasia sobre a ópera Lo Schiavo, não só sobre a Alvorada. Mostrei pra ele, que sugeriu fazermos alguns dobramentos. Quando ele deu a ideia, achei superlegal. Ele sugeriu nos limitarmos à Alvorada, música muito emblemática, é chamada para o público na Sala São Paulo. Por que não, como diz o Mário de Andrade, não pegar uma peça antiquada, mas fazê-la de outro jeito, que só daria pra fazer com as superposições em estúdio e efeitos sonoros”, diz.

Cristian Budu é considerado o sucessor de Nelson Freire. Foto: Werther Santana/Estadão

“Abracei a ideia, dividi as vozes enquanto estávamos gravando. Fizemos no último dia de gravação. Fiquei muito feliz, porque em geral nas transcrições para piano que existem sempre falta alguma coisa. Como só dá pra fazer em estúdio, nada mais contemporâneo, neste sentido, de uma peça antiga”, completa.

O resultado é fantástico. De repente, esta melodia tão conhecida e antiga soa novinha em folha. O mesmo acontece com a derradeira e 22ª. faixa. Dez em cada dez pianistas tocam Apanhei-te Cavaquinho de Ernesto Nazareth. Cristian também fecha com ela, só que num arranjo seu, que ora encarna o pianeiro carioca, ora o leva para outras paisagens sonoras. Ele conta rindo e orgulhoso que “acabar com Nazareth e sua peça mais conhecida numa versão minha é puro Nóbrega”.

Entre uma e outra, Cristian tira a poeira de outra peça conhecidíssima que toda orquestra brasileira costuma tocar em concertos fora do Brasil: o Batuque de Lorenzo Fernández, em transcrição de Souza Lima. Só que Cristian deu vários pitacos, ampliando a sonoridade, suingando. “Tenho essa péssima mania!!”, respondeu Budu, por mensagem, dias após a entrevista. “Ainda mais quando são obras transcritas... mas tento fazer isso de uma maneira pra não desnaturar a obra”. Desnaturar não, ao contrário, ele injeta vida nelas, como quando sangue novo corre pelas nossas veias.

Além disso, Pianolatria também dá acesso a três videoclips – Cabaré Onírico, O Protetor Exu e Evoca Pompeia – e o doc Reflexões sobre a identidade brasileira na música, com a pesquisadora Camila Fresca e o pianista Hércules Gomes.

O futuro

Quando estudava em Boston, foi no apartamento de Cristian que um grupo de estudantes criou em 2010 o GroupMuse, um novo conceito de fazer música: reunir um grupo de músicos para conviverem juntos e fazerem música as 24 horas do dia. E apresentar os resultados à população local. Pode-se chama-lo de sarau. É o formato dos Festivais Ilumina, que vêm sendo realizados no Brasil nos últimos anos.

Ao retornar para o Brasil, Cristian criou Pianosofia, a versão brasileira deste encontro de músicos e público em pequenos espaços que favorecem a participação de todos. “Eu queria chegar perto das pessoas de verdade, inclusive com os músicos, que eles corressem riscos, tentassem coisas novas. Gostava da sensação de que as pessoas estavam ouvindo de verdade. A maneira de ver música tradicional não incentiva isso. São estruturas gigantes que mandam nisso”. Hoje, o projeto “está hibernando. Quero reestruturá-lo, mas sempre com o objetivo de estimular músicos locais a fazer música de câmara em saraus, unindo gerações diferentes de musicistas”.

Este ano, fará turnês no Japão e no Vietnã. Em novembro, três recitais em Tóquio, no Vietnã com orquestra. E também toca em setembro em embaixadas em Bruxelas e Bratislava. Repertório? “Só música brasileira, quero mergulhar cada vez mais na música brasileira”. Em Tóquio também? Ele ri e diz: “Não, eles não toparam. Negociamos: metade repertório europeu, metade brasileiro”.

Em gravações, sua ideia é construir um álbum semelhante ao Pianolatria, com obras de 2000 pra cá de compositores brasileiros vivos. “E quero espalhar os festivais de residência artística”.

