Dois B.B. Kings no show do rei do blues em SP


O primeiro tem seus 50 anos e só existe na memória de seus fãs; segundo é um senhor de 87 anos

Por Julio Maria - O Estado de S. Paulo

São dois B.B. Kings. Um deles é robusto, ágil e dinâmico. Faz solos vigorosos e sua cabeça não tem um fio de cabelo branco. Gosta de contar histórias de suas ex-mulheres e de lembrar passagens como a do dia em que sua casa pegou fogo e ele desafiou as chamas apenas para salvar Lucille, sua guitarra, o único amor do qual jamais se separou. O outro B.B. está sentado. Ainda tem vigor e alma, mas os olhos cansados e o rosto magro provam que o passar dos anos não preserva nem os reis. Sua voz é baixa, seus dedos lentos e uma tosse insiste em fazer contraponto com a melodia nas tonalidades mais altas. O primeiro B.B. King tem lá seus 50 anos e só existe na memória de seus fãs, escrevendo a história do blues desde 1940. O segundo é um senhor de 87 anos que não consegue colocá-la um ponto final. Na sexta-feira, a plateia do Via Funchal reverenciou o primeiro, mas quem viu mesmo foi o segundo, um herói chegando à inevitável encruzilhada do tempo.

B.B. King merecia um relógio biológico mais resistente. Pelas almas que sua música retirou da escuridão, tem crédito para ganhar de Deus indulto por bom comportamento e seguir na estrada por mais trinta anos, apresentando os oito escudeiros de sua big band com o mesmo sorriso, pedindo que os casais se beijem na plateia com a mesma elegância e tirando The Thrill is Gone e Rock me Baby do centro do mesmo fígado que, por sinal, tem sido poupado do álcool há anos.

Mas não. Como o diabo que voltou para buscar Robert Johnson, a memória trai B.B. mais do que nunca e o faz cantar, por exemplo, uma mesma música por duas vezes quase que seguidas. Constrangido, ele olha para a banda, olha para a plateia, sorri e começa uma outra canção mesmo sem que o público tivesse reclamado de ouvir Guess Who em dose dupla. E o equívoco acontece de novo, com outro blues. Em outros momentos, vira piada nos olhares dos próprios músicos, que se preparam para puxar o final de uma canção quando King lhes tira o chão, muda a ideia de seu solo e os deixa no vácuo.

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King é trazido ao palco por um assistente depois de dois temas longos e instrumentais. Vem em passos lentos até chegar à cadeira ajustada por seu ‘spalla’, o trompetista James Boogaloo Bolden. Seu trabalho já havia começado há pouco mais de uma hora no camarim, quando o empresário Edgard Radesca perguntou se ele gostaria de receber algumas pessoas. "No people, no blues", respondeu, dizendo que só tocaria se visse seus fãs primeiro.

A entrada para chegar ao centro do palco é messiânica, tirando lágrimas de uma gente que se levanta para aplaudir a volta de um homem que luta contra a natureza há anos apenas para rever seu público. King se ajeita na cadeira, recebe Lucille nos braços, faz um breve solo e ganha mais aplausos. Fala mais com o público, sola mais um pouco e começa a dar sinais de que a noite não será de sexo, mas de amor. "Sou um homem de 87 anos, rapazes", não diz, mas parece dizer. Everyday I Have the Blues elevada ao suingue e When Love Comes to Town mais galopante são os trunfos menos óbvios. As outras já estão lá há anos, como portos seguros de letras e solos. Ao terminar cada uma delas, King interrompe o show para olhar e brincar com o seu público. Uma nuvem de impaciência parece rondar a plateia, gritos saem dos cantos da casa e, já que King quer tanto brincar, um jovem faz sua parte: "Toca Raul!" B.B. King sorri para tudo e chega a dançar na cadeira sempre que um fã se manifesta. Mais do que solar, quer o calor das pessoas.

A encruzilhada é essa: se parar de tocar, o homem que se alimenta de gente morre. Se seguir tocando, o nível de suas apresentações cairá até que um dia ele surja em cena apenas para dizer alô. Ao sair do palco amparado pelo mesmo assistente que o trouxera, B.B. King deixou uma profunda tristeza e a sensação de que o mundo começou a perdê-lo.

