Fita gravada por Gilberto Gil para amigos em 1969 guarda impressões e criações pré-exílio; ouça


Em primeira mão, o ‘Estadão’ mostra trechos inéditos da gravação feita pelo compositor na Bahia para ser enviada aos músicos do grupo Beat Boys. Nela, uma versão de Gil cantando ‘Alfômega’, música feita para Caetano Veloso, e a preocupação com os colegas que haviam ficado em São Paulo

Por Danilo Casaletti
Atualização:

Em 1969, Gilberto Gil sabia bem que o correio andava “arisco”. Entre o período pós-prisão e até o exílio em Londres, ele e o amigo Caetano Veloso estiveram na Bahia em prisão domiciliar. Para os mandatários do País daquela época, os dois compositores eram considerados “subversivos”.

Cérebros e principais caras do Tropicalismo, Gil e Caetano estavam proibidos de ser apresentar ou dar qualquer declaração pública sem ordem expressa do governo militar. Também tinham que se apresentar todos os dias às autoridades para provarem que não haviam saído da Bahia. No entanto, calada a voz, restava a cuca – para ainda ficar em Chico Buarque.

Gilberto Gil na gravadora Philips em 23/7/1969, às vésperas de partir para o exílio em Londres Foto: Acervo Estadão
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Em uma visita do músico argentino Tony Osanah, Gil, em vez de escrever para os demais amigos do grupo Beat Boys, do qual Osanah era o guitarrista na época, resolveu gravar uma fita. São sensacionais 30 minutos e 46 segundos [ouça trechos ao longo do texto] que permaneceram inéditos por 55 anos e aos quais a reportagem do Estadão teve acesso. “Assim a gente mata a saudade melhor”, diz Gil, logo no início da gravação.

Um registro histórico. Um documento sobre um período sombrio nas artes brasileiras e um testamento da genialidade de Gil. “Essa música eu fiz três dias atrás”, diz ele, depois de cantar Volks Volkswagen Blues, acompanhando-se no seu violão.

Gil também mostra Futurível. “Uma palavra formada de futuro possível. Eu fiz quando estava na prisão. A respeito do desenvolvimento científico. A possibilidade de transformação do homem, do ser humano, das condições de vida; do planeta em geral. Foi na época que eu estava preso e lançaram a Apollo 8 [na verdade, o voo espacial foi lançado dias antes da prisão de Gil].

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Em outro momento da gravação, Gil apresenta Alfômega, composição de sua autoria que ele acabara de fazer para entregar a Caetano para o amigo gravar no disco que lançaria naquele ano.

“Este é o único registro de Gil cantando Alfômega. Não existe outro conhecido”, atesta o produtor e pesquisador musical Marcelo Fróes, um especialista na obra de Gil, que já descobriu outros materiais inéditos do compositor.

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Na gravação, Gil fala sobre o que o inspirou a fazer a letra. “É um termo que tem significação dentro de umas coisas que estou estudando sobre parapsicologia, o problema da morte, da fé...Uma série de coisas. Os meus babados atuais”, diz. São temas que o acompanhariam até os dias de hoje.

Por fim, Gil canta Cérebro Eletrônico. “Uma musiquinha que fiz na prisão. Uma musiquinha engraçada”, diz ele. A versão tem pouco mais de 10 minutos, com uma espetacular performance de Gil, diferente de todas já conhecidas.

Até aquele momento, essas canções eram inéditas. Seriam lançadas no disco que Gil gravaria dias depois.

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Uma cópia digital da fita, muito bem preservada ao longo dos anos, foi mantida pelo músico Régis Moreira, pianista dos primeiros anos da bossa nova em São Paulo e acompanhante do cantor e compositor Erasmo Carlos no conjunto Os Tremendões. Recentemente, Moreira mostrou a gravação a Ramon Duccini, apresentador do podcast Disco Voador. A história será contada por ele e Osanah nas edições que irão ao ar nos dias 6 e 7 de maio, respectivamente.

Duccini celebra a descoberta da gravação. “É uma peça importante na história do momento entre a prisão e a ida deles para Londres. Até agora, o registro que tínhamos era o disco Barra 69 [de Gil e Caetano]”, diz.

Ao Estadão, Moreira, atualmente com 77 anos, contou que ele e os amigos se juntavam ao redor de Gil na sauna Danúbio, em São Paulo, para ouvir as longas preleções que o compositor fazia sobre diversos assuntos. Eram os tempos dos musicais da TV Record.

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Diante do isolamento involuntário de Gil na Bahia, eles decidiram mandar uma representante para saber de notícias do amigo. Segundo Moreira, a decisão de quem iria até Gil foi por sorteio. Tony ganhou a chance. Mais do que uma escolha, a opção pela viagem era uma preocupação contra a interceptação de correspondência por agentes do governo.

“Fizemos uma vaquinha para ele viajar. Ninguém tinha dinheiro”, conta Moreira, que há 25 anos vive em Sarasota, na Flórida. “Quando Gil mandou a gravação, eu fiz uma cópia para cada amigo que contribuiu para a viagem”, diz.

Duccini relata que Osanah chegou a Salvador pegando carona e percorrendo alguns trechos a pé. A jornada demorou cerca de uma semana. Na volta a São Paulo, a mesma peregrinação. “Foi um milagre essa fita ter resistido”, diz.

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Há certa divergência se a fita cassete original existe ou não até os dias de hoje. Duccini diz que Osanah, que depois de sair do Brasil morou na Espanha e na África e atualmente é professor de música na cidade de Fulda, no sul da Alemanha, lhe mostrou a fita. Moreira dá outra versão: a de que ele, depois de muitos anos, mandou uma gravação em CD para Osanah, que não tinha mais a gravação.

Foi um período muito difícil. Muita insegurança. Havia olheiros por toda a parte

Tony Osanah

Ao Estadão, Osanah confirma ter a fita. “É um assunto muito pessoal”, diz o músico, ao interromper uma apresentação para conversar com a reportagem. “Foi um período muito difícil. Muita insegurança. Havia olheiros por toda a parte”, diz o músico de 77 anos, que há 36 vive na Alemanha.