Para Ouvir

  • Alvorada da ópera ‘Lo Schiavo’, de Carlos Gomes, arranjo de Cristian Budu e Ulrich Schneider:
  • Batuque, de Lorenzo Fernandez, arranjo de Souza Lima:
  • Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, arranjo Cristian Budu:

Para assistir

O projeto Pianolatria é muito mais do que um álbum duplo, inclui três vídeoclips e um doc:

  • Cabaré Onírico: 5′44

Cristian Budu revisita o universo dos pianeiros. Esses profissionais, que atuavam em ambientes festivos no Brasil do século 20 (bailes dançantes, gafieiras, cinema mudo…) foram muitas vezes responsáveis por trazer as músicas populares para o piano, dando assim um sabor brasileiro para o instrumento. Tia Amélia, que se inspirava no pandeiro, e Ernesto Nazareth, que na música desse videoclipe toca o piano como se fosse um cavaquinho, animam esse cabaré.

  • O protetor Exu 3′26

O protetor Exu é um dos movimentos da Suíte Litúrgica Negra, de Brasílio Itiberê II. Ao tocar essa peça o pianista Cristian Budu tem sua consciência alterada e viaja para um universo desconhecido. Nele, encontra a coreógrafa Rosângela Silvestre que lhe transmite memórias ancestrais através do corpo de Exu. Seus códigos e os elementos da natureza trazem uma revelação ao pianista.

  • Evoca Pompeia: 4′52

A música de Camargo Guarnieri inspira um encontro improvável: de um lado a exuberância das danças e tradições nordestinas, e do outro a profundidade e delicadeza do Teatro Nô. A arquitetura de Lina Bo Bardi e suas pontes suspensas criam um clima mágico para o pianista Cristian Budu realizar uma missão arriscada: tirar o piano da sala de concerto e fazer a música ressoar pela cidade.

  • Reflexões Sobre Identidade Brasileira na Música 27′35:

O que é música brasileira? Cristian Budu investiga um repertório variado de compositores brasileiros para piano. Nascido no Brasil, filho de pais romenos, navegando entre o erudito o popular, o músico também reflete sobre a sua própria identidade brasileira. Os convidados Hercules Gomes (pianista e estudioso do choro) e Camila Fresca (pesquisadora especializada em música clássica) trazem reflexões sobre identidade brasileira na música e o papel do piano nessa história.

Esqueça a casaca preta e a figura do pianista caminhando para o seu instrumento na sala de concertos. Prepare-se para se surpreender, ter seus ouvidos sacudidos por sonoridades inéditas. De repente, a música ouvida no ambiente clássico adquire musculatura, revive no momento da execução como se tivesse sido composta – supremo sacrilégio – pelo intérprete. É música de carne e osso, que desce do Olimpo das obras-primas e “conversa” com a gente, que paga para “ficar em silêncio”, na expressão contundente do pianista Cristian Budu, 36 anos, em entrevista ao Estadão.

Ele acaba de lançar um álbum duplo intitulado Pianolatria, pelo Selo SESC, que tem tudo para estimular novas gerações de músicos, não só pianistas, a assumir o papel não só de ser fiel à obra musical escrita no pentagrama pelo compositor, mas de fato conviver com ela, trazê-la para o mundo contemporâneo. “Preciso me surpreender com uma coisa sempre nova. Do contrário, perco o interesse. Num recital em que não errei nenhuma nota, o que tinha programado saiu exatamente como tinha ensaiado, saí infeliz”.

Cristian Budu, hoje o maior pianista brasileiro, nasceu em São Bernardo, mas foi criado em Diadema.  Foto: Werther Santana/Estadão

Num mundo em que a fidelidade à obra dos grandes mestres é um mantra intocável, este tipo de declaração choca. E não só os músicos, mas sobretudo um público acostumado a ouvir sua interpretação favorita milhões de vezes e que quer vê-la reproduzida, como um simulacro, no palco.

Mesmo assim, o mundo musical está a seus pés, muito por causa de suas conquistas extraordinárias nos últimos catorze anos. De repente, ele apareceu numa lista das dez gravações mais relevantes de Chopin, e outra de Beethoven, ambas da revista inglesa Gramophone.

