Elis Regina e a história inédita do ‘maior disco que nunca foi gravado’


Revelações do produtor David Hadjes trazem detalhes dos motivos que impediram Elis Regina de gravar um álbum estupendo com o saxofonista de jazz Wayne Shorter em 1980

Por Julio Maria
Atualização:

Uma das histórias mais nebulosas sobre a carreira de Elis Regina ganha revelações inéditas com um depoimento ao Estadão do produtor David Hadjes, hoje com 69 anos. Hadjes era o coordenador no Brasil da gravação de um álbum que Elis faria, em 1980, ao lado do saxofonista norte-americano Wayne Shorter, uma das maiores referências do jazz de todos os tempos – algo já chamado de “o melhor álbum que nunca existiu.”

Em foto tirada por Elis aparecem Wayne Shorter ao lado de David Hadjes e Cesar Camargo: climão Foto: Elis Regina / Arquivo pessoal

Elis e Wayne haviam feito um primeiro encontro em Los Angeles, na casa do músico, para tratarem dos detalhes. Roy Cicalla, engenheiro de som que havia gravado álbuns de John Lennon, Aretha Franklin, Madonna e Elvis Presley, faria a captação. Uma segunda reunião foi marcada, desta vez no Brasil, na casa de Elis, na Joatinga, Rio de Janeiro, onde Wayne passou alguns dias hospedado com a mulher, Ana Maria. Mas, de madrugada, logo no início da gravação no então estúdio da gravadora Som Livre, em Botafogo, Rio, um desentendimento seguido de ataques verbais e uma quase agressão física encerrou o projeto em alguns minutos.

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As versões contadas até aqui não traziam detalhes das razões da briga que envolveu Elis, o pianista Cesar Camargo Mariano, e Wayne Shorter. Shorter faz uma rara e sucinta referência ao episódio no documentário Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você, dirigido por Roberto de Oliveira, sobre a gravação do antológico álbum de 1974. O filme vai estrear primeiro nos Estados Unidos, no próximo dia 15, para depois chegar às salas do Brasil, em 21 de setembro.

Ele conta que Elis e Cesar param a gravação, entram em uma sala reservada e começam a brigar feio. Saem então desse espaço já decididos a não mais seguirem com o projeto. Depois de fazer elogios à voz da cantora, diz que “ainda vão se encontrar em algum lugar para fazerem o disco que não puderam fazer em vida”. Shorter morreu em março último, aos 89 anos.

Wayne Shorter em 2013  Foto: Robert Ascroft
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A fala de Hajdes, agora, com muitos detalhes, dá a entender que Shorter pode ter narrado apenas parte da história. “Havia um clima estranho já no primeiro dia em que fomos para o estúdio da Som Livre”, diz o produtor. “Wayne Shorter estava de pé ao lado de Cesar, sentado à frente do piano. Eles iam ensaiar a música The Tiger (nunca lançada), quando tudo aconteceu bem rápido.” Além de The Tiger, há uma segunda canção ainda inédita, lembrada pelo produtor Roberto de Oliveira, chamada As Três Marias, feita por Shorter em homenagem a três mulheres que lutaram contra a ditadura de Antonio Salazar, em Portugal.

Shorter, que não falava português, não sabia como fazer Cesar, que não falava inglês, entender o acorde que ele estava pedindo para sua composição. “Ele queria mostrar a estrutura do acorde a Cesar, e decidiu fazer isso na prática.” Shorter, então, pegou na mão de Cesar para colocá-la nas notas certas, e tudo foi pelos ares. “Quando percebi que e a coisa estava feia, com os dois quase brigando fisicamente, me coloquei no meio deles”, lembra Hadjes.

