Fazer uma análise sobre um álbum nem sempre é uma tarefa das mais fáceis. Em se tratando, então, do Clube da Esquina, de 1972, o esforço precisa ser redobrado. Como dar conta das melodias criadas por Milton Nascimento e Lô Borges e dos versos repletos de símbolos nascidos da sensibilidade de nomes como Márcio Borges, Ronaldo Bastos e Fernando Brant?
Coloque nessa demanda canções como Tudo O Que Você Podia Ser, Cais, O Trem Azul, San Vicente, Paisagem na Janela e Um Gosto de Sol – é preciso considerar ainda que se trata de um álbum duplo, dividido entre um artista à época já consagrado (Milton) e um jovem e desconhecido compositor (Lô, então com 20 anos, dez a menos que o parceiro) –, além da necessidade de localizar esse trabalho em seu contexto histórico.
Nesse sentido, o livro De Tudo Se Faz Canção – 50 Anos de Clube da Esquina (Garota FM Books, em edição bilíngue português e inglês), organizado pelo compositor Márcio Borges e pela jornalista Chris Fuscaldo, cumpre essa demanda ao trazer depoimentos dos realizadores do álbum. Além dos protagonistas, há textos de músicos participantes, entre eles Beto Guedes, Nelson Angelo, Wagner Tiso, Robertinho Silva e Eumir Deodato.
Some-se a isso artigos de jornalistas e músicos que analisam cada uma das 21 faixas do Clube. Dessa forma, é possível montar um quebra-cabeça do seu processo criativo – algo fundamental para o resultado grandioso do disco que virou movimento.
“O Milton sempre valorizou a sonoridade humana (...) e nunca houve censura de nada, nem de ninguém”, declarou o guitarrista Nelson Angelo. “O Clube da Esquina é um movimento, porque praticamente mudou o modo de você ouvir música”, disse o baterista Rubinho no livro.
“Eu acho que foi o grande experimento da música brasileira, porque não tinha regra”, acrescenta o pianista e arranjador Wagner Tiso. “(...) as pessoas que tinham mais amizade e, obviamente, musicalidade, quem tinha um recado musical para dar, o Milton chamou”, escreveu o guitarrista Toninho Horta.
Ao Estadão, Márcio Borges diz que sempre soube que eles e os amigos estavam produzindo um “trabalho de grande valor” quando criaram o Clube da Esquina. “O que faz dele algo especial é a combinação de talento com amizade. Fazíamos músicas porque tínhamos uma vontade muito grande de estar juntos. Éramos jovens, muitos doidos e criativos”, diz Márcio, irmão de Lô.
A sonoridade de Clube da Esquina é outro ponto importante. De início, diz Márcio, muitos a chamaram de “toada mineira”. Não era bem isso. “É toada hard, pop, progressiva, folclórica... É o que o Caetano Veloso escreveu no prefácio de um livro meu: a gente estava inventando aquilo que anos depois os americanos chamariam de fusion”, afirma.
Esse som reverberou na música brasileira. A cantora e compositora Joyce Moreno, que, aliás, participa do Clube da Esquina 2 (1978), já declarou que sua música teve influência dos mineiros. Nana Caymmi também gravou e teve entre seus músicos a maioria deles. Elis Regina, quando quis colocar os pés mais fundos no pop em seu último disco, de 1980, escolheu três músicas da turma. Tom Jobim também os gravou.
Márcio é o criador do lendário verso “e sonhos não envelhecem”, presente na canção Clube da Esquina n.º 2. No álbum Clube da Esquina essa faixa é instrumental. A letra só foi escrita sete anos depois, por insistência de Nana Caymmi, que queria gravá-la.
Na mesma canção, em seguida, está o trecho “em meio a tantos gases lacrimogêneos/ ficam calmos, calmos”. O Clube, claro, flagrou os temores e desejos da juventude que vivia sob vigilância da ditadura militar. O tema aparece ainda em canções como Nada Será Como Antes, Ao Que Vai Nascer, Estrelas e Trem de Doido.
“É um brado contra a repressão de qualquer tipo”, avisa Márcio. Clube da Esquina foi recentemente eleito o melhor álbum de música brasileira de todos os tempos, em votação organizada pelo podcast Discoteca Básica.
DE TUDO SE FAZ CANÇÃO
ORG.: DE MÁRCIO BORGES E CHRIS FUSCALDO
GAROTA FM BOOKS
300 PÁGINAS R$ 149