Cristian relembra que “foi um baque muito grande, as pessoas começaram a me tratar muito diferente. Este tratamento não era sincero. Parei de tocar nos meses seguintes, porque não havia sinceridade comigo, portanto eu também não estava sendo sincero. Neguei convites. Foi bem difícil. No ano seguinte tive depressão, não gostava daquele olhar diferente”.

A sequência de prêmios foi de fato impactante. Começou aos 9 anos, quando ganhou um Concurso Magda Tagliaferro; dez anos depois, aos 19, o Prelúdio, da TV Cultura, em 2007; aos 22, o Concurso Nelson Freire no Rio de Janeiro em 2010; e aos 25, em 2013, o Grande Prêmio e dois prêmios extras de um dos mais reputados concursos de piano no planeta: o Clara Haskil (1895-1960), na Suíça, que já premiou pianistas como Steven Osborne e Till Fellner. Foi um reencontro com suas raízes, já que Haskil era romena como seus pais, imigrantes que se fixaram no Grande ABC. Ele nasceu em São Bernardo, mas foi criado em Diadema. Família musical, pai clarinetista e mãe violinista.

Cristian, no entanto, é muito mais do que um pianista excepcional. Ele é um músico que pensa criticamente seu ofício. Ele credita a alguns de seus professores. Quando estudou numa das mais afamadas escolas do planeta, o New England Conservatory, em Boston, nos Estados Unidos, ele teve em Russell Sherman (1930-2023) uma estrela-guia: “Conheci Schoenherg por ele”.

O compositor austríaco foi responsável por uma das maiores revoluções da música, com a adoção do atonalismo e em seguida a da música serial. Cristian não disse, mas Sherman conta que o fundamental para o pianista é “o prazer de tocar, não apenas o virtuosismo técnico” e atribui a frase a seu professor, o ucraniano Eduard Steuermann (1892-1964), braço direito de Schoenberg na Sociedade de Execuções Musicais Privadas em Viena, entre 1918 e 1922, então vivendo nos EUA.

O pianista Cristian Budu está lançando 'Pianolatria' Foto: Werther Santana/Estadão

Outro dado essencial que nos ajuda a entender as razões da maravilhosa liberdade criativa que Budu exerce em seu ofício: em 1967, Sherman foi convidado para dar aulas no New England por seu diretor, Gunther Schuller (1925-2015), não por acaso criador, em 1957, da Third Stream, uma fusão entre o jazz e a música clássica que escandalizou os puristas eruditos.

Mais uma detalhe: o pianista canadense Marc-André Hamelin, 62 anos, foi aluno de Sherman. Basta olhar para a discografia de Hamelin para perceber semelhanças com a postura de Budu: em mais de 60 álbuns, ele garimpa compositores soterrados que no entanto merecem ser tocados no século 21. Nomes injustamente desconhecidos como Sorabji, Alkan, Roslavets, Catoire, Max Reger. Também compõe: gravou em 2010 seus Estudos em todas as tonalidades menores. E também um delicioso álbum de “rags”.

O maior mestre

Mas o encontro mais decisivo de sua vida aconteceu quando Cristian tinha 13 anos e estudava no SESC Ipiranga com Marina Brandão. “Eu não achava atrativo o ambiente. Minha realidade de adolescente era outra, não havia nenhuma abertura pra se conversar ou pensar como sair daquilo”. E conclui: “Sempre olhamos muito pra Europa”.

Foi, porém, no SESC Ipiranga, que ele assistiu a um espetáculo dos Brincante de Antonio Nóbrega que foi a maior epifania de sua vida. Aos 71 anos, nascido no Recife, Nóbrega foi convidado por Ariano Suassuna, criador do Movimento Armorial, para integrar o Quinteto Armorial. Ele tocava violino. Muito além do Auto da Compadecida, Suassuna conseguiu a proeza de transformar a cultura popular no vulcão que constitui o magma das artes em geral e da música no Brasil. Atitude-chave: não há palco e plateia, há brincantes que participam de mesma atividade criativa.

