‘Corta essa’: pesquisador tenta decifrar música ‘perdida’ de Caetano e Macalé revelada pelo Estadão


Os versos ecoam outra música de Caetano, ‘Domingo’, lançada com Gal Costa no disco homônimo, de 1967, escreve Eucanaã Ferraz, poeta e organizador de livros de letras de Caetano Veloso

Por Eucanaã Ferraz
Atualização:

Um pouco de 1972: Jards Macalé chegou ao Brasil, no Rio de Janeiro, dia 9 de janeiro de 1972, com outros músicos que trabalhavam com Caetano e Gil em Londres e Guilherme Araújo. Caetano aterrissou dois dias depois. No dia 14 (data da chegada de Gil), apresentaram-se no Teatro João Caetano, no Centro do Rio, com Tutty Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Souza.

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A letra de Corta Essa soa, hoje, um tanto obscura. O que seria a ‘Terceira praça’? Poderia ser uma referência à Praça Onze, que foi a primeira praça do samba, sob a qual pairava a figura magnânima da lendária tia Ciata e de outras tias. Foi, digamos, o nascimento do samba. Caetano falará disso em Onde o rio é mais baiano: ‘Que alegria não ter sido em vão que ela [a Bahia] expediu / as Ciatas pra trazerem o samba pra o Rio / pois o mito surgiu dessa maneira’. O segundo momento seria o do carnaval, e com ele a Praça Onze viveu seu segundo grande momento: seria a ‘segunda praça’. As escolas de samba, marcariam um terceiro momento, instalando uma ‘terceira praça’.

Depois, a história espichou e se complexificou, para o bem e para o mal, com os grandes desfiles. Essa ideia de uma Praça Onze como três praças aparece num texto de Osvaldo Perine e José de la Peña Neto, publicado no Jornal do Brasil justamente em 1972, no dia 7 de fevereiro, para ser exato. É instigante imaginar que a ‘terceira praça’ da letra da canção (de Caetano, decerto) seria uma referência à história da Praça Onze. Mas considero pouco provável que a referência seja essa.

Se o fosse – insisto mais um pouco, movido pelas repercussões possíveis – levaria a outra ideia: a de que é o samba que fala ali. Ele chega ‘cambaleando’ (‘foi por aí cambaleando, se acabando num cordão / com o reco-reco na mão...’, versos de Camisa Amarela, de Ary Barroso), e quando parecia não ter o que dizer, propõe uma perturbação, uma agitação, uma revolução: “corta essa” (gíria daquele início dos anos 1970), mudar de rumo, esvoaçar (verbo usado de modo inusitado como transitivo direto) “os vidros da cidade” e viver a vida. Continuar em frente.

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A “rosa” seria uma referência ao célebre espetáculo Rosa de Ouro, de 1965? Afinal, foi um marco no mundo do samba, que, idealizado por Hermínio Bello de Carvalho, assinalou o início da carreira artística de Clementina de Jesus, a retomada da carreira de Aracy Cortes e lançou luz sobre os outros participantes, que se tornariam ilustres para o grande público: Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nelson Sargento, Anescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho. Afirmar que a “rosa continua” seria, assim, uma afirmação do samba, da cultura popular, de um certo Brasil – do Brasil certo – no contexto medonho da ditadura militar. E é claro que a proposição de “cortar essa” e “esvoaçar” “os vidros da cidade” soa como um gesto político de recusa e renovação.

É importante saber se a letra faz parte de um samba. E cabe lembrar que Caetano e Macalé haviam gravado Mora na Filosofia, de Monsueto, em Transa.

A letra da canção ecoa outra de Caetano, Domingo, lançada com Gal Costa no disco homônimo, de 1967. Lá estão a “praça”, a “rosa”, mas também uma espécie de rodopio, espaço e tempo girando, seguindo, exigindo o movimento, a liberdade, do mesmo modo que aparecerá depois em Alegria, Alegria, “caminhando contra o vento sem lenço sem movimento”, ou ainda, “eu vou, por que não?”