Elis se aproximou enfurecida e, nas memórias do produtor, “esculhambou” Cesar por algum tempo com frases do tipo “quem você pensa que é, essa é a minha música, esse é o meu piano, até a sua carreira você deve a mim”. Shorter foi a Hadjes, que falava bem inglês e estava responsável pela coordenação das gravações do álbum no Brasil, e disse: “Não tenho condições de trabalhar com ele, e não vou conseguir mais ficar na casa de Elis.” Naquela mesma madrugada, já eram mais de 3h da manhã quando Hadjes levou Shorter para o hotel Ceasar Park e viu um sonho partir em direção aos Estados Unidos na manhã seguinte.

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Tom Jobim, Elis Regina e Cesar Camargo Mariano (ao piano) durante gravação em estúdio nos Estados Unidos, em 1974 Foto: Arquivo/Estadão

Cesar Camargo estava, nesta quarta, 23, na Eslovênia, onde iria se apresentar em um festival de jazz. O Estadão trocou mensagens por e-mail com sua mulher, Flávia, e foi informado de que ele não teria tempo de responder ao jornal, mas Flavia adiantou a posição de Cesar sobre o assunto: “Elis e ele decidiram abortar o projeto quando entraram em estúdio para gravar e, de surpresa, o projeto tomou um rumo totalmente diferente do que foi inicialmente proposto e acordado.”

Quando se pronunciou sobre o assunto, em outras ocasiões, Cesar afirmou que o disco não existiu porque Wayne Shorter não queria que os músicos da banda gravassem nada e que nem Elis sabia o que iria cantar. Afirmou que o norte-americano chegou a dizer que Elis poderia fazer um vocal ou outro em alguma música. Cesar teria então achado tudo absurdo e falado a Shorter que, desse jeito, não iria gravar com Elis. O saxofonista, então, segundo o pianista, teria partido.

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David Hadjes, ao saber dessa versão pelo Estadão, reagiu indignado. “Meu Deus do céu, não existe isso. Elis e Wayne estavam em lua de mel, super afinados. Havia muito dinheiro envolvido na produção, com muitos equipamentos chegando dos Estados Unidos. Quem não estava nisso era o Cesar, o disco era de Elis e Wayne. Nem sabíamos se iríamos usar a gravação do Cesar do piano ou se colocaríamos depois, em overdub, o piano do Herbie Hancock (também jazzista, amigo de Shorter).” E conclui: “Aliás, se isso realmente tivesse acontecido, você acha que Elis não teria esperado Cesar dizer algo? Ela não aceitaria.”

Shorter veio ao Brasil, a convite de Elis, para ficar hospedado em sua casa, de frente para a praia. João Marcello Bôscoli, filho da cantora, então com 10 anos, curtia o “tio” logo de manhã. “A gente assistia televisão juntos e ele falava da trilha sonora dos desenhos. Me lembro de ter ficado cheio de orgulho quando ele me ensinou a recitar um mantra budista para tornar as pessoas felizes à sua volta antes de minha mãe.” Elis começava, por influência de Shorter, a aderir a alguma práticas budistas.

Uma versão levantada por uma fonte do Estadão, ligada a Elis à época, diz que percebeu que Cesar, com o relacionamento entre idas e vindas e bastante desgastado com Elis, pode ter se sentido ameaçado pela nova fase que estava para iniciar na vida da cantora. “As cantoras têm bolhas sonoras em suas carreiras. A de Elis era criada por Cesar Camargo.” Ao perceber que poderia perder o protagonismo na criação do som, ele teria agido, mesmo que inconscientemente, na contramão dos interesses que estavam naquele estúdio.

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O histórico de Wayne Shorter com músicos brasileiros parece também implodir a versão de Cesar. Ao lado de Milton Nascimento, ele fez, em 1974, um álbum estupendo chamado Native Dancer, o disco que apresentou o cantor aos Estados Unidos. “Veja a participação do Milton, ela é marcante. E foi Wayne quem fez questão de sua presença”, diz Hadjes. O álbum com Elis já vinha sendo chamado, nas internas, de Native Dancer 2. Para João Marcello, seria “um Native Dancer elevado à décima potência.” Shorter, aos 47 anos, era um gigante. Depois de passar, nos anos 50, pelo grupo Art Blakey’s Jazz Messengers e, nos 60, pelo segundo quinteto de Miles Davis, estava a pleno vapor no comando do avassalador Weather Report.