Leitor de Suassuna que viu suas “aulas-espetáculo” disponíveis no YouTube, Cristian se entusiasma: “Um artista e pensador incrível. Carregou sempre a importância da identidade brasileira ‘descolonizada’, e que fala tão bem do ‘Brasil profundo’, tão rico e tão complexo”.

Por isso, seu guru é Nóbrega: “Se não fosse ele, eu não estaria fazendo música profissionalmente. Claro, continuaria gostando, tocaria em casa, mas de forma amadora. Eu não queria fazer uma carreira. Com o Nóbrega entendi como linguagens diferentes convivem juntas. E descobri que posso fazer isso através do piano”.

O álbum duplo Pianolatria faz escolhas surpreendentes para mostrar a música brasileira no período modernista. O título remete ao célebre artigo de Mário de Andrade de 1922 desancando a vida musical pauliasta dominada avassaladoramente pelo piano. Ele clamava por mais concertos sinfônicos, camerísticos, ópera – àquela altura um sonho, que se concretizou na década seguinte quando criou os corpos estáveis no Teatro Municipal de São Paulo.

“Fui muito ajudado na escolha de repertório por Alexandre Dias”, diz Cristian. Alexandre criou em 2015 o Instituto Piano Brasileiro e vem realizando um trabalho fundamental de recenseamento e resgate de partituras e gravações de pianistas brasileiros.

Três exemplos dão a dimensão desta concepção inclusiva da música, que não distingue gêneros ou rótulos. Uma das melodias mais conhecidas da dita música erudita brasileira é a “Alvorada” da ópera Lo Schiavo, de Carlos Gomes. Obra sinfônica. Cristian faz uma surpreendente e maravilhosa parceria com Ulrich Schneider, responsável pela produção musical, edição, mixagem e masterização.

“Em princípio, eu queria fazer uma fantasia sobre a ópera Lo Schiavo, não só sobre a Alvorada. Mostrei pra ele, que sugeriu fazermos alguns dobramentos. Quando ele deu a ideia, achei superlegal. Ele sugeriu nos limitarmos à Alvorada, música muito emblemática, é chamada para o público na Sala São Paulo. Por que não, como diz o Mário de Andrade, não pegar uma peça antiquada, mas fazê-la de outro jeito, que só daria pra fazer com as superposições em estúdio e efeitos sonoros”, diz.

Cristian Budu é considerado o sucessor de Nelson Freire. Foto: Werther Santana/Estadão

“Abracei a ideia, dividi as vozes enquanto estávamos gravando. Fizemos no último dia de gravação. Fiquei muito feliz, porque em geral nas transcrições para piano que existem sempre falta alguma coisa. Como só dá pra fazer em estúdio, nada mais contemporâneo, neste sentido, de uma peça antiga”, completa.

O resultado é fantástico. De repente, esta melodia tão conhecida e antiga soa novinha em folha. O mesmo acontece com a derradeira e 22ª. faixa. Dez em cada dez pianistas tocam Apanhei-te Cavaquinho de Ernesto Nazareth. Cristian também fecha com ela, só que num arranjo seu, que ora encarna o pianeiro carioca, ora o leva para outras paisagens sonoras. Ele conta rindo e orgulhoso que “acabar com Nazareth e sua peça mais conhecida numa versão minha é puro Nóbrega”.

Entre uma e outra, Cristian tira a poeira de outra peça conhecidíssima que toda orquestra brasileira costuma tocar em concertos fora do Brasil: o Batuque de Lorenzo Fernández, em transcrição de Souza Lima. Só que Cristian deu vários pitacos, ampliando a sonoridade, suingando. “Tenho essa péssima mania!!”, respondeu Budu, por mensagem, dias após a entrevista. “Ainda mais quando são obras transcritas... mas tento fazer isso de uma maneira pra não desnaturar a obra”. Desnaturar não, ao contrário, ele injeta vida nelas, como quando sangue novo corre pelas nossas veias.

Além disso, Pianolatria também dá acesso a três videoclips – Cabaré Onírico, O Protetor Exu e Evoca Pompeia – e o doc Reflexões sobre a identidade brasileira na música, com a pesquisadora Camila Fresca e o pianista Hércules Gomes.