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De qualquer modo, os versos de Corta Essa propõem a interrupção de um estado de coisas, de uma realidade desanimadora e indesejável e a consequente disposição para uma mudança radical: “fazer um milagre”. Estão aí o espírito da Tropicália e, de certo modo, o ânimo existencial, político e estético de Transa.

* Eucanaã Ferraz é poeta, professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro e organizador dos livros ‘Letra só' e ‘Letras’ (Cia da Letras), com a obra de Caetano

Caetano Veloso (à direita) veste figurino alusivo às cores da capa do álbum 'Transa', revisitado com Jards Macalé (ao violão) em show em festival  Foto: Felipe Gomes / 'Doce maravilha'
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A letra completa de Corta Essa

“Chegou cambaleando pela escada

E quando já não ia dizer nada

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Falou:

Olha aqui amizade

Vamos fazer uma milagre

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Falou:

Esvoaçando os vidros da cidade

A primeira tarde sim começa assim

A primavera tarde sim começa

Corta essa, corta essa, corta essa

A terceira praça não começa em mim

E a quarta parte não te cabe baby

Basta de promessa, prosa, pressa

Corta essa, corta essa, corta essa

Topa parceiro? Vem nessa que eu vim?

Promessa é dúvida, e a vida continua

E a rua e a casa e a rosa continua

A cidade continua”

A letra de 'Corta Essa', de Caetano Veloso e Jards Macalé, enviada para a censura Foto: Reprodução

Um pouco de 1972: Jards Macalé chegou ao Brasil, no Rio de Janeiro, dia 9 de janeiro de 1972, com outros músicos que trabalhavam com Caetano e Gil em Londres e Guilherme Araújo. Caetano aterrissou dois dias depois. No dia 14 (data da chegada de Gil), apresentaram-se no Teatro João Caetano, no Centro do Rio, com Tutty Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Souza.

A letra de Corta Essa soa, hoje, um tanto obscura. O que seria a ‘Terceira praça’? Poderia ser uma referência à Praça Onze, que foi a primeira praça do samba, sob a qual pairava a figura magnânima da lendária tia Ciata e de outras tias. Foi, digamos, o nascimento do samba. Caetano falará disso em Onde o rio é mais baiano: ‘Que alegria não ter sido em vão que ela [a Bahia] expediu / as Ciatas pra trazerem o samba pra o Rio / pois o mito surgiu dessa maneira’. O segundo momento seria o do carnaval, e com ele a Praça Onze viveu seu segundo grande momento: seria a ‘segunda praça’. As escolas de samba, marcariam um terceiro momento, instalando uma ‘terceira praça’.

Depois, a história espichou e se complexificou, para o bem e para o mal, com os grandes desfiles. Essa ideia de uma Praça Onze como três praças aparece num texto de Osvaldo Perine e José de la Peña Neto, publicado no Jornal do Brasil justamente em 1972, no dia 7 de fevereiro, para ser exato. É instigante imaginar que a ‘terceira praça’ da letra da canção (de Caetano, decerto) seria uma referência à história da Praça Onze. Mas considero pouco provável que a referência seja essa.

Se o fosse – insisto mais um pouco, movido pelas repercussões possíveis – levaria a outra ideia: a de que é o samba que fala ali. Ele chega ‘cambaleando’ (‘foi por aí cambaleando, se acabando num cordão / com o reco-reco na mão...’, versos de Camisa Amarela, de Ary Barroso), e quando parecia não ter o que dizer, propõe uma perturbação, uma agitação, uma revolução: “corta essa” (gíria daquele início dos anos 1970), mudar de rumo, esvoaçar (verbo usado de modo inusitado como transitivo direto) “os vidros da cidade” e viver a vida. Continuar em frente.