Projeto de internacionalizar Elis

Só a imaginação do encontro entre o poder de Elis, que muitas vezes usava sua voz, mesmo instintivamente, com recursos jazzísticos, ao lado de Wayne Shorter já parece um exercício extasiante, mas o fato é que havia um plano maior por trás deste álbum: a internacionalização definitiva da cantora. E o caminho era esse: foi o empresário Joe Ruffalo, da companhia Cavallo Ruffalo Fagnolli Management, responsável à época pelas carreiras dos grupos Weather Report e Earth, Wind and Fire e dos artistas Ray Parker Jr e Prince, quem se interessou por Elis e chegou a mandar redigir o contrato para sua aquisição.

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“Estamos agora com planos de contratar Elis”, disse Ruffalo a seu produtor no Brasil, David Hajdes. “Ele queria a Elis e a Rita Lee, mas acabou ficando só com Elis.” O investimento para a gravação do álbum, pago por Ruffalo, foi grande. “Além de contratar Roy Cicalla, eles estavam trazendo 48 rolos de fita Ampex 456, quando Roberto Carlos só usava 10 em um disco.”

Nem tudo com relação à interrupção de uma carreira de Elis no exterior, no entanto, pode ser colocado na conta de Cesar. Roberto de Oliveira, produtor que trabalhou com Elis na gravação de Elis & Tom, conta que esse foi o terceiro movimento com intenções de posicioná-la fora do Brasil. Os dois anteriores, também frustrados, foram os dias posteriores às gravações do disco com Tom Jobim, nos Estados Unidos, quando o próprio Roberto fez um planejamento de carreira internacional, e em 1979, quando Elis se apresentou no Festival de Montreux, na Suíça.

“Elis não aceitava duas coisas importantes para que esse caminho fosse feito. Morar por seis meses fora do Brasil e falar inglês. Ela tinha bom ouvido, mas não parecia gostar de cantar em outra língua.” Um exemplo é seu pedido para que Roberto retirasse do disco com Tom uma versão em inglês da canção Bonita. Sobre o pós Montreux, conta Roberto, a ideia era torná-la uma espécie de nova Ella Fitzgerald. “Ela estava cotada para isso, mas possuía muitos traumas, não queria enfrentar esse desafio.” Cabe a pergunta: se desaprovou a postura de Cesar, por que Elis não cogitou retomar a ideia com Shorter nem quando o marido se foi, definitivamente? Talvez porque o tenha amado até o último dia de sua vida.

Uma das histórias mais nebulosas sobre a carreira de Elis Regina ganha revelações inéditas com um depoimento ao Estadão do produtor David Hadjes, hoje com 69 anos. Hadjes era o coordenador no Brasil da gravação de um álbum que Elis faria, em 1980, ao lado do saxofonista norte-americano Wayne Shorter, uma das maiores referências do jazz de todos os tempos – algo já chamado de “o melhor álbum que nunca existiu.”

Em foto tirada por Elis aparecem Wayne Shorter ao lado de David Hadjes e Cesar Camargo: climão Foto: Elis Regina / Arquivo pessoal

Elis e Wayne haviam feito um primeiro encontro em Los Angeles, na casa do músico, para tratarem dos detalhes. Roy Cicalla, engenheiro de som que havia gravado álbuns de John Lennon, Aretha Franklin, Madonna e Elvis Presley, faria a captação. Uma segunda reunião foi marcada, desta vez no Brasil, na casa de Elis, na Joatinga, Rio de Janeiro, onde Wayne passou alguns dias hospedado com a mulher, Ana Maria. Mas, de madrugada, logo no início da gravação no então estúdio da gravadora Som Livre, em Botafogo, Rio, um desentendimento seguido de ataques verbais e uma quase agressão física encerrou o projeto em alguns minutos.

