A história de Now And Then, que envolve inteligência artificial e foi lançada postumamente depois da morte de dois Beatles, é complicada. Deixou muita gente reticente: a banda acabou, convenhamos, há mais de meio século. O que mais teria para ser visto?
O que se conta oficialmente é romântico, mas levemente enfeitado. No documentário lançado “pelo quarteto” para justificar Now And Then, afirma-se que a ideia de reviver essa música (uma demo de Lennon, encontrada por Yoko) existia desde os anos 90. Com dificuldades tecnológicas, o projeto não foi para frente porque não era possível separar a voz de um falecido John de seu piano.
Dizem que esse não foi o único problema: havia, ainda, o fato de que George não gostava daquela música, como Paul já declarou. (Isso não consta no documentário.)
Décadas se passaram e George, que se foi em 2001, não pôde ver ou opinar sobre o resultado final. Sua participação na música foi uma guitarra composta por ele, mas regravada por Paul. Resta acreditar que o Beatle quieto se emocionaria com o que se tornou: mais que uma música dos Beatles lançada em 2023, Now and Then é uma máquina do tempo.
A música não é a nova grande canção dos Beatles, porque não poderia ser. Mas é suficientemente bonita e soa, sim, como o quarteto. É etérea, com as cordas de grandes clássicos dos Beatles e o som agridoce de uma balada do disco Abbey Road. E produzida por Giles Martin, filho de George Martin, um aceno extra à autenticidade.
E em um mar de Inteligência Artificial, Now And Then tem razão de ser: Paul afirma que os Beatles nunca tiveram medo da tecnologia (verdade) e John gostaria de ver o que eles criaram a partir de sua demo (isso, não dá para saber. Mas se Paul diz, eu gostaria de acreditar).
A voz do cantor, “limpa” com o auxílio de IA, segue com qualidade imperfeita; gera um ruído, uma estranheza que a torna mais genuína. Eu não quero sentir que John foi recriado pelas máquinas – quero sentir que há mesmo um traço dele ali.
É o seu timbre melancólico que, dominante, nos traz um flash da banda. Graças à voz de Lennon, isso não é uma aventura de Paul e Ringo de 2023. É uma música dos Beatles.
Na verdade, a música tem muita história e isso transparece. Nela, há nuances que caberiam textos inteiros. Mas o ponto mais forte é o “reencontro” de John Lennon e Paul McCartney. Feito com cuidado, na lacuna entre o possível e o impossível.
Nesse De Volta Para o Futuro, Lennon encontra um McCartney com o dobro de sua idade. É outro ponto de estranheza. E ainda que Paul tenha se colocado em volume mais baixo, está lá a diferença entre quem se foi e quem ficou. Mas eu também acho isso bonito: é Paul quem, sem seu colega, segue procurando trazê-lo consigo. Imagina ter uma vida própria, mas indissociável de um parceiro que já se foi?
Pois é. Now And Then é como uma ode final a tudo que a dupla – mais do que o quarteto – foi. Com algumas coincidências poéticas, como a letra (composta nos anos 70 por Lennon) que diz perfeitamente da história da banda.
Do tanto que ouvi sobre Beatles na minha vida (e os novos documentários, livros, menções), eu costumo sentir que tudo já foi dito. É uma banda que, muito antes de eu nascer, conquistou um lugar no Olimpo musical que já não estava restrito à sua época. Mas em certas ocasiões, falar de Beatles vinha se tornando um disco arranhado: não havia um detalhe na vida dos quatro que já não tivesse sido destrinchado publicamente. E geralmente feito não por eles próprios, mas pelos outros.
Então, Now And Then realiza esse feito de assinalar a história com uma novidade, amarrando pontas deixadas para trás. Tira um pouco da amargura de como foi o fim da banda – à maneira dos quatro.
E que músicos, senão os de maior impacto no mundo, poderiam viajar pelo tempo, com décadas de trajetória? Não eram os Beatles o grupo que, sem medo, encarava novos estúdios e tecnologias com uma curiosidade quase infantil? Pois é. Talvez não haja forma melhor de se reforçar na crista da onda do que fazendo o impossível, com suas próprias vozes.
Os Beatles se encontraram pela última vez. Difícil dizer que não há poesia nisso.
- Leia mais: Rejeitada por George e resgatada por Paul: entenda ‘Now and then’, ‘última música’ dos Beatles
- Veja abaixo o documentário lançado sobre a música:
‘NOW AND THEN’ - LETRA:
I know it’s true
It’s all because of you
And, if I make it through
It’s all because of you
And, now and then
If we must start again
Well, we will know for sure
That I will love you
Now and then
I miss you
Oh, now and then
I want you to be there for me
Always to return to me
I know it’s true
It’s all because of you
And, if you go away
I know you’ll never stay
Now and then
I miss you
Oh, now and then
I want you to be there for me
I know it’s true
It’s all because of you
And, if I make it through
It’s all because of you
‘NOW AND THEN’ - BEATLES - TRADUÇÃO
Sei que é verdade
É tudo por sua causa
E, se eu aguentar
É tudo por sua causa
E, de vez em quando
Se tivermos que começar de novo
Bem, nós teremos certeza
Que eu te amarei
De vez em quando
Eu sinto saudade de você
Oh, de vez em quando
Eu quero que você esteja lá para mim
Sempre retorne para mim
Sei que é verdade
É tudo por sua causa
E, se você for embora
Sei que nunca ficarei
De vez em quando
Eu sinto saudade de você
Oh, de vez em quando
Eu quero que você esteja lá para mim
Sei que é verdade
É tudo por sua causa
E, se eu aguentar
É tudo por sua causa