O recente lançamento de Now and Then, a ‘última música dos Beatles’, com a voz de John Lennon límpida e genuína mais de 40 anos após sua morte, desenhou uma interrogação na testa de fãs de outros artistas: o que os softwares de áudio que usam inteligência artificial podem fazer pela música de catálogo ou demos e gravações amadoras perdidas no tempo?
Em específico para a música brasileira que, por ora, não tem uma Now and Then para chamar de sua: é possível, por exemplo, trazer a “dicção choo-choo de Carmem Miranda”, cujos registros de sua voz foram feitos entre os anos 1930 e 1940, para os dias atuais? Que tal dar um jeito na barafunda sonora que é o álbum Gente da Antiga, que uniu Clementina de Jesus, Pixinguinha e João da Baiana em 1968?
Ou fazer com que o álbum Fa-Tal de Gal Costa, que teve uma gravação não profissional na época, soar menos abafado, com voz e instrumentos refletidos de uma maneira mais brilhante, tal qual como foi a disputada temporada do longínquo ano de 1971? O mesmo poderia ser Rosa dos Ventos, o Show Encantado de Maria Bethânia que também tem registro oficial sonoramente sofrível.
A lista de desejos é grande. O Barra 69, show de despedida de Caetano Veloso e Gilberto Gil antes do exílio, é, até hoje, mero registro histórico e afetivo. Quem sabe ouvir a voz de Elis Regina em uma nova versão do álbum Trem Azul, seu derradeiro show de carreira, captado da mesa de som em mono à época. O encontro de Maria Bethânia e Chico Buarque em 1975 também poderia passar por uma cuidadosa atualização.
A resposta é sim. De maneira geral, é possível melhorar em muito o que as gravadoras têm em catálogo – aqueles álbuns disponíveis em streaming - e fazer restaurações de fitas demos e gravações não profissionais de maneira bastante refinada, tal qual o que foi feito com voz de Lennon.
Tirada de uma fita cassete, repleta de ruídos, a voz de Lennon foi isolada e tratada. A partir disso, recebeu novos acompanhamentos musicais, como a bateria de Ringo Starr e um solo de guitarra de Paul McCartney e pôde se encontrar com seus antigos companheiros de banda. É um caminho, mas não o único.
O engenheiro de som paulistano Carlos Freitas, um dos mais conceituados do mercado, há quatro anos baseado com seu estúdio Classic Master em Weston, na Flórida, Estados Unidos, dá uma ideia sobre como a tecnologia evoluiu desde os anos 1990, quando ele começou a trabalhar com restauração de áudio, até chegar a possibilitar uma faixa como Now and Then.
No passado, um profissional levava cerca de quatro horas para tirar um ruído indesejado de dois segundos por meio do software Sonic Solutions. Atualmente, outro programa, o Izotope, transforma o áudio em imagem. Tem-se, então, um espectro no qual com o auxílio de uma ‘borrachinha’ é possível fazer uma verdadeira faxina na gravação.
Freitas foi o responsável pela remasterização do álbum João Gilberto Ao Vivo no Sesc (1998), lançado no começo de 2023 pelo Selo Relicário do Sesc São Paulo. Com o auxílio dessa tecnologia, ele retirou tosses, microfonia e diminuiu o som ambiente, inclusive, baixou em 70% os aplausos da plateia, captados em volume muito alto pela gravação não profissional. O trabalho durou um mês.
Em determinado momento, o canal estéreo desaparecia por três ou quatro segundos. Foram dois dias de trabalho para reconstruir o som.
Carlos Freitas, engenheiro de som
Foi uma remasterização clássica - diferente da reconstrução praticada em Now and Then. Tudo ali é João. Voz e violão traduzidos da maneira mais fiel possível.
Freitas afirma que os softwares - o usado pelos produtores de Now and Then ainda é uma mistério - estão no início de uma era. Com eles, é possível, atualmente, fazer uma espécie de desmixagem. Em uma gravação em estéreo, é viável extrair quatro canais: voz, bateria, baixo e outros. Isolar o som do piano, por exemplo, pode ser uma tarefa quase impossível. É o treinamento ao longo do tempo que dará cada vez mais possibilidades a esses programas.
No início dos anos 2000, Freitas trabalhou na masterização de Tecnicolor, o álbum perdido do grupo Mutantes, gravado em Paris no fim do ano de 1970 e lançado no Brasil apenas no ano 2000. A fita que veio ao País era em mono - que comporta apenas um canal.
Porém, uma cópia guardada pelo então empresário da banda na época, Antonio Peticov, estava em estéreo, o que possibilitou uma recuperação caprichada em um esforço que consumiu seis meses de trabalho.
Vinte três anos depois, Freitas acredita que uma nova versão poderá trazer novas sonoridades ao Tecnicolor.
Carlos Freitas, engenheiro de som
Freitas acha difícil fazer o mesmo com uma gravação de Carmen Miranda, quando havia limite de frequência. Quase não há agudos e graves, apenas médios. “A voz de Carmen poderá soar mais límpida, sem ruídos, mas jamais atual”, opina.
O que pode ser recuperado
A exemplo do que poderia ser feito em uma nova masterização e mixagem de Tecnicolor, outros discos importantes da música brasileira também aguardam na fila para chegarem ao século 21 e soarem mais atuais.