Na Bahia, Osanah, além de Gil e Caetano, se encontrou com o cineasta Rogério Sganzerla, o ilustrador Rogério Duarte, o poeta Torquato Neto e o roteirista Paulo Gil . “Todos ícones da cultura. Se fosse na época do Castro Alves, certamente ele também estaria ali”, diz Osanah. “Nos encontrávamos para tomar um vinho, uma cerveja, viajar nos pensamentos. Era necessário, pois tudo estava muito limitado.”

Osanah diz ainda ter conhecido Dona Canô, mãe de Caetano, que preparou um vatapá. O músico ficou pouco mais de uma semana em Salvador.

Moreira conta à reportagem que chegou a comentar com Gil sobre a gravação em 1974, quando morou em Salvador e se encontrava regularmente com o compositor na Praia de Itapuã. “Na época ele se lembrava. Hoje, não sei. Não tenho mais acesso ao Gil”, diz. O Estadão entrou em contato com a assessoria do compositor, mas não obteve uma resposta de Gil.

A preocupação de Gil com os amigos e a gravação de um novo disco

Em foto de 1968, Gilberto Gil chega ao apartamento de Caetano Veloso, na Avenida São Luiz, região central de São Paulo Foto: Acervo Estadão

Nos primeiros instantes da fita entregue a Tony Osanah, Gil, após cantarolar trecho da canção Questão de Ordem, gravada no ano anterior com participação do Beat Boys, saúda os companheiros que estavam em São Paulo – o centro da música popular brasileira naquele momento - de onde Gil fora levado de camburão de seu apartamento em 27 de dezembro de 1968 para depois ser transferido para o Rio de Janeiro, cidade na qual ficou preso até fevereiro do mês seguinte junto com Caetano.

“Que que há pessoal, como é que vai? Tudo bom? Alô, Willy (Verdaguer). Alô, Marcelo (Frias). Alô, Cacho (Valdez) [demais músicos do Beat Boys]. O que que há? Como é que vão vocês? Tudo legal? Estou aqui com o Tony (Osanah). O Tony veio me ver aqui na Bahia. Que é bacana! Chegou aqui de surpresa. Domingo. Foi legal! Fiquei muito contente!”, começa Gil.

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" (o Tony) Me contou notícias de vocês. Disse que a turma está toda junta de novo. Todo mundo vivo, dormindo, comendo, vivendo e tocando. Bacana! Legal!”, segue Gil, imprimindo as preocupações daqueles tempos de repressão.

Nessa época, Gil diz que achava que ficaria na Bahia. “Vocês sabem dos problemas todos. Tony conta aí tudo para vocês a situação. Tenho a impressão de que vou ficando aqui pela Bahia. Agora já arrumei um barraquinho e tal. Não sei. Talvez quando me liberarem eu vá até Londres ou Nova York. Mas acho que volto logo”, diz o compositor.

Talvez quando me liberarem eu vá até Londres ou Nova York. Mas acho que volto logo

Gilberto Gil

O mês da gravação da fita é incerto. Tony Osanah diz ao Estadão que era tempo de outono. O produtor Manoel Barenbein, que foi a Salvador juntamente com o maestro Rogério Duprat e o técnico de som Ary Carvalhaes para produzir os discos de Gil e Caetano que seriam lançados naquele ano, acha, pelos dias de chuva - que Gil também cita na gravação -, que tenha sido entre os meses de maio e junho. Em julho de 1969, os militares convidariam os compositores a se retirarem do País. Gil e Caetano foram para Londres. Eles só voltariam em janeiro de 1972.

Na gravação que resistiu ao tempo, Gil menciona o disco encomendado pelos diretores da gravadora Philips. Cita ainda a dificuldade de encontrar músicos, instrumentos e equipamentos de qualidade. “Eu tenho um guitarrista bom aqui, o Pepeu [Gomes]. O Tony o ouviu tocar. É o único músico bom, razoável, ele é muito bom mesmo!”.

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Gil narra que a solução encontrada seria gravar tudo em voz e violão. Posteriormente, Barenbein e Duprat levariam o registro para São Paulo para que os músicos de lá colocassem os outros instrumentos musicais.

Barenbein relata ao Estadão aqueles dias na Bahia. “O conjunto do Pepeu, chamado Leif’s, iria participar do disco. Porém, dias antes, eles foram a um programa de TV local e cantaram uma música chamada Menina dos Peitinhos Duros. Com medo da censura, o produtor de Pepeu fugiu com os instrumentos e equipamentos”, lembra o produtor. A música, que hoje soa misógina, feria a moral e os bons costumes pregados pela censura federal do regime militar.

Uma nova tentativa foi feita, segundo Barenbein, com instrumentos que ele foi buscar em um sítio nos arredores de Salvador. “Eram péssimos. Não dava para gravar”, conta. Quem o ajudou na missão foi Tião Motorista, compositor baiano gravado por nomes como Maria Bethânia, Jair Rodrigues, Wilson Simonal e Elizeth Cardoso.

“A bateria era péssima”, afirma Gil em um momento da fita. “Amanhã vou começar a gravar tudo de violão. É uma pena! Vocês [músicos do Beat Boys] fazem uma falta danada! Em todos os sentidos. Tanto na música quanto nos papos, a amizade”, lamenta-se Gil.

Apesar da queixa, Gil aparenta estar bem, mesmo com a liberdade cerceada. “Não lembro de abatimento. Falávamos muito sobre música. O tempo todo”, afirma Barenbein. A impressão mostra que Gil, ao contrário de Caetano, encarou a prisão de maneira mais leve.

O músico Gilberto Gil durante apresentação junto de orquestra em agosto de 1968, quatro meses antes de ser preso Foto: Acervo Estadão

Barenbein, no entanto, ainda em Salvador, levou um susto. Foi abordado por policiais do Exército na entrada do hotel em que estava hospedado. Foi levado para depor. O delegado queria saber sobre “o evento”, segundo narrou Barenbein ao livro Manuel Barenbein - O Produtor da Tropicália, do jornalista Renato Vieira. “Não tem evento. Estamos apenas fazendo um disco do Gil e outro do Caetano”, lembra o produtor, sobre a resposta que deu aos agentes.

Gil, por fim, gravou voz e violão de todas as canções de seu disco de 1969, com exceção de Aquele Abraço, registrada posteriormente no Rio de Janeiro, às vésperas da saída para o exílio. Gravou também o violão em todas as faixas do disco de Caetano. Barenbein e Duprat levaram o material para o Rio e para São Paulo a fim de que músicos como Lanny Gordin, Wilson das Neves e Chiquinho de Moraes colocassem os demais instrumentos. O Beat Boys, por algum motivo, ficou de fora do disco de Gil.

