De Chico Cesar, mesmo que ainda combativo desejando “fogo nos fascistas” no mesmo álbum que afirma ser o amor “um ato revolucionário”, a Nando Reis e Arnaldo Antunes, explicando em recente entrevista ao Estado como a palavra amor já passa a soar como uma resistência em si, as armas parecem estar sendo substituídas. O contexto de polarização miscigenada que coloca lado a lado, na mesma plateia, fãs crentes das duas linhas de pensamento político às quais um País de 202 milhões de viventes parece ter se reduzido, exige a descoberta de um novo eixo combativo.
A voz de Emicida no álbum AmarElo aprofunda o veio que já marcava seus discos anteriores. Ele canta, com uma indignação que não é mais só nervosa, um rap que não é mais só rap. Ao desarmar a alma da sede das vinganças, sai da superfície do ódio e despolariza uma mesma música que, como quem a ouve, pode ser agora seca, dura, melodiosa, tranquila e raivosa. O bem e o mal não estão separados e não vivem apenas no outro. O sistema opressor que se deve combater pode ser minado com menos tiroteio e mais devoção às pequenas alegrias de uma vida adulta. “A música é só uma semente / um sorriso é a única língua que todos entendem”, diz em Principia.
O bom de quem se despolariza é o poder de se trocar a linearidade por uma riqueza sem fim de nuances, e esse é o movimento mais interessante de AmarElo. Cantando sem se entregar ao canto para não deixar de ser rapper, Emicida se junta a Zeca Pagodinho no samba rap Quem Tem Um Amigo Tem Tudo, parceria sua com Wilson das Neves, cantor e baterista morto em 2017. “Ser mano igual Gil e Caetano / Nesse mundo louco é pra poucos / Tanto sufoco insano, encontrei / Voltar pra esse plano e vamos estar voltando...” Ou rappeando com a potência de versos como “eu sonho mais alto que drones / Combustível do meu tipo? A fome / Pra arregaçar como um ciclone (entendeu?) / Pra que amanhã não seja só um ontem” sem se prender ao rap para entregar ao canto de Pabllo Vittar e Majur, eles fazem AmarElo sobre a base do refrão de Belchior em Sujeito de Sorte.
Ismália, com Larissa Luz emulando por ou sem querer Elza Soares e a voz de Fernanda Montenegro declamando versos ao final, é o instante de se lembrar a que mesmo o rap veio, dos tempos em que a raiva movia as montanhas das rimas sem conversões cristãs ou filosóficas. “Oitenta tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo / E quem disparou usava farda / Quem te acusou nem lamentava”. Ouvi-lo assim, inteligentemente driblando os novos Dops sem citar nomes e fatos já citando, ainda é de se lavar a alma. A revolta parece fazer mais sentido quando sai da mesma boca de quem provou que também sabe falar de amor.