O futuro

Quando estudava em Boston, foi no apartamento de Cristian que um grupo de estudantes criou em 2010 o GroupMuse, um novo conceito de fazer música: reunir um grupo de músicos para conviverem juntos e fazerem música as 24 horas do dia. E apresentar os resultados à população local. Pode-se chama-lo de sarau. É o formato dos Festivais Ilumina, que vêm sendo realizados no Brasil nos últimos anos.

Ao retornar para o Brasil, Cristian criou Pianosofia, a versão brasileira deste encontro de músicos e público em pequenos espaços que favorecem a participação de todos. “Eu queria chegar perto das pessoas de verdade, inclusive com os músicos, que eles corressem riscos, tentassem coisas novas. Gostava da sensação de que as pessoas estavam ouvindo de verdade. A maneira de ver música tradicional não incentiva isso. São estruturas gigantes que mandam nisso”. Hoje, o projeto “está hibernando. Quero reestruturá-lo, mas sempre com o objetivo de estimular músicos locais a fazer música de câmara em saraus, unindo gerações diferentes de musicistas”.

Este ano, fará turnês no Japão e no Vietnã. Em novembro, três recitais em Tóquio, no Vietnã com orquestra. E também toca em setembro em embaixadas em Bruxelas e Bratislava. Repertório? “Só música brasileira, quero mergulhar cada vez mais na música brasileira”. Em Tóquio também? Ele ri e diz: “Não, eles não toparam. Negociamos: metade repertório europeu, metade brasileiro”.

Em gravações, sua ideia é construir um álbum semelhante ao Pianolatria, com obras de 2000 pra cá de compositores brasileiros vivos. “E quero espalhar os festivais de residência artística”.

Para Ouvir

  • Alvorada da ópera ‘Lo Schiavo’, de Carlos Gomes, arranjo de Cristian Budu e Ulrich Schneider:
  • Batuque, de Lorenzo Fernandez, arranjo de Souza Lima:
  • Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, arranjo Cristian Budu:

Para assistir

O projeto Pianolatria é muito mais do que um álbum duplo, inclui três vídeoclips e um doc:

  • Cabaré Onírico: 5′44

Cristian Budu revisita o universo dos pianeiros. Esses profissionais, que atuavam em ambientes festivos no Brasil do século 20 (bailes dançantes, gafieiras, cinema mudo…) foram muitas vezes responsáveis por trazer as músicas populares para o piano, dando assim um sabor brasileiro para o instrumento. Tia Amélia, que se inspirava no pandeiro, e Ernesto Nazareth, que na música desse videoclipe toca o piano como se fosse um cavaquinho, animam esse cabaré.

  • O protetor Exu 3′26

O protetor Exu é um dos movimentos da Suíte Litúrgica Negra, de Brasílio Itiberê II. Ao tocar essa peça o pianista Cristian Budu tem sua consciência alterada e viaja para um universo desconhecido. Nele, encontra a coreógrafa Rosângela Silvestre que lhe transmite memórias ancestrais através do corpo de Exu. Seus códigos e os elementos da natureza trazem uma revelação ao pianista.

  • Evoca Pompeia: 4′52

A música de Camargo Guarnieri inspira um encontro improvável: de um lado a exuberância das danças e tradições nordestinas, e do outro a profundidade e delicadeza do Teatro Nô. A arquitetura de Lina Bo Bardi e suas pontes suspensas criam um clima mágico para o pianista Cristian Budu realizar uma missão arriscada: tirar o piano da sala de concerto e fazer a música ressoar pela cidade.

  • Reflexões Sobre Identidade Brasileira na Música 27′35:

O que é música brasileira? Cristian Budu investiga um repertório variado de compositores brasileiros para piano. Nascido no Brasil, filho de pais romenos, navegando entre o erudito o popular, o músico também reflete sobre a sua própria identidade brasileira. Os convidados Hercules Gomes (pianista e estudioso do choro) e Camila Fresca (pesquisadora especializada em música clássica) trazem reflexões sobre identidade brasileira na música e o papel do piano nessa história.

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