Tony Osanah tem uma versão para a decisão. “Nós também éramos muito visados. Podíamos comprometer Gil e Caetano. Tomávamos cuidado por eles”, diz.

Em 1969, Gilberto Gil sabia bem que o correio andava “arisco”. Entre o período pós-prisão e até o exílio em Londres, ele e o amigo Caetano Veloso estiveram na Bahia em prisão domiciliar. Para os mandatários do País daquela época, os dois compositores eram considerados “subversivos”.

Cérebros e principais caras do Tropicalismo, Gil e Caetano estavam proibidos de ser apresentar ou dar qualquer declaração pública sem ordem expressa do governo militar. Também tinham que se apresentar todos os dias às autoridades para provarem que não haviam saído da Bahia. No entanto, calada a voz, restava a cuca – para ainda ficar em Chico Buarque.

Gilberto Gil na gravadora Philips em 23/7/1969, às vésperas de partir para o exílio em Londres Foto: Acervo Estadão

Em uma visita do músico argentino Tony Osanah, Gil, em vez de escrever para os demais amigos do grupo Beat Boys, do qual Osanah era o guitarrista na época, resolveu gravar uma fita. São sensacionais 30 minutos e 46 segundos [ouça trechos ao longo do texto] que permaneceram inéditos por 55 anos e aos quais a reportagem do Estadão teve acesso. “Assim a gente mata a saudade melhor”, diz Gil, logo no início da gravação.

Um registro histórico. Um documento sobre um período sombrio nas artes brasileiras e um testamento da genialidade de Gil. “Essa música eu fiz três dias atrás”, diz ele, depois de cantar Volks Volkswagen Blues, acompanhando-se no seu violão.

Gil também mostra Futurível. “Uma palavra formada de futuro possível. Eu fiz quando estava na prisão. A respeito do desenvolvimento científico. A possibilidade de transformação do homem, do ser humano, das condições de vida; do planeta em geral. Foi na época que eu estava preso e lançaram a Apollo 8 [na verdade, o voo espacial foi lançado dias antes da prisão de Gil].

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Em outro momento da gravação, Gil apresenta Alfômega, composição de sua autoria que ele acabara de fazer para entregar a Caetano para o amigo gravar no disco que lançaria naquele ano.

“Este é o único registro de Gil cantando Alfômega. Não existe outro conhecido”, atesta o produtor e pesquisador musical Marcelo Fróes, um especialista na obra de Gil, que já descobriu outros materiais inéditos do compositor.

Na gravação, Gil fala sobre o que o inspirou a fazer a letra. “É um termo que tem significação dentro de umas coisas que estou estudando sobre parapsicologia, o problema da morte, da fé...Uma série de coisas. Os meus babados atuais”, diz. São temas que o acompanhariam até os dias de hoje.

Por fim, Gil canta Cérebro Eletrônico. “Uma musiquinha que fiz na prisão. Uma musiquinha engraçada”, diz ele. A versão tem pouco mais de 10 minutos, com uma espetacular performance de Gil, diferente de todas já conhecidas.

Até aquele momento, essas canções eram inéditas. Seriam lançadas no disco que Gil gravaria dias depois.

Uma cópia digital da fita, muito bem preservada ao longo dos anos, foi mantida pelo músico Régis Moreira, pianista dos primeiros anos da bossa nova em São Paulo e acompanhante do cantor e compositor Erasmo Carlos no conjunto Os Tremendões. Recentemente, Moreira mostrou a gravação a Ramon Duccini, apresentador do podcast Disco Voador. A história será contada por ele e Osanah nas edições que irão ao ar nos dias 6 e 7 de maio, respectivamente.

Duccini celebra a descoberta da gravação. “É uma peça importante na história do momento entre a prisão e a ida deles para Londres. Até agora, o registro que tínhamos era o disco Barra 69 [de Gil e Caetano]”, diz.

Ao Estadão, Moreira, atualmente com 77 anos, contou que ele e os amigos se juntavam ao redor de Gil na sauna Danúbio, em São Paulo, para ouvir as longas preleções que o compositor fazia sobre diversos assuntos. Eram os tempos dos musicais da TV Record.

Diante do isolamento involuntário de Gil na Bahia, eles decidiram mandar uma representante para saber de notícias do amigo. Segundo Moreira, a decisão de quem iria até Gil foi por sorteio. Tony ganhou a chance. Mais do que uma escolha, a opção pela viagem era uma preocupação contra a interceptação de correspondência por agentes do governo.

“Fizemos uma vaquinha para ele viajar. Ninguém tinha dinheiro”, conta Moreira, que há 25 anos vive em Sarasota, na Flórida. “Quando Gil mandou a gravação, eu fiz uma cópia para cada amigo que contribuiu para a viagem”, diz.

Duccini relata que Osanah chegou a Salvador pegando carona e percorrendo alguns trechos a pé. A jornada demorou cerca de uma semana. Na volta a São Paulo, a mesma peregrinação. “Foi um milagre essa fita ter resistido”, diz.

Há certa divergência se a fita cassete original existe ou não até os dias de hoje. Duccini diz que Osanah, que depois de sair do Brasil morou na Espanha e na África e atualmente é professor de música na cidade de Fulda, no sul da Alemanha, lhe mostrou a fita. Moreira dá outra versão: a de que ele, depois de muitos anos, mandou uma gravação em CD para Osanah, que não tinha mais a gravação.

Foi um período muito difícil. Muita insegurança. Havia olheiros por toda a parte

Tony Osanah

Ao Estadão, Osanah confirma ter a fita. “É um assunto muito pessoal”, diz o músico, ao interromper uma apresentação para conversar com a reportagem. “Foi um período muito difícil. Muita insegurança. Havia olheiros por toda a parte”, diz o músico de 77 anos, que há 36 vive na Alemanha.

Na Bahia, Osanah, além de Gil e Caetano, se encontrou com o cineasta Rogério Sganzerla, o ilustrador Rogério Duarte, o poeta Torquato Neto e o roteirista Paulo Gil . “Todos ícones da cultura. Se fosse na época do Castro Alves, certamente ele também estaria ali”, diz Osanah. “Nos encontrávamos para tomar um vinho, uma cerveja, viajar nos pensamentos. Era necessário, pois tudo estava muito limitado.”