As versões contadas até aqui não traziam detalhes das razões da briga que envolveu Elis, o pianista Cesar Camargo Mariano, e Wayne Shorter. Shorter faz uma rara e sucinta referência ao episódio no documentário Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você, dirigido por Roberto de Oliveira, sobre a gravação do antológico álbum de 1974. O filme vai estrear primeiro nos Estados Unidos, no próximo dia 15, para depois chegar às salas do Brasil, em 21 de setembro.

Ele conta que Elis e Cesar param a gravação, entram em uma sala reservada e começam a brigar feio. Saem então desse espaço já decididos a não mais seguirem com o projeto. Depois de fazer elogios à voz da cantora, diz que “ainda vão se encontrar em algum lugar para fazerem o disco que não puderam fazer em vida”. Shorter morreu em março último, aos 89 anos.

Wayne Shorter em 2013  Foto: Robert Ascroft

A fala de Hajdes, agora, com muitos detalhes, dá a entender que Shorter pode ter narrado apenas parte da história. “Havia um clima estranho já no primeiro dia em que fomos para o estúdio da Som Livre”, diz o produtor. “Wayne Shorter estava de pé ao lado de Cesar, sentado à frente do piano. Eles iam ensaiar a música The Tiger (nunca lançada), quando tudo aconteceu bem rápido.” Além de The Tiger, há uma segunda canção ainda inédita, lembrada pelo produtor Roberto de Oliveira, chamada As Três Marias, feita por Shorter em homenagem a três mulheres que lutaram contra a ditadura de Antonio Salazar, em Portugal.

Shorter, que não falava português, não sabia como fazer Cesar, que não falava inglês, entender o acorde que ele estava pedindo para sua composição. “Ele queria mostrar a estrutura do acorde a Cesar, e decidiu fazer isso na prática.” Shorter, então, pegou na mão de Cesar para colocá-la nas notas certas, e tudo foi pelos ares. “Quando percebi que e a coisa estava feia, com os dois quase brigando fisicamente, me coloquei no meio deles”, lembra Hadjes.

Elis se aproximou enfurecida e, nas memórias do produtor, “esculhambou” Cesar por algum tempo com frases do tipo “quem você pensa que é, essa é a minha música, esse é o meu piano, até a sua carreira você deve a mim”. Shorter foi a Hadjes, que falava bem inglês e estava responsável pela coordenação das gravações do álbum no Brasil, e disse: “Não tenho condições de trabalhar com ele, e não vou conseguir mais ficar na casa de Elis.” Naquela mesma madrugada, já eram mais de 3h da manhã quando Hadjes levou Shorter para o hotel Ceasar Park e viu um sonho partir em direção aos Estados Unidos na manhã seguinte.

Tom Jobim, Elis Regina e Cesar Camargo Mariano (ao piano) durante gravação em estúdio nos Estados Unidos, em 1974 Foto: Arquivo/Estadão

Cesar Camargo estava, nesta quarta, 23, na Eslovênia, onde iria se apresentar em um festival de jazz. O Estadão trocou mensagens por e-mail com sua mulher, Flávia, e foi informado de que ele não teria tempo de responder ao jornal, mas Flavia adiantou a posição de Cesar sobre o assunto: “Elis e ele decidiram abortar o projeto quando entraram em estúdio para gravar e, de surpresa, o projeto tomou um rumo totalmente diferente do que foi inicialmente proposto e acordado.”