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São dois B.B. Kings. Um deles é robusto, ágil e dinâmico. Faz solos vigorosos e sua cabeça não tem um fio de cabelo branco. Gosta de contar histórias de suas ex-mulheres e de lembrar passagens como a do dia em que sua casa pegou fogo e ele desafiou as chamas apenas para salvar Lucille, sua guitarra, o único amor do qual jamais se separou. O outro B.B. está sentado. Ainda tem vigor e alma, mas os olhos cansados e o rosto magro provam que o passar dos anos não preserva nem os reis. Sua voz é baixa, seus dedos lentos e uma tosse insiste em fazer contraponto com a melodia nas tonalidades mais altas. O primeiro B.B. King tem lá seus 50 anos e só existe na memória de seus fãs, escrevendo a história do blues desde 1940. O segundo é um senhor de 87 anos que não consegue colocá-la um ponto final. Na sexta-feira, a plateia do Via Funchal reverenciou o primeiro, mas quem viu mesmo foi o segundo, um herói chegando à inevitável encruzilhada do tempo.

B.B. King merecia um relógio biológico mais resistente. Pelas almas que sua música retirou da escuridão, tem crédito para ganhar de Deus indulto por bom comportamento e seguir na estrada por mais trinta anos, apresentando os oito escudeiros de sua big band com o mesmo sorriso, pedindo que os casais se beijem na plateia com a mesma elegância e tirando The Thrill is Gone e Rock me Baby do centro do mesmo fígado que, por sinal, tem sido poupado do álcool há anos.

Mas não. Como o diabo que voltou para buscar Robert Johnson, a memória trai B.B. mais do que nunca e o faz cantar, por exemplo, uma mesma música por duas vezes quase que seguidas. Constrangido, ele olha para a banda, olha para a plateia, sorri e começa uma outra canção mesmo sem que o público tivesse reclamado de ouvir Guess Who em dose dupla. E o equívoco acontece de novo, com outro blues. Em outros momentos, vira piada nos olhares dos próprios músicos, que se preparam para puxar o final de uma canção quando King lhes tira o chão, muda a ideia de seu solo e os deixa no vácuo.

King é trazido ao palco por um assistente depois de dois temas longos e instrumentais. Vem em passos lentos até chegar à cadeira ajustada por seu ‘spalla’, o trompetista James Boogaloo Bolden. Seu trabalho já havia começado há pouco mais de uma hora no camarim, quando o empresário Edgard Radesca perguntou se ele gostaria de receber algumas pessoas. "No people, no blues", respondeu, dizendo que só tocaria se visse seus fãs primeiro.

A entrada para chegar ao centro do palco é messiânica, tirando lágrimas de uma gente que se levanta para aplaudir a volta de um homem que luta contra a natureza há anos apenas para rever seu público. King se ajeita na cadeira, recebe Lucille nos braços, faz um breve solo e ganha mais aplausos. Fala mais com o público, sola mais um pouco e começa a dar sinais de que a noite não será de sexo, mas de amor. "Sou um homem de 87 anos, rapazes", não diz, mas parece dizer. Everyday I Have the Blues elevada ao suingue e When Love Comes to Town mais galopante são os trunfos menos óbvios. As outras já estão lá há anos, como portos seguros de letras e solos. Ao terminar cada uma delas, King interrompe o show para olhar e brincar com o seu público. Uma nuvem de impaciência parece rondar a plateia, gritos saem dos cantos da casa e, já que King quer tanto brincar, um jovem faz sua parte: "Toca Raul!" B.B. King sorri para tudo e chega a dançar na cadeira sempre que um fã se manifesta. Mais do que solar, quer o calor das pessoas.

A encruzilhada é essa: se parar de tocar, o homem que se alimenta de gente morre. Se seguir tocando, o nível de suas apresentações cairá até que um dia ele surja em cena apenas para dizer alô. Ao sair do palco amparado pelo mesmo assistente que o trouxera, B.B. King deixou uma profunda tristeza e a sensação de que o mundo começou a perdê-lo.