Osanah diz ainda ter conhecido Dona Canô, mãe de Caetano, que preparou um vatapá. O músico ficou pouco mais de uma semana em Salvador.

Moreira conta à reportagem que chegou a comentar com Gil sobre a gravação em 1974, quando morou em Salvador e se encontrava regularmente com o compositor na Praia de Itapuã. “Na época ele se lembrava. Hoje, não sei. Não tenho mais acesso ao Gil”, diz. O Estadão entrou em contato com a assessoria do compositor, mas não obteve uma resposta de Gil.

A preocupação de Gil com os amigos e a gravação de um novo disco

Em foto de 1968, Gilberto Gil chega ao apartamento de Caetano Veloso, na Avenida São Luiz, região central de São Paulo Foto: Acervo Estadão

Nos primeiros instantes da fita entregue a Tony Osanah, Gil, após cantarolar trecho da canção Questão de Ordem, gravada no ano anterior com participação do Beat Boys, saúda os companheiros que estavam em São Paulo – o centro da música popular brasileira naquele momento - de onde Gil fora levado de camburão de seu apartamento em 27 de dezembro de 1968 para depois ser transferido para o Rio de Janeiro, cidade na qual ficou preso até fevereiro do mês seguinte junto com Caetano.

“Que que há pessoal, como é que vai? Tudo bom? Alô, Willy (Verdaguer). Alô, Marcelo (Frias). Alô, Cacho (Valdez) [demais músicos do Beat Boys]. O que que há? Como é que vão vocês? Tudo legal? Estou aqui com o Tony (Osanah). O Tony veio me ver aqui na Bahia. Que é bacana! Chegou aqui de surpresa. Domingo. Foi legal! Fiquei muito contente!”, começa Gil.

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" (o Tony) Me contou notícias de vocês. Disse que a turma está toda junta de novo. Todo mundo vivo, dormindo, comendo, vivendo e tocando. Bacana! Legal!”, segue Gil, imprimindo as preocupações daqueles tempos de repressão.

Nessa época, Gil diz que achava que ficaria na Bahia. “Vocês sabem dos problemas todos. Tony conta aí tudo para vocês a situação. Tenho a impressão de que vou ficando aqui pela Bahia. Agora já arrumei um barraquinho e tal. Não sei. Talvez quando me liberarem eu vá até Londres ou Nova York. Mas acho que volto logo”, diz o compositor.

Talvez quando me liberarem eu vá até Londres ou Nova York. Mas acho que volto logo

Gilberto Gil

O mês da gravação da fita é incerto. Tony Osanah diz ao Estadão que era tempo de outono. O produtor Manoel Barenbein, que foi a Salvador juntamente com o maestro Rogério Duprat e o técnico de som Ary Carvalhaes para produzir os discos de Gil e Caetano que seriam lançados naquele ano, acha, pelos dias de chuva - que Gil também cita na gravação -, que tenha sido entre os meses de maio e junho. Em julho de 1969, os militares convidariam os compositores a se retirarem do País. Gil e Caetano foram para Londres. Eles só voltariam em janeiro de 1972.

Na gravação que resistiu ao tempo, Gil menciona o disco encomendado pelos diretores da gravadora Philips. Cita ainda a dificuldade de encontrar músicos, instrumentos e equipamentos de qualidade. “Eu tenho um guitarrista bom aqui, o Pepeu [Gomes]. O Tony o ouviu tocar. É o único músico bom, razoável, ele é muito bom mesmo!”.

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Gil narra que a solução encontrada seria gravar tudo em voz e violão. Posteriormente, Barenbein e Duprat levariam o registro para São Paulo para que os músicos de lá colocassem os outros instrumentos musicais.

Barenbein relata ao Estadão aqueles dias na Bahia. “O conjunto do Pepeu, chamado Leif’s, iria participar do disco. Porém, dias antes, eles foram a um programa de TV local e cantaram uma música chamada Menina dos Peitinhos Duros. Com medo da censura, o produtor de Pepeu fugiu com os instrumentos e equipamentos”, lembra o produtor. A música, que hoje soa misógina, feria a moral e os bons costumes pregados pela censura federal do regime militar.

Uma nova tentativa foi feita, segundo Barenbein, com instrumentos que ele foi buscar em um sítio nos arredores de Salvador. “Eram péssimos. Não dava para gravar”, conta. Quem o ajudou na missão foi Tião Motorista, compositor baiano gravado por nomes como Maria Bethânia, Jair Rodrigues, Wilson Simonal e Elizeth Cardoso.

“A bateria era péssima”, afirma Gil em um momento da fita. “Amanhã vou começar a gravar tudo de violão. É uma pena! Vocês [músicos do Beat Boys] fazem uma falta danada! Em todos os sentidos. Tanto na música quanto nos papos, a amizade”, lamenta-se Gil.

Apesar da queixa, Gil aparenta estar bem, mesmo com a liberdade cerceada. “Não lembro de abatimento. Falávamos muito sobre música. O tempo todo”, afirma Barenbein. A impressão mostra que Gil, ao contrário de Caetano, encarou a prisão de maneira mais leve.

O músico Gilberto Gil durante apresentação junto de orquestra em agosto de 1968, quatro meses antes de ser preso Foto: Acervo Estadão

Barenbein, no entanto, ainda em Salvador, levou um susto. Foi abordado por policiais do Exército na entrada do hotel em que estava hospedado. Foi levado para depor. O delegado queria saber sobre “o evento”, segundo narrou Barenbein ao livro Manuel Barenbein - O Produtor da Tropicália, do jornalista Renato Vieira. “Não tem evento. Estamos apenas fazendo um disco do Gil e outro do Caetano”, lembra o produtor, sobre a resposta que deu aos agentes.

Gil, por fim, gravou voz e violão de todas as canções de seu disco de 1969, com exceção de Aquele Abraço, registrada posteriormente no Rio de Janeiro, às vésperas da saída para o exílio. Gravou também o violão em todas as faixas do disco de Caetano. Barenbein e Duprat levaram o material para o Rio e para São Paulo a fim de que músicos como Lanny Gordin, Wilson das Neves e Chiquinho de Moraes colocassem os demais instrumentos. O Beat Boys, por algum motivo, ficou de fora do disco de Gil.