Quando se pronunciou sobre o assunto, em outras ocasiões, Cesar afirmou que o disco não existiu porque Wayne Shorter não queria que os músicos da banda gravassem nada e que nem Elis sabia o que iria cantar. Afirmou que o norte-americano chegou a dizer que Elis poderia fazer um vocal ou outro em alguma música. Cesar teria então achado tudo absurdo e falado a Shorter que, desse jeito, não iria gravar com Elis. O saxofonista, então, segundo o pianista, teria partido.

David Hadjes, ao saber dessa versão pelo Estadão, reagiu indignado. “Meu Deus do céu, não existe isso. Elis e Wayne estavam em lua de mel, super afinados. Havia muito dinheiro envolvido na produção, com muitos equipamentos chegando dos Estados Unidos. Quem não estava nisso era o Cesar, o disco era de Elis e Wayne. Nem sabíamos se iríamos usar a gravação do Cesar do piano ou se colocaríamos depois, em overdub, o piano do Herbie Hancock (também jazzista, amigo de Shorter).” E conclui: “Aliás, se isso realmente tivesse acontecido, você acha que Elis não teria esperado Cesar dizer algo? Ela não aceitaria.”

Shorter veio ao Brasil, a convite de Elis, para ficar hospedado em sua casa, de frente para a praia. João Marcello Bôscoli, filho da cantora, então com 10 anos, curtia o “tio” logo de manhã. “A gente assistia televisão juntos e ele falava da trilha sonora dos desenhos. Me lembro de ter ficado cheio de orgulho quando ele me ensinou a recitar um mantra budista para tornar as pessoas felizes à sua volta antes de minha mãe.” Elis começava, por influência de Shorter, a aderir a alguma práticas budistas.

Uma versão levantada por uma fonte do Estadão, ligada a Elis à época, diz que percebeu que Cesar, com o relacionamento entre idas e vindas e bastante desgastado com Elis, pode ter se sentido ameaçado pela nova fase que estava para iniciar na vida da cantora. “As cantoras têm bolhas sonoras em suas carreiras. A de Elis era criada por Cesar Camargo.” Ao perceber que poderia perder o protagonismo na criação do som, ele teria agido, mesmo que inconscientemente, na contramão dos interesses que estavam naquele estúdio.

O histórico de Wayne Shorter com músicos brasileiros parece também implodir a versão de Cesar. Ao lado de Milton Nascimento, ele fez, em 1974, um álbum estupendo chamado Native Dancer, o disco que apresentou o cantor aos Estados Unidos. “Veja a participação do Milton, ela é marcante. E foi Wayne quem fez questão de sua presença”, diz Hadjes. O álbum com Elis já vinha sendo chamado, nas internas, de Native Dancer 2. Para João Marcello, seria “um Native Dancer elevado à décima potência.” Shorter, aos 47 anos, era um gigante. Depois de passar, nos anos 50, pelo grupo Art Blakey’s Jazz Messengers e, nos 60, pelo segundo quinteto de Miles Davis, estava a pleno vapor no comando do avassalador Weather Report.

Projeto de internacionalizar Elis

Só a imaginação do encontro entre o poder de Elis, que muitas vezes usava sua voz, mesmo instintivamente, com recursos jazzísticos, ao lado de Wayne Shorter já parece um exercício extasiante, mas o fato é que havia um plano maior por trás deste álbum: a internacionalização definitiva da cantora. E o caminho era esse: foi o empresário Joe Ruffalo, da companhia Cavallo Ruffalo Fagnolli Management, responsável à época pelas carreiras dos grupos Weather Report e Earth, Wind and Fire e dos artistas Ray Parker Jr e Prince, quem se interessou por Elis e chegou a mandar redigir o contrato para sua aquisição.

“Estamos agora com planos de contratar Elis”, disse Ruffalo a seu produtor no Brasil, David Hajdes. “Ele queria a Elis e a Rita Lee, mas acabou ficando só com Elis.” O investimento para a gravação do álbum, pago por Ruffalo, foi grande. “Além de contratar Roy Cicalla, eles estavam trazendo 48 rolos de fita Ampex 456, quando Roberto Carlos só usava 10 em um disco.”