A “rosa” seria uma referência ao célebre espetáculo Rosa de Ouro, de 1965? Afinal, foi um marco no mundo do samba, que, idealizado por Hermínio Bello de Carvalho, assinalou o início da carreira artística de Clementina de Jesus, a retomada da carreira de Aracy Cortes e lançou luz sobre os outros participantes, que se tornariam ilustres para o grande público: Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nelson Sargento, Anescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho. Afirmar que a “rosa continua” seria, assim, uma afirmação do samba, da cultura popular, de um certo Brasil – do Brasil certo – no contexto medonho da ditadura militar. E é claro que a proposição de “cortar essa” e “esvoaçar” “os vidros da cidade” soa como um gesto político de recusa e renovação.

É importante saber se a letra faz parte de um samba. E cabe lembrar que Caetano e Macalé haviam gravado Mora na Filosofia, de Monsueto, em Transa.

A letra da canção ecoa outra de Caetano, Domingo, lançada com Gal Costa no disco homônimo, de 1967. Lá estão a “praça”, a “rosa”, mas também uma espécie de rodopio, espaço e tempo girando, seguindo, exigindo o movimento, a liberdade, do mesmo modo que aparecerá depois em Alegria, Alegria, “caminhando contra o vento sem lenço sem movimento”, ou ainda, “eu vou, por que não?”

De qualquer modo, os versos de Corta Essa propõem a interrupção de um estado de coisas, de uma realidade desanimadora e indesejável e a consequente disposição para uma mudança radical: “fazer um milagre”. Estão aí o espírito da Tropicália e, de certo modo, o ânimo existencial, político e estético de Transa.

* Eucanaã Ferraz é poeta, professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro e organizador dos livros ‘Letra só' e ‘Letras’ (Cia da Letras), com a obra de Caetano

Caetano Veloso (à direita) veste figurino alusivo às cores da capa do álbum 'Transa', revisitado com Jards Macalé (ao violão) em show em festival  Foto: Felipe Gomes / 'Doce maravilha'

A letra completa de Corta Essa

“Chegou cambaleando pela escada

E quando já não ia dizer nada

Falou:

Olha aqui amizade

Vamos fazer uma milagre

Falou:

Esvoaçando os vidros da cidade

A primeira tarde sim começa assim

A primavera tarde sim começa

Corta essa, corta essa, corta essa

A terceira praça não começa em mim

E a quarta parte não te cabe baby

Basta de promessa, prosa, pressa

Corta essa, corta essa, corta essa

Topa parceiro? Vem nessa que eu vim?

Promessa é dúvida, e a vida continua

E a rua e a casa e a rosa continua

A cidade continua”

A letra de 'Corta Essa', de Caetano Veloso e Jards Macalé, enviada para a censura Foto: Reprodução

Um pouco de 1972: Jards Macalé chegou ao Brasil, no Rio de Janeiro, dia 9 de janeiro de 1972, com outros músicos que trabalhavam com Caetano e Gil em Londres e Guilherme Araújo. Caetano aterrissou dois dias depois. No dia 14 (data da chegada de Gil), apresentaram-se no Teatro João Caetano, no Centro do Rio, com Tutty Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Souza.

A letra de Corta Essa soa, hoje, um tanto obscura. O que seria a ‘Terceira praça’? Poderia ser uma referência à Praça Onze, que foi a primeira praça do samba, sob a qual pairava a figura magnânima da lendária tia Ciata e de outras tias. Foi, digamos, o nascimento do samba. Caetano falará disso em Onde o rio é mais baiano: ‘Que alegria não ter sido em vão que ela [a Bahia] expediu / as Ciatas pra trazerem o samba pra o Rio / pois o mito surgiu dessa maneira’. O segundo momento seria o do carnaval, e com ele a Praça Onze viveu seu segundo grande momento: seria a ‘segunda praça’. As escolas de samba, marcariam um terceiro momento, instalando uma ‘terceira praça’.