Tony Osanah tem uma versão para a decisão. “Nós também éramos muito visados. Podíamos comprometer Gil e Caetano. Tomávamos cuidado por eles”, diz.

Em 1969, Gilberto Gil sabia bem que o correio andava “arisco”. Entre o período pós-prisão e até o exílio em Londres, ele e o amigo Caetano Veloso estiveram na Bahia em prisão domiciliar. Para os mandatários do País daquela época, os dois compositores eram considerados “subversivos”.

Cérebros e principais caras do Tropicalismo, Gil e Caetano estavam proibidos de ser apresentar ou dar qualquer declaração pública sem ordem expressa do governo militar. Também tinham que se apresentar todos os dias às autoridades para provarem que não haviam saído da Bahia. No entanto, calada a voz, restava a cuca – para ainda ficar em Chico Buarque.

Gilberto Gil na gravadora Philips em 23/7/1969, às vésperas de partir para o exílio em Londres Foto: Acervo Estadão

Em uma visita do músico argentino Tony Osanah, Gil, em vez de escrever para os demais amigos do grupo Beat Boys, do qual Osanah era o guitarrista na época, resolveu gravar uma fita. São sensacionais 30 minutos e 46 segundos [ouça trechos ao longo do texto] que permaneceram inéditos por 55 anos e aos quais a reportagem do Estadão teve acesso. “Assim a gente mata a saudade melhor”, diz Gil, logo no início da gravação.

Um registro histórico. Um documento sobre um período sombrio nas artes brasileiras e um testamento da genialidade de Gil. “Essa música eu fiz três dias atrás”, diz ele, depois de cantar Volks Volkswagen Blues, acompanhando-se no seu violão.

Gil também mostra Futurível. “Uma palavra formada de futuro possível. Eu fiz quando estava na prisão. A respeito do desenvolvimento científico. A possibilidade de transformação do homem, do ser humano, das condições de vida; do planeta em geral. Foi na época que eu estava preso e lançaram a Apollo 8 [na verdade, o voo espacial foi lançado dias antes da prisão de Gil].

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Em outro momento da gravação, Gil apresenta Alfômega, composição de sua autoria que ele acabara de fazer para entregar a Caetano para o amigo gravar no disco que lançaria naquele ano.

“Este é o único registro de Gil cantando Alfômega. Não existe outro conhecido”, atesta o produtor e pesquisador musical Marcelo Fróes, um especialista na obra de Gil, que já descobriu outros materiais inéditos do compositor.

Na gravação, Gil fala sobre o que o inspirou a fazer a letra. “É um termo que tem significação dentro de umas coisas que estou estudando sobre parapsicologia, o problema da morte, da fé...Uma série de coisas. Os meus babados atuais”, diz. São temas que o acompanhariam até os dias de hoje.

Por fim, Gil canta Cérebro Eletrônico. “Uma musiquinha que fiz na prisão. Uma musiquinha engraçada”, diz ele. A versão tem pouco mais de 10 minutos, com uma espetacular performance de Gil, diferente de todas já conhecidas.

Até aquele momento, essas canções eram inéditas. Seriam lançadas no disco que Gil gravaria dias depois.

Uma cópia digital da fita, muito bem preservada ao longo dos anos, foi mantida pelo músico Régis Moreira, pianista dos primeiros anos da bossa nova em São Paulo e acompanhante do cantor e compositor Erasmo Carlos no conjunto Os Tremendões. Recentemente, Moreira mostrou a gravação a Ramon Duccini, apresentador do podcast Disco Voador. A história será contada por ele e Osanah nas edições que irão ao ar nos dias 6 e 7 de maio, respectivamente.

Duccini celebra a descoberta da gravação. “É uma peça importante na história do momento entre a prisão e a ida deles para Londres. Até agora, o registro que tínhamos era o disco Barra 69 [de Gil e Caetano]”, diz.

Ao Estadão, Moreira, atualmente com 77 anos, contou que ele e os amigos se juntavam ao redor de Gil na sauna Danúbio, em São Paulo, para ouvir as longas preleções que o compositor fazia sobre diversos assuntos. Eram os tempos dos musicais da TV Record.

Diante do isolamento involuntário de Gil na Bahia, eles decidiram mandar uma representante para saber de notícias do amigo. Segundo Moreira, a decisão de quem iria até Gil foi por sorteio. Tony ganhou a chance. Mais do que uma escolha, a opção pela viagem era uma preocupação contra a interceptação de correspondência por agentes do governo.

“Fizemos uma vaquinha para ele viajar. Ninguém tinha dinheiro”, conta Moreira, que há 25 anos vive em Sarasota, na Flórida. “Quando Gil mandou a gravação, eu fiz uma cópia para cada amigo que contribuiu para a viagem”, diz.

Duccini relata que Osanah chegou a Salvador pegando carona e percorrendo alguns trechos a pé. A jornada demorou cerca de uma semana. Na volta a São Paulo, a mesma peregrinação. “Foi um milagre essa fita ter resistido”, diz.

Há certa divergência se a fita cassete original existe ou não até os dias de hoje. Duccini diz que Osanah, que depois de sair do Brasil morou na Espanha e na África e atualmente é professor de música na cidade de Fulda, no sul da Alemanha, lhe mostrou a fita. Moreira dá outra versão: a de que ele, depois de muitos anos, mandou uma gravação em CD para Osanah, que não tinha mais a gravação.

Foi um período muito difícil. Muita insegurança. Havia olheiros por toda a parte

Tony Osanah

Ao Estadão, Osanah confirma ter a fita. “É um assunto muito pessoal”, diz o músico, ao interromper uma apresentação para conversar com a reportagem. “Foi um período muito difícil. Muita insegurança. Havia olheiros por toda a parte”, diz o músico de 77 anos, que há 36 vive na Alemanha.

Na Bahia, Osanah, além de Gil e Caetano, se encontrou com o cineasta Rogério Sganzerla, o ilustrador Rogério Duarte, o poeta Torquato Neto e o roteirista Paulo Gil . “Todos ícones da cultura. Se fosse na época do Castro Alves, certamente ele também estaria ali”, diz Osanah. “Nos encontrávamos para tomar um vinho, uma cerveja, viajar nos pensamentos. Era necessário, pois tudo estava muito limitado.”