O resultado final, no entanto, depende da mídia em que o arquivo está disponível - e nem todas as gravadoras preservaram corretamente seu arquivo ao longo dos anos. Muitas masters - as multitracks (fitas com múltiplos canais, surgidas nos anos 1970) - se perderam. E tê-las é o cenário mais favorável para esse tipo de projeto.
Discos como Fa-Tal e Rosa dos Ventos foram gravados em fitas de rolo de ¼ de polegada - a gravadora Philips, na época, não tinha unidade de gravação móvel. Foi preciso improvisar. Mesmo totalmente obsoletas, as fitas de rolos ainda são melhores que as fitinhas cassetes na capacidade de armazenar as frequências do áudio, o que favorece sua digitalização.
Apesar das dificuldades, o desafio é o que move os engenheiros de som. Eles costumam fazer algumas mágicas dentro dos estúdios.
Em 1982, logo após a morte da cantora Elis Regina, Carlos de Andrade, da Visom, foi um dos responsáveis por transformar a gravação do show Trem Azul, registrado em fita cassete, em um álbum duplo. “Foi a inteligência natural e muito trabalho”, diz.
O disco chegou ao streaming neste ano, mas não totalmente recuperado - um barulho alto de fita rodando e o som bastante abafado impedem que a audição seja uma boa experiência até mesmo para os fãs de Elis. Andrade é categórico quanto à possibilidade de uma restauração por completo. “Claro que pode ser feita. E não precisa nem de mim. Está em multicanais”, diz, sobre o trabalho feito há mais de 40 anos.
Andrade cita o software Cedar e explica que o programa trabalha com análise neural - método de inteligência artificial que ensina computadores a processar dados de uma forma inspirada pelo cérebro humano. Ele identifica a voz de cada personagem da gravação e a reconstitui, por meio da IA, com uma determinada perfeição. Distorções e erros de velocidade de gravação são corrigidos.
Com o álbum Fa-Tal, de Gal, Andrade diz o que poderia ser feito para que o histórico show soasse mais brilhante. “Se as gravadoras se dispuserem a fazer os investimentos necessários, nem de inteligência artificial seria necessário. É uma remasterização básica”, diz.
“São discos que já se pagaram há muito tempo. Foram lançados em LP, depois CD e agora estão no streaming. Sai mais barato remasterizar do que gravar um álbum novo”, completa Andrade, que trabalhou na restauração das fitas do álbum Os Doces Bárbaros para o relançamento do filme homônimo, de Tom Job Azulay.
O engenheiro diz, no entanto, que é preciso cuidado nesse processo.
Carlos de Andrade
Andrade mixou o CD O Canto da Cidade, disco fundamental de Daniela Mercury e da música brasileira, lançado em 1992, álbum que, segundo ele, também poderia passar por um processo de atualização com as ferramentas disponíveis atualmente. Ou mesmo a obra de Tom Jobim, cujo centenário, em 2027, se aproxima.
‘Now and Then’ de Renato Russo?
Algo parecido com Now and Then serviria a uma nova versão do álbum O Trovador Solitário, com registros de voz e violão de Renato Russo feitos em 1982, antes mesmo dele fazer parte da banda Aborto Elétrico, e reunidas pelo produtor Marcelo Froes em um CD lançado em 2008.
Quem trabalhou na recuperação do áudio foi Ricardo Garcia, do Magic Master. O engenheiro de masterização acredita que agora, 15 anos após o lançamento do álbum, a nova tecnologia poderia fazer as gravações caseiras de Russo soarem bem mais amigáveis aos ouvidos dos seguidores do vocalista do Legião Urbana.
“É voz e violão, caso parecido com a música do John Lennon (que era voz e piano). É bem mais fácil de isolar a voz e um instrumento e conseguir um resultado muito bom”, diz Garcia. Quanto mais instrumentos envolvidos na gravação, por enquanto, mais difícil é isolar o som de cada um.
“As vezes, você consegue extrair cada um deles, mas perde, por exemplo, a ambiência da sala de gravação. Quanto juntar tudo novamente, depois de trabalhar isoladamente neles, o resultado será o mesmo do inicial. Há boas e más soluções”, explica Garcia.
A questão ética
Apesar das múltiplas possibilidades que a inteligência artificial oferece e ainda pode ofertar na recuperação de áudio, Carlos Freitas diz que tudo tudo pode esbarrar em uma questão ética. Qual seria o limite, então?
“Se você for manipular a voz de Roberto Carlos ou Caetano Veloso, será preciso preservar o timbre, até mesmo o tipo de reverb que foi usado. Os artistas não gostam que você mexa nesse tipo de coisa. É um trabalho a ser feito junto a um produtor com sensibilidade artística. É preciso comprometimento com a gravação original”, opina.
Carlos de Andrade segue na mesma linha de pensamento.
Carlos de Andrade, engenheiro de remasterização
Ricardo Garcia lembra de uma história curiosa sob uma remixagem do primeiro álbum do Secos & Molhados, dirigida pelo músico Charles Gavin, Na fita armazenada na gravadora, uma das músicas tinha dois minutos a mais do que a faixa lançada à época, com improvisos dos músicos.
Pensando em agradar os fãs, Gavin adicionou a faixa estendida na reedição em CD. Diante da reclamação de descaracterização da música, uma nova edição teve que ser feita, tal qual a original em vinil. “É uma questão muito delicada”, resume.