Florence Price: conheça história da compositora que está sendo redescoberta 70 anos após sua morte


Pianista Michelle Cann apresenta nesta sexta e no sábado o Concerto de Price no Teatro Municipal de SP. ‘Ela foi uma compositora fascinante, mas nunca recebeu oportunidades justas’, diz

Por João Luiz Sampaio
Atualização:

Em 1943, a compositora Florence Price resolveu escrever ao maestro Sergei Koussevitzky. Então diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, ele era a grande personalidade da vida musical nos Estados Unidos. E seu interesse pela obra de qualquer autor significava a garantia de abertura de novas portas.

“Meu caro dr. Koussevitzky. Para começar, devo dizer que tenho duas deficiências – de gênero e de raça. Sou uma mulher. E tenho algum sangue negro em minhas veias”, escreveu Price, que enviou junto ao maestro uma de suas partituras. E encerrou a carta pedindo: “Deixe-me tranquilizá-lo dizendo que não espero ou peço nenhuma concessão em sua avaliação da obra. Eu gostaria de ser julgada apenas pelo seu mérito.”

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Koussevitzky nunca respondeu a essa ou a outras tentativas de contato de Price. E por mais de seis décadas suas obras mantiveram-se distante dos palcos – passando apenas recentemente por um processo de resgate levado adiante por algumas orquestras americanas e músicos em busca de redescobrir vozes que ficaram perdidas no passado.

Florence Price Foto: G. Nelidoff

Peças de Price têm sido recuperadas em gravações por diversos artistas e grupos. Depois de gravar as sinfonias nº 1 e nº 3, e ganhar o Grammy 2022 com o álbum, a Orquestra de Filadélfia e o maestro Yannick Nézét-Séguin lançaram em maio os dois concertos para violino da compositora com solos de Randall Goosby.

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O Quarteto Catalyst colocou no mercado em 2022 o registro de suas principais obras de câmara, ao lado da pianista Michelle Cann, que lançou na semana passada uma seleção de peças para piano – ao todo, Price escreveu mais de duzentas partituras para o instrumento. Já seu Concerto para piano chegou às plataformas em maio em leitura da pianista Jeneba Kanneh-Mason e dos músicos da Chineke! Orchestra.

“Toda história merece ser ouvida, e histórias como a de Price foram barradas durante muito tempo”, diz Cann, que está no Brasil e na sexta, 16, e no sábado, 17, apresenta o Concerto de Price no Teatro Municipal de São Paulo (veja serviço completo abaixo).

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Ela foi uma compositora fascinante, teve uma história de vida marcante. Mas nunca recebeu da parte do meio musical oportunidades justas e é nossa missão como artistas fazer essa música ser ouvida.

Michelle Cann, pianista, sobre Florence Price

O caso de Florence Price está longe de ser único na história da música. Avanços têm sido lentos. Uma pesquisa da Fundação Donne, criada pela cantora lírica brasileira Gabriella di Laccio na Inglaterra, mostra que, das 20.400 obras apresentadas por 111 orquestras de 31 países em 2022, apenas 7,7% foram escritas por mulheres – e, entre essas peças, apenas 1,02% é de autoria de compositoras negras. Na lista de autores mais apresentados, a primeira mulher aparece na 50ª posição – justamente Florence Price.

Trajetória

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Price nasceu no dia 9 de abril de 1887 em Little Rock, cidade do estado de Arkansas, em uma comunidade na qual negros e brancos viviam de forma integrada. Seu pai era dentista – àquela altura, um dos apenas doze dentistas negros nos Estados Unidos. Sua mãe havia estudado piano e foi a primeira a dar aulas para a filha que, aos 16 anos, mudou-se para Boston, onde passou a estudar no New England Conservatory.

A tensão racial nos Estados Unidos aumentava rapidamente. As Leis Jim Crow, que oficializavam a segregação racial nos Estados Unidos, fizeram com que muitos negros se mudassem para estados do norte, onde começaram a ser vistos com preconceito cada vez maior.

Segundo Michael J. Cooper, biógrafo de Price, sua mãe alugou um apartamento fora do campus para a filha e sugeriu a ela que, por ter tom de pele mais claro, dissesse aos colegas que era natural do México (novos estudos sugerem que em sua ascendência, além de negros, havia também indígenas e espanhóis).

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Além das aulas de piano e órgão, ela passou a estudar na classe de composição de George Whitefield Chadwick, um dos poucos professores a aceitar mulheres e negros como alunos. Após se formar, em 1906, ela decidiu retornar a Little Rock.

Aos 23 anos, após a morte dos pais, aceitou um posto como professora da Clark Atlanta University, no estado da Georgia. Casou-se com o advogado Thomas Price e instalou-se mais uma vez em Arkansas até a família, com medo da violência provocada pela segregação – sua filha mais nova foi ameaçada de morte –, se mudar para Chicago, em 1927.

Na cidade, Price sofreu um drama particular, à medida em que o marido, com problemas financeiros intensificados pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929, passou a agredi-la. Os dois se separaram e a compositora passaria a viver mais tarde com o músico Pusey Dell Arnet.

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Em 1933, a Sinfônica de Chicago tocou sua Sinfonia nº 1, fazendo dela a primeira compositora negra a ter uma obra sinfônica apresentada no país. Seria normalmente o primeiro passo em direção a uma carreira consolidada. Mas o reconhecimento por completo não veio antes de sua morte, em junho de 1953.