Osanah diz ainda ter conhecido Dona Canô, mãe de Caetano, que preparou um vatapá. O músico ficou pouco mais de uma semana em Salvador.

Moreira conta à reportagem que chegou a comentar com Gil sobre a gravação em 1974, quando morou em Salvador e se encontrava regularmente com o compositor na Praia de Itapuã. “Na época ele se lembrava. Hoje, não sei. Não tenho mais acesso ao Gil”, diz. O Estadão entrou em contato com a assessoria do compositor, mas não obteve uma resposta de Gil.

A preocupação de Gil com os amigos e a gravação de um novo disco

Em foto de 1968, Gilberto Gil chega ao apartamento de Caetano Veloso, na Avenida São Luiz, região central de São Paulo Foto: Acervo Estadão

Nos primeiros instantes da fita entregue a Tony Osanah, Gil, após cantarolar trecho da canção Questão de Ordem, gravada no ano anterior com participação do Beat Boys, saúda os companheiros que estavam em São Paulo – o centro da música popular brasileira naquele momento - de onde Gil fora levado de camburão de seu apartamento em 27 de dezembro de 1968 para depois ser transferido para o Rio de Janeiro, cidade na qual ficou preso até fevereiro do mês seguinte junto com Caetano.

“Que que há pessoal, como é que vai? Tudo bom? Alô, Willy (Verdaguer). Alô, Marcelo (Frias). Alô, Cacho (Valdez) [demais músicos do Beat Boys]. O que que há? Como é que vão vocês? Tudo legal? Estou aqui com o Tony (Osanah). O Tony veio me ver aqui na Bahia. Que é bacana! Chegou aqui de surpresa. Domingo. Foi legal! Fiquei muito contente!”, começa Gil.

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" (o Tony) Me contou notícias de vocês. Disse que a turma está toda junta de novo. Todo mundo vivo, dormindo, comendo, vivendo e tocando. Bacana! Legal!”, segue Gil, imprimindo as preocupações daqueles tempos de repressão.

Nessa época, Gil diz que achava que ficaria na Bahia. “Vocês sabem dos problemas todos. Tony conta aí tudo para vocês a situação. Tenho a impressão de que vou ficando aqui pela Bahia. Agora já arrumei um barraquinho e tal. Não sei. Talvez quando me liberarem eu vá até Londres ou Nova York. Mas acho que volto logo”, diz o compositor.

Talvez quando me liberarem eu vá até Londres ou Nova York. Mas acho que volto logo

Gilberto Gil

O mês da gravação da fita é incerto. Tony Osanah diz ao Estadão que era tempo de outono. O produtor Manoel Barenbein, que foi a Salvador juntamente com o maestro Rogério Duprat e o técnico de som Ary Carvalhaes para produzir os discos de Gil e Caetano que seriam lançados naquele ano, acha, pelos dias de chuva - que Gil também cita na gravação -, que tenha sido entre os meses de maio e junho. Em julho de 1969, os militares convidariam os compositores a se retirarem do País. Gil e Caetano foram para Londres. Eles só voltariam em janeiro de 1972.

Na gravação que resistiu ao tempo, Gil menciona o disco encomendado pelos diretores da gravadora Philips. Cita ainda a dificuldade de encontrar músicos, instrumentos e equipamentos de qualidade. “Eu tenho um guitarrista bom aqui, o Pepeu [Gomes]. O Tony o ouviu tocar. É o único músico bom, razoável, ele é muito bom mesmo!”.

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Gil narra que a solução encontrada seria gravar tudo em voz e violão. Posteriormente, Barenbein e Duprat levariam o registro para São Paulo para que os músicos de lá colocassem os outros instrumentos musicais.

Barenbein relata ao Estadão aqueles dias na Bahia. “O conjunto do Pepeu, chamado Leif’s, iria participar do disco. Porém, dias antes, eles foram a um programa de TV local e cantaram uma música chamada Menina dos Peitinhos Duros. Com medo da censura, o produtor de Pepeu fugiu com os instrumentos e equipamentos”, lembra o produtor. A música, que hoje soa misógina, feria a moral e os bons costumes pregados pela censura federal do regime militar.

Uma nova tentativa foi feita, segundo Barenbein, com instrumentos que ele foi buscar em um sítio nos arredores de Salvador. “Eram péssimos. Não dava para gravar”, conta. Quem o ajudou na missão foi Tião Motorista, compositor baiano gravado por nomes como Maria Bethânia, Jair Rodrigues, Wilson Simonal e Elizeth Cardoso.

“A bateria era péssima”, afirma Gil em um momento da fita. “Amanhã vou começar a gravar tudo de violão. É uma pena! Vocês [músicos do Beat Boys] fazem uma falta danada! Em todos os sentidos. Tanto na música quanto nos papos, a amizade”, lamenta-se Gil.

Apesar da queixa, Gil aparenta estar bem, mesmo com a liberdade cerceada. “Não lembro de abatimento. Falávamos muito sobre música. O tempo todo”, afirma Barenbein. A impressão mostra que Gil, ao contrário de Caetano, encarou a prisão de maneira mais leve.

O músico Gilberto Gil durante apresentação junto de orquestra em agosto de 1968, quatro meses antes de ser preso Foto: Acervo Estadão

Barenbein, no entanto, ainda em Salvador, levou um susto. Foi abordado por policiais do Exército na entrada do hotel em que estava hospedado. Foi levado para depor. O delegado queria saber sobre “o evento”, segundo narrou Barenbein ao livro Manuel Barenbein - O Produtor da Tropicália, do jornalista Renato Vieira. “Não tem evento. Estamos apenas fazendo um disco do Gil e outro do Caetano”, lembra o produtor, sobre a resposta que deu aos agentes.

Gil, por fim, gravou voz e violão de todas as canções de seu disco de 1969, com exceção de Aquele Abraço, registrada posteriormente no Rio de Janeiro, às vésperas da saída para o exílio. Gravou também o violão em todas as faixas do disco de Caetano. Barenbein e Duprat levaram o material para o Rio e para São Paulo a fim de que músicos como Lanny Gordin, Wilson das Neves e Chiquinho de Moraes colocassem os demais instrumentos. O Beat Boys, por algum motivo, ficou de fora do disco de Gil.