Nem tudo com relação à interrupção de uma carreira de Elis no exterior, no entanto, pode ser colocado na conta de Cesar. Roberto de Oliveira, produtor que trabalhou com Elis na gravação de Elis & Tom, conta que esse foi o terceiro movimento com intenções de posicioná-la fora do Brasil. Os dois anteriores, também frustrados, foram os dias posteriores às gravações do disco com Tom Jobim, nos Estados Unidos, quando o próprio Roberto fez um planejamento de carreira internacional, e em 1979, quando Elis se apresentou no Festival de Montreux, na Suíça.

“Elis não aceitava duas coisas importantes para que esse caminho fosse feito. Morar por seis meses fora do Brasil e falar inglês. Ela tinha bom ouvido, mas não parecia gostar de cantar em outra língua.” Um exemplo é seu pedido para que Roberto retirasse do disco com Tom uma versão em inglês da canção Bonita. Sobre o pós Montreux, conta Roberto, a ideia era torná-la uma espécie de nova Ella Fitzgerald. “Ela estava cotada para isso, mas possuía muitos traumas, não queria enfrentar esse desafio.” Cabe a pergunta: se desaprovou a postura de Cesar, por que Elis não cogitou retomar a ideia com Shorter nem quando o marido se foi, definitivamente? Talvez porque o tenha amado até o último dia de sua vida.

Uma das histórias mais nebulosas sobre a carreira de Elis Regina ganha revelações inéditas com um depoimento ao Estadão do produtor David Hadjes, hoje com 69 anos. Hadjes era o coordenador no Brasil da gravação de um álbum que Elis faria, em 1980, ao lado do saxofonista norte-americano Wayne Shorter, uma das maiores referências do jazz de todos os tempos – algo já chamado de “o melhor álbum que nunca existiu.”

Em foto tirada por Elis aparecem Wayne Shorter ao lado de David Hadjes e Cesar Camargo: climão Foto: Elis Regina / Arquivo pessoal

Elis e Wayne haviam feito um primeiro encontro em Los Angeles, na casa do músico, para tratarem dos detalhes. Roy Cicalla, engenheiro de som que havia gravado álbuns de John Lennon, Aretha Franklin, Madonna e Elvis Presley, faria a captação. Uma segunda reunião foi marcada, desta vez no Brasil, na casa de Elis, na Joatinga, Rio de Janeiro, onde Wayne passou alguns dias hospedado com a mulher, Ana Maria. Mas, de madrugada, logo no início da gravação no então estúdio da gravadora Som Livre, em Botafogo, Rio, um desentendimento seguido de ataques verbais e uma quase agressão física encerrou o projeto em alguns minutos.

As versões contadas até aqui não traziam detalhes das razões da briga que envolveu Elis, o pianista Cesar Camargo Mariano, e Wayne Shorter. Shorter faz uma rara e sucinta referência ao episódio no documentário Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você, dirigido por Roberto de Oliveira, sobre a gravação do antológico álbum de 1974. O filme vai estrear primeiro nos Estados Unidos, no próximo dia 15, para depois chegar às salas do Brasil, em 21 de setembro.

Ele conta que Elis e Cesar param a gravação, entram em uma sala reservada e começam a brigar feio. Saem então desse espaço já decididos a não mais seguirem com o projeto. Depois de fazer elogios à voz da cantora, diz que “ainda vão se encontrar em algum lugar para fazerem o disco que não puderam fazer em vida”. Shorter morreu em março último, aos 89 anos.