 

São dois B.B. Kings. Um deles é robusto, ágil e dinâmico. Faz solos vigorosos e sua cabeça não tem um fio de cabelo branco. Gosta de contar histórias de suas ex-mulheres e de lembrar passagens como a do dia em que sua casa pegou fogo e ele desafiou as chamas apenas para salvar Lucille, sua guitarra, o único amor do qual jamais se separou. O outro B.B. está sentado. Ainda tem vigor e alma, mas os olhos cansados e o rosto magro provam que o passar dos anos não preserva nem os reis. Sua voz é baixa, seus dedos lentos e uma tosse insiste em fazer contraponto com a melodia nas tonalidades mais altas. O primeiro B.B. King tem lá seus 50 anos e só existe na memória de seus fãs, escrevendo a história do blues desde 1940. O segundo é um senhor de 87 anos que não consegue colocá-la um ponto final. Na sexta-feira, a plateia do Via Funchal reverenciou o primeiro, mas quem viu mesmo foi o segundo, um herói chegando à inevitável encruzilhada do tempo.

B.B. King merecia um relógio biológico mais resistente. Pelas almas que sua música retirou da escuridão, tem crédito para ganhar de Deus indulto por bom comportamento e seguir na estrada por mais trinta anos, apresentando os oito escudeiros de sua big band com o mesmo sorriso, pedindo que os casais se beijem na plateia com a mesma elegância e tirando The Thrill is Gone e Rock me Baby do centro do mesmo fígado que, por sinal, tem sido poupado do álcool há anos.

Mas não. Como o diabo que voltou para buscar Robert Johnson, a memória trai B.B. mais do que nunca e o faz cantar, por exemplo, uma mesma música por duas vezes quase que seguidas. Constrangido, ele olha para a banda, olha para a plateia, sorri e começa uma outra canção mesmo sem que o público tivesse reclamado de ouvir Guess Who em dose dupla. E o equívoco acontece de novo, com outro blues. Em outros momentos, vira piada nos olhares dos próprios músicos, que se preparam para puxar o final de uma canção quando King lhes tira o chão, muda a ideia de seu solo e os deixa no vácuo.

King é trazido ao palco por um assistente depois de dois temas longos e instrumentais. Vem em passos lentos até chegar à cadeira ajustada por seu ‘spalla’, o trompetista James Boogaloo Bolden. Seu trabalho já havia começado há pouco mais de uma hora no camarim, quando o empresário Edgard Radesca perguntou se ele gostaria de receber algumas pessoas. "No people, no blues", respondeu, dizendo que só tocaria se visse seus fãs primeiro.

A entrada para chegar ao centro do palco é messiânica, tirando lágrimas de uma gente que se levanta para aplaudir a volta de um homem que luta contra a natureza há anos apenas para rever seu público. King se ajeita na cadeira, recebe Lucille nos braços, faz um breve solo e ganha mais aplausos. Fala mais com o público, sola mais um pouco e começa a dar sinais de que a noite não será de sexo, mas de amor. "Sou um homem de 87 anos, rapazes", não diz, mas parece dizer. Everyday I Have the Blues elevada ao suingue e When Love Comes to Town mais galopante são os trunfos menos óbvios. As outras já estão lá há anos, como portos seguros de letras e solos. Ao terminar cada uma delas, King interrompe o show para olhar e brincar com o seu público. Uma nuvem de impaciência parece rondar a plateia, gritos saem dos cantos da casa e, já que King quer tanto brincar, um jovem faz sua parte: "Toca Raul!" B.B. King sorri para tudo e chega a dançar na cadeira sempre que um fã se manifesta. Mais do que solar, quer o calor das pessoas.

A encruzilhada é essa: se parar de tocar, o homem que se alimenta de gente morre. Se seguir tocando, o nível de suas apresentações cairá até que um dia ele surja em cena apenas para dizer alô. Ao sair do palco amparado pelo mesmo assistente que o trouxera, B.B. King deixou uma profunda tristeza e a sensação de que o mundo começou a perdê-lo.

 

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