Tony Osanah tem uma versão para a decisão. “Nós também éramos muito visados. Podíamos comprometer Gil e Caetano. Tomávamos cuidado por eles”, diz.

Em 1969, Gilberto Gil sabia bem que o correio andava “arisco”. Entre o período pós-prisão e até o exílio em Londres, ele e o amigo Caetano Veloso estiveram na Bahia em prisão domiciliar. Para os mandatários do País daquela época, os dois compositores eram considerados “subversivos”.

Cérebros e principais caras do Tropicalismo, Gil e Caetano estavam proibidos de ser apresentar ou dar qualquer declaração pública sem ordem expressa do governo militar. Também tinham que se apresentar todos os dias às autoridades para provarem que não haviam saído da Bahia. No entanto, calada a voz, restava a cuca – para ainda ficar em Chico Buarque.

Gilberto Gil na gravadora Philips em 23/7/1969, às vésperas de partir para o exílio em Londres Foto: Acervo Estadão

Em uma visita do músico argentino Tony Osanah, Gil, em vez de escrever para os demais amigos do grupo Beat Boys, do qual Osanah era o guitarrista na época, resolveu gravar uma fita. São sensacionais 30 minutos e 46 segundos [ouça trechos ao longo do texto] que permaneceram inéditos por 55 anos e aos quais a reportagem do Estadão teve acesso. “Assim a gente mata a saudade melhor”, diz Gil, logo no início da gravação.

Um registro histórico. Um documento sobre um período sombrio nas artes brasileiras e um testamento da genialidade de Gil. “Essa música eu fiz três dias atrás”, diz ele, depois de cantar Volks Volkswagen Blues, acompanhando-se no seu violão.

Gil também mostra Futurível. “Uma palavra formada de futuro possível. Eu fiz quando estava na prisão. A respeito do desenvolvimento científico. A possibilidade de transformação do homem, do ser humano, das condições de vida; do planeta em geral. Foi na época que eu estava preso e lançaram a Apollo 8 [na verdade, o voo espacial foi lançado dias antes da prisão de Gil].

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Em outro momento da gravação, Gil apresenta Alfômega, composição de sua autoria que ele acabara de fazer para entregar a Caetano para o amigo gravar no disco que lançaria naquele ano.

“Este é o único registro de Gil cantando Alfômega. Não existe outro conhecido”, atesta o produtor e pesquisador musical Marcelo Fróes, um especialista na obra de Gil, que já descobriu outros materiais inéditos do compositor.

Na gravação, Gil fala sobre o que o inspirou a fazer a letra. “É um termo que tem significação dentro de umas coisas que estou estudando sobre parapsicologia, o problema da morte, da fé...Uma série de coisas. Os meus babados atuais”, diz. São temas que o acompanhariam até os dias de hoje.

Por fim, Gil canta Cérebro Eletrônico. “Uma musiquinha que fiz na prisão. Uma musiquinha engraçada”, diz ele. A versão tem pouco mais de 10 minutos, com uma espetacular performance de Gil, diferente de todas já conhecidas.

Até aquele momento, essas canções eram inéditas. Seriam lançadas no disco que Gil gravaria dias depois.

Uma cópia digital da fita, muito bem preservada ao longo dos anos, foi mantida pelo músico Régis Moreira, pianista dos primeiros anos da bossa nova em São Paulo e acompanhante do cantor e compositor Erasmo Carlos no conjunto Os Tremendões. Recentemente, Moreira mostrou a gravação a Ramon Duccini, apresentador do podcast Disco Voador. A história será contada por ele e Osanah nas edições que irão ao ar nos dias 6 e 7 de maio, respectivamente.

Duccini celebra a descoberta da gravação. “É uma peça importante na história do momento entre a prisão e a ida deles para Londres. Até agora, o registro que tínhamos era o disco Barra 69 [de Gil e Caetano]”, diz.

Ao Estadão, Moreira, atualmente com 77 anos, contou que ele e os amigos se juntavam ao redor de Gil na sauna Danúbio, em São Paulo, para ouvir as longas preleções que o compositor fazia sobre diversos assuntos. Eram os tempos dos musicais da TV Record.

Diante do isolamento involuntário de Gil na Bahia, eles decidiram mandar uma representante para saber de notícias do amigo. Segundo Moreira, a decisão de quem iria até Gil foi por sorteio. Tony ganhou a chance. Mais do que uma escolha, a opção pela viagem era uma preocupação contra a interceptação de correspondência por agentes do governo.

“Fizemos uma vaquinha para ele viajar. Ninguém tinha dinheiro”, conta Moreira, que há 25 anos vive em Sarasota, na Flórida. “Quando Gil mandou a gravação, eu fiz uma cópia para cada amigo que contribuiu para a viagem”, diz.

Duccini relata que Osanah chegou a Salvador pegando carona e percorrendo alguns trechos a pé. A jornada demorou cerca de uma semana. Na volta a São Paulo, a mesma peregrinação. “Foi um milagre essa fita ter resistido”, diz.

Há certa divergência se a fita cassete original existe ou não até os dias de hoje. Duccini diz que Osanah, que depois de sair do Brasil morou na Espanha e na África e atualmente é professor de música na cidade de Fulda, no sul da Alemanha, lhe mostrou a fita. Moreira dá outra versão: a de que ele, depois de muitos anos, mandou uma gravação em CD para Osanah, que não tinha mais a gravação.

Foi um período muito difícil. Muita insegurança. Havia olheiros por toda a parte

Tony Osanah

Ao Estadão, Osanah confirma ter a fita. “É um assunto muito pessoal”, diz o músico, ao interromper uma apresentação para conversar com a reportagem. “Foi um período muito difícil. Muita insegurança. Havia olheiros por toda a parte”, diz o músico de 77 anos, que há 36 vive na Alemanha.

Na Bahia, Osanah, além de Gil e Caetano, se encontrou com o cineasta Rogério Sganzerla, o ilustrador Rogério Duarte, o poeta Torquato Neto e o roteirista Paulo Gil . “Todos ícones da cultura. Se fosse na época do Castro Alves, certamente ele também estaria ali”, diz Osanah. “Nos encontrávamos para tomar um vinho, uma cerveja, viajar nos pensamentos. Era necessário, pois tudo estava muito limitado.”

Osanah diz ainda ter conhecido Dona Canô, mãe de Caetano, que preparou um vatapá. O músico ficou pouco mais de uma semana em Salvador.