Wayne Shorter em 2013  Foto: Robert Ascroft

A fala de Hajdes, agora, com muitos detalhes, dá a entender que Shorter pode ter narrado apenas parte da história. “Havia um clima estranho já no primeiro dia em que fomos para o estúdio da Som Livre”, diz o produtor. “Wayne Shorter estava de pé ao lado de Cesar, sentado à frente do piano. Eles iam ensaiar a música The Tiger (nunca lançada), quando tudo aconteceu bem rápido.” Além de The Tiger, há uma segunda canção ainda inédita, lembrada pelo produtor Roberto de Oliveira, chamada As Três Marias, feita por Shorter em homenagem a três mulheres que lutaram contra a ditadura de Antonio Salazar, em Portugal.

Shorter, que não falava português, não sabia como fazer Cesar, que não falava inglês, entender o acorde que ele estava pedindo para sua composição. “Ele queria mostrar a estrutura do acorde a Cesar, e decidiu fazer isso na prática.” Shorter, então, pegou na mão de Cesar para colocá-la nas notas certas, e tudo foi pelos ares. “Quando percebi que e a coisa estava feia, com os dois quase brigando fisicamente, me coloquei no meio deles”, lembra Hadjes.

Elis se aproximou enfurecida e, nas memórias do produtor, “esculhambou” Cesar por algum tempo com frases do tipo “quem você pensa que é, essa é a minha música, esse é o meu piano, até a sua carreira você deve a mim”. Shorter foi a Hadjes, que falava bem inglês e estava responsável pela coordenação das gravações do álbum no Brasil, e disse: “Não tenho condições de trabalhar com ele, e não vou conseguir mais ficar na casa de Elis.” Naquela mesma madrugada, já eram mais de 3h da manhã quando Hadjes levou Shorter para o hotel Ceasar Park e viu um sonho partir em direção aos Estados Unidos na manhã seguinte.

Tom Jobim, Elis Regina e Cesar Camargo Mariano (ao piano) durante gravação em estúdio nos Estados Unidos, em 1974 Foto: Arquivo/Estadão

Cesar Camargo estava, nesta quarta, 23, na Eslovênia, onde iria se apresentar em um festival de jazz. O Estadão trocou mensagens por e-mail com sua mulher, Flávia, e foi informado de que ele não teria tempo de responder ao jornal, mas Flavia adiantou a posição de Cesar sobre o assunto: “Elis e ele decidiram abortar o projeto quando entraram em estúdio para gravar e, de surpresa, o projeto tomou um rumo totalmente diferente do que foi inicialmente proposto e acordado.”

Quando se pronunciou sobre o assunto, em outras ocasiões, Cesar afirmou que o disco não existiu porque Wayne Shorter não queria que os músicos da banda gravassem nada e que nem Elis sabia o que iria cantar. Afirmou que o norte-americano chegou a dizer que Elis poderia fazer um vocal ou outro em alguma música. Cesar teria então achado tudo absurdo e falado a Shorter que, desse jeito, não iria gravar com Elis. O saxofonista, então, segundo o pianista, teria partido.

David Hadjes, ao saber dessa versão pelo Estadão, reagiu indignado. “Meu Deus do céu, não existe isso. Elis e Wayne estavam em lua de mel, super afinados. Havia muito dinheiro envolvido na produção, com muitos equipamentos chegando dos Estados Unidos. Quem não estava nisso era o Cesar, o disco era de Elis e Wayne. Nem sabíamos se iríamos usar a gravação do Cesar do piano ou se colocaríamos depois, em overdub, o piano do Herbie Hancock (também jazzista, amigo de Shorter).” E conclui: “Aliás, se isso realmente tivesse acontecido, você acha que Elis não teria esperado Cesar dizer algo? Ela não aceitaria.”

Shorter veio ao Brasil, a convite de Elis, para ficar hospedado em sua casa, de frente para a praia. João Marcello Bôscoli, filho da cantora, então com 10 anos, curtia o “tio” logo de manhã. “A gente assistia televisão juntos e ele falava da trilha sonora dos desenhos. Me lembro de ter ficado cheio de orgulho quando ele me ensinou a recitar um mantra budista para tornar as pessoas felizes à sua volta antes de minha mãe.” Elis começava, por influência de Shorter, a aderir a alguma práticas budistas.