Depois, a história espichou e se complexificou, para o bem e para o mal, com os grandes desfiles. Essa ideia de uma Praça Onze como três praças aparece num texto de Osvaldo Perine e José de la Peña Neto, publicado no Jornal do Brasil justamente em 1972, no dia 7 de fevereiro, para ser exato. É instigante imaginar que a ‘terceira praça’ da letra da canção (de Caetano, decerto) seria uma referência à história da Praça Onze. Mas considero pouco provável que a referência seja essa.

Se o fosse – insisto mais um pouco, movido pelas repercussões possíveis – levaria a outra ideia: a de que é o samba que fala ali. Ele chega ‘cambaleando’ (‘foi por aí cambaleando, se acabando num cordão / com o reco-reco na mão...’, versos de Camisa Amarela, de Ary Barroso), e quando parecia não ter o que dizer, propõe uma perturbação, uma agitação, uma revolução: “corta essa” (gíria daquele início dos anos 1970), mudar de rumo, esvoaçar (verbo usado de modo inusitado como transitivo direto) “os vidros da cidade” e viver a vida. Continuar em frente.

A “rosa” seria uma referência ao célebre espetáculo Rosa de Ouro, de 1965? Afinal, foi um marco no mundo do samba, que, idealizado por Hermínio Bello de Carvalho, assinalou o início da carreira artística de Clementina de Jesus, a retomada da carreira de Aracy Cortes e lançou luz sobre os outros participantes, que se tornariam ilustres para o grande público: Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Nelson Sargento, Anescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho. Afirmar que a “rosa continua” seria, assim, uma afirmação do samba, da cultura popular, de um certo Brasil – do Brasil certo – no contexto medonho da ditadura militar. E é claro que a proposição de “cortar essa” e “esvoaçar” “os vidros da cidade” soa como um gesto político de recusa e renovação.

É importante saber se a letra faz parte de um samba. E cabe lembrar que Caetano e Macalé haviam gravado Mora na Filosofia, de Monsueto, em Transa.

A letra da canção ecoa outra de Caetano, Domingo, lançada com Gal Costa no disco homônimo, de 1967. Lá estão a “praça”, a “rosa”, mas também uma espécie de rodopio, espaço e tempo girando, seguindo, exigindo o movimento, a liberdade, do mesmo modo que aparecerá depois em Alegria, Alegria, “caminhando contra o vento sem lenço sem movimento”, ou ainda, “eu vou, por que não?”

De qualquer modo, os versos de Corta Essa propõem a interrupção de um estado de coisas, de uma realidade desanimadora e indesejável e a consequente disposição para uma mudança radical: “fazer um milagre”. Estão aí o espírito da Tropicália e, de certo modo, o ânimo existencial, político e estético de Transa.

* Eucanaã Ferraz é poeta, professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro e organizador dos livros ‘Letra só' e ‘Letras’ (Cia da Letras), com a obra de Caetano

Caetano Veloso (à direita) veste figurino alusivo às cores da capa do álbum 'Transa', revisitado com Jards Macalé (ao violão) em show em festival  Foto: Felipe Gomes / 'Doce maravilha'

A letra completa de Corta Essa

“Chegou cambaleando pela escada

E quando já não ia dizer nada

Falou:

Olha aqui amizade

Vamos fazer uma milagre

Falou:

Esvoaçando os vidros da cidade

A primeira tarde sim começa assim

A primavera tarde sim começa

Corta essa, corta essa, corta essa

A terceira praça não começa em mim

E a quarta parte não te cabe baby

Basta de promessa, prosa, pressa

Corta essa, corta essa, corta essa

Topa parceiro? Vem nessa que eu vim?

Promessa é dúvida, e a vida continua

E a rua e a casa e a rosa continua

A cidade continua”

A letra de 'Corta Essa', de Caetano Veloso e Jards Macalé, enviada para a censura Foto: Reprodução

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