Moreira conta à reportagem que chegou a comentar com Gil sobre a gravação em 1974, quando morou em Salvador e se encontrava regularmente com o compositor na Praia de Itapuã. “Na época ele se lembrava. Hoje, não sei. Não tenho mais acesso ao Gil”, diz. O Estadão entrou em contato com a assessoria do compositor, mas não obteve uma resposta de Gil.

A preocupação de Gil com os amigos e a gravação de um novo disco

Em foto de 1968, Gilberto Gil chega ao apartamento de Caetano Veloso, na Avenida São Luiz, região central de São Paulo Foto: Acervo Estadão

Nos primeiros instantes da fita entregue a Tony Osanah, Gil, após cantarolar trecho da canção Questão de Ordem, gravada no ano anterior com participação do Beat Boys, saúda os companheiros que estavam em São Paulo – o centro da música popular brasileira naquele momento - de onde Gil fora levado de camburão de seu apartamento em 27 de dezembro de 1968 para depois ser transferido para o Rio de Janeiro, cidade na qual ficou preso até fevereiro do mês seguinte junto com Caetano.

“Que que há pessoal, como é que vai? Tudo bom? Alô, Willy (Verdaguer). Alô, Marcelo (Frias). Alô, Cacho (Valdez) [demais músicos do Beat Boys]. O que que há? Como é que vão vocês? Tudo legal? Estou aqui com o Tony (Osanah). O Tony veio me ver aqui na Bahia. Que é bacana! Chegou aqui de surpresa. Domingo. Foi legal! Fiquei muito contente!”, começa Gil.

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" (o Tony) Me contou notícias de vocês. Disse que a turma está toda junta de novo. Todo mundo vivo, dormindo, comendo, vivendo e tocando. Bacana! Legal!”, segue Gil, imprimindo as preocupações daqueles tempos de repressão.

Nessa época, Gil diz que achava que ficaria na Bahia. “Vocês sabem dos problemas todos. Tony conta aí tudo para vocês a situação. Tenho a impressão de que vou ficando aqui pela Bahia. Agora já arrumei um barraquinho e tal. Não sei. Talvez quando me liberarem eu vá até Londres ou Nova York. Mas acho que volto logo”, diz o compositor.

Talvez quando me liberarem eu vá até Londres ou Nova York. Mas acho que volto logo

Gilberto Gil

O mês da gravação da fita é incerto. Tony Osanah diz ao Estadão que era tempo de outono. O produtor Manoel Barenbein, que foi a Salvador juntamente com o maestro Rogério Duprat e o técnico de som Ary Carvalhaes para produzir os discos de Gil e Caetano que seriam lançados naquele ano, acha, pelos dias de chuva - que Gil também cita na gravação -, que tenha sido entre os meses de maio e junho. Em julho de 1969, os militares convidariam os compositores a se retirarem do País. Gil e Caetano foram para Londres. Eles só voltariam em janeiro de 1972.

Na gravação que resistiu ao tempo, Gil menciona o disco encomendado pelos diretores da gravadora Philips. Cita ainda a dificuldade de encontrar músicos, instrumentos e equipamentos de qualidade. “Eu tenho um guitarrista bom aqui, o Pepeu [Gomes]. O Tony o ouviu tocar. É o único músico bom, razoável, ele é muito bom mesmo!”.

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Gil narra que a solução encontrada seria gravar tudo em voz e violão. Posteriormente, Barenbein e Duprat levariam o registro para São Paulo para que os músicos de lá colocassem os outros instrumentos musicais.

Barenbein relata ao Estadão aqueles dias na Bahia. “O conjunto do Pepeu, chamado Leif’s, iria participar do disco. Porém, dias antes, eles foram a um programa de TV local e cantaram uma música chamada Menina dos Peitinhos Duros. Com medo da censura, o produtor de Pepeu fugiu com os instrumentos e equipamentos”, lembra o produtor. A música, que hoje soa misógina, feria a moral e os bons costumes pregados pela censura federal do regime militar.

Uma nova tentativa foi feita, segundo Barenbein, com instrumentos que ele foi buscar em um sítio nos arredores de Salvador. “Eram péssimos. Não dava para gravar”, conta. Quem o ajudou na missão foi Tião Motorista, compositor baiano gravado por nomes como Maria Bethânia, Jair Rodrigues, Wilson Simonal e Elizeth Cardoso.

“A bateria era péssima”, afirma Gil em um momento da fita. “Amanhã vou começar a gravar tudo de violão. É uma pena! Vocês [músicos do Beat Boys] fazem uma falta danada! Em todos os sentidos. Tanto na música quanto nos papos, a amizade”, lamenta-se Gil.

Apesar da queixa, Gil aparenta estar bem, mesmo com a liberdade cerceada. “Não lembro de abatimento. Falávamos muito sobre música. O tempo todo”, afirma Barenbein. A impressão mostra que Gil, ao contrário de Caetano, encarou a prisão de maneira mais leve.

O músico Gilberto Gil durante apresentação junto de orquestra em agosto de 1968, quatro meses antes de ser preso Foto: Acervo Estadão

Barenbein, no entanto, ainda em Salvador, levou um susto. Foi abordado por policiais do Exército na entrada do hotel em que estava hospedado. Foi levado para depor. O delegado queria saber sobre “o evento”, segundo narrou Barenbein ao livro Manuel Barenbein - O Produtor da Tropicália, do jornalista Renato Vieira. “Não tem evento. Estamos apenas fazendo um disco do Gil e outro do Caetano”, lembra o produtor, sobre a resposta que deu aos agentes.

Gil, por fim, gravou voz e violão de todas as canções de seu disco de 1969, com exceção de Aquele Abraço, registrada posteriormente no Rio de Janeiro, às vésperas da saída para o exílio. Gravou também o violão em todas as faixas do disco de Caetano. Barenbein e Duprat levaram o material para o Rio e para São Paulo a fim de que músicos como Lanny Gordin, Wilson das Neves e Chiquinho de Moraes colocassem os demais instrumentos. O Beat Boys, por algum motivo, ficou de fora do disco de Gil.

Tony Osanah tem uma versão para a decisão. “Nós também éramos muito visados. Podíamos comprometer Gil e Caetano. Tomávamos cuidado por eles”, diz.

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