Uma versão levantada por uma fonte do Estadão, ligada a Elis à época, diz que percebeu que Cesar, com o relacionamento entre idas e vindas e bastante desgastado com Elis, pode ter se sentido ameaçado pela nova fase que estava para iniciar na vida da cantora. “As cantoras têm bolhas sonoras em suas carreiras. A de Elis era criada por Cesar Camargo.” Ao perceber que poderia perder o protagonismo na criação do som, ele teria agido, mesmo que inconscientemente, na contramão dos interesses que estavam naquele estúdio.

O histórico de Wayne Shorter com músicos brasileiros parece também implodir a versão de Cesar. Ao lado de Milton Nascimento, ele fez, em 1974, um álbum estupendo chamado Native Dancer, o disco que apresentou o cantor aos Estados Unidos. “Veja a participação do Milton, ela é marcante. E foi Wayne quem fez questão de sua presença”, diz Hadjes. O álbum com Elis já vinha sendo chamado, nas internas, de Native Dancer 2. Para João Marcello, seria “um Native Dancer elevado à décima potência.” Shorter, aos 47 anos, era um gigante. Depois de passar, nos anos 50, pelo grupo Art Blakey’s Jazz Messengers e, nos 60, pelo segundo quinteto de Miles Davis, estava a pleno vapor no comando do avassalador Weather Report.

Projeto de internacionalizar Elis

Só a imaginação do encontro entre o poder de Elis, que muitas vezes usava sua voz, mesmo instintivamente, com recursos jazzísticos, ao lado de Wayne Shorter já parece um exercício extasiante, mas o fato é que havia um plano maior por trás deste álbum: a internacionalização definitiva da cantora. E o caminho era esse: foi o empresário Joe Ruffalo, da companhia Cavallo Ruffalo Fagnolli Management, responsável à época pelas carreiras dos grupos Weather Report e Earth, Wind and Fire e dos artistas Ray Parker Jr e Prince, quem se interessou por Elis e chegou a mandar redigir o contrato para sua aquisição.

“Estamos agora com planos de contratar Elis”, disse Ruffalo a seu produtor no Brasil, David Hajdes. “Ele queria a Elis e a Rita Lee, mas acabou ficando só com Elis.” O investimento para a gravação do álbum, pago por Ruffalo, foi grande. “Além de contratar Roy Cicalla, eles estavam trazendo 48 rolos de fita Ampex 456, quando Roberto Carlos só usava 10 em um disco.”

Nem tudo com relação à interrupção de uma carreira de Elis no exterior, no entanto, pode ser colocado na conta de Cesar. Roberto de Oliveira, produtor que trabalhou com Elis na gravação de Elis & Tom, conta que esse foi o terceiro movimento com intenções de posicioná-la fora do Brasil. Os dois anteriores, também frustrados, foram os dias posteriores às gravações do disco com Tom Jobim, nos Estados Unidos, quando o próprio Roberto fez um planejamento de carreira internacional, e em 1979, quando Elis se apresentou no Festival de Montreux, na Suíça.

“Elis não aceitava duas coisas importantes para que esse caminho fosse feito. Morar por seis meses fora do Brasil e falar inglês. Ela tinha bom ouvido, mas não parecia gostar de cantar em outra língua.” Um exemplo é seu pedido para que Roberto retirasse do disco com Tom uma versão em inglês da canção Bonita. Sobre o pós Montreux, conta Roberto, a ideia era torná-la uma espécie de nova Ella Fitzgerald. “Ela estava cotada para isso, mas possuía muitos traumas, não queria enfrentar esse desafio.” Cabe a pergunta: se desaprovou a postura de Cesar, por que Elis não cogitou retomar a ideia com Shorter nem quando o marido se foi, definitivamente? Talvez porque o tenha amado até o último dia de sua vida.

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