Resgate contínuo

Suas primeiras obras, em especial peças para piano, estão muito ligadas à tentativa de recriar pela música clássica melodias e temas afro-americanos, muitas vezes a partir da releitura de spirituals. Sua Sinfonia nº 1, assim como a maior parte de sua produção para piano, é testemunho disso. Com o tempo, porém, sem abandonar totalmente essa inspiração, Price começou a se relacionar com as novas ideias composicionais que eram experimentadas na primeira metade do século 20.

“Sua música esteve sempre muito conectada à música da América negra, ao jazz, aos spirituals. E isso nunca a abandonou”, diz Michelle Cann. “Mas é notável como, com o passar dos anos, outros elementos vão se somando à sua criação. Primeiro, sinto uma influência da música do romantismo, de Brahms, de Rachmaninov. E, mais para frente, há o interesse por outras possibilidades, um flerte com a dissonância, com a música moderna”, completa.

Em 2008, foram encontrados em uma casa abandonada em uma cidade próxima de Chicago pacotes com composições até então desconhecidas de Florence Price, incluindo obras de grande magnitude, como dois concertos para violino e sua quarta sinfonia.

É bem possível que outras partituras também tenham se perdido – a sinfonia nº 2, por exemplo, ficou incompleta ou parte dela também pode ter extraviado com o tempo. Mas a música de Florence Price que foi preservada dá conta o suficiente de revelar uma compositora cujo caminho artístico é dos mais interessantes.

Serviço Florence Price

  • Orquestra Sinfônica Municipal - Michelle Cann - piano
  • Dias 16, 20h; dia 17, 17h.
  • Teatro Municipal de São Paulo
  • Pça. Ramos de Azevedo, s/nº
  • Ingressos: theatromunicipal.org.br
  • De R$ 12 a R$ 64

Em 1943, a compositora Florence Price resolveu escrever ao maestro Sergei Koussevitzky. Então diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, ele era a grande personalidade da vida musical nos Estados Unidos. E seu interesse pela obra de qualquer autor significava a garantia de abertura de novas portas.

“Meu caro dr. Koussevitzky. Para começar, devo dizer que tenho duas deficiências – de gênero e de raça. Sou uma mulher. E tenho algum sangue negro em minhas veias”, escreveu Price, que enviou junto ao maestro uma de suas partituras. E encerrou a carta pedindo: “Deixe-me tranquilizá-lo dizendo que não espero ou peço nenhuma concessão em sua avaliação da obra. Eu gostaria de ser julgada apenas pelo seu mérito.”

Koussevitzky nunca respondeu a essa ou a outras tentativas de contato de Price. E por mais de seis décadas suas obras mantiveram-se distante dos palcos – passando apenas recentemente por um processo de resgate levado adiante por algumas orquestras americanas e músicos em busca de redescobrir vozes que ficaram perdidas no passado.

Florence Price Foto: G. Nelidoff

Peças de Price têm sido recuperadas em gravações por diversos artistas e grupos. Depois de gravar as sinfonias nº 1 e nº 3, e ganhar o Grammy 2022 com o álbum, a Orquestra de Filadélfia e o maestro Yannick Nézét-Séguin lançaram em maio os dois concertos para violino da compositora com solos de Randall Goosby.

O Quarteto Catalyst colocou no mercado em 2022 o registro de suas principais obras de câmara, ao lado da pianista Michelle Cann, que lançou na semana passada uma seleção de peças para piano – ao todo, Price escreveu mais de duzentas partituras para o instrumento. Já seu Concerto para piano chegou às plataformas em maio em leitura da pianista Jeneba Kanneh-Mason e dos músicos da Chineke! Orchestra.

“Toda história merece ser ouvida, e histórias como a de Price foram barradas durante muito tempo”, diz Cann, que está no Brasil e na sexta, 16, e no sábado, 17, apresenta o Concerto de Price no Teatro Municipal de São Paulo (veja serviço completo abaixo).

Ela foi uma compositora fascinante, teve uma história de vida marcante. Mas nunca recebeu da parte do meio musical oportunidades justas e é nossa missão como artistas fazer essa música ser ouvida.

Michelle Cann, pianista, sobre Florence Price

O caso de Florence Price está longe de ser único na história da música. Avanços têm sido lentos. Uma pesquisa da Fundação Donne, criada pela cantora lírica brasileira Gabriella di Laccio na Inglaterra, mostra que, das 20.400 obras apresentadas por 111 orquestras de 31 países em 2022, apenas 7,7% foram escritas por mulheres – e, entre essas peças, apenas 1,02% é de autoria de compositoras negras. Na lista de autores mais apresentados, a primeira mulher aparece na 50ª posição – justamente Florence Price.

Trajetória

Price nasceu no dia 9 de abril de 1887 em Little Rock, cidade do estado de Arkansas, em uma comunidade na qual negros e brancos viviam de forma integrada. Seu pai era dentista – àquela altura, um dos apenas doze dentistas negros nos Estados Unidos. Sua mãe havia estudado piano e foi a primeira a dar aulas para a filha que, aos 16 anos, mudou-se para Boston, onde passou a estudar no New England Conservatory.

A tensão racial nos Estados Unidos aumentava rapidamente. As Leis Jim Crow, que oficializavam a segregação racial nos Estados Unidos, fizeram com que muitos negros se mudassem para estados do norte, onde começaram a ser vistos com preconceito cada vez maior.

Segundo Michael J. Cooper, biógrafo de Price, sua mãe alugou um apartamento fora do campus para a filha e sugeriu a ela que, por ter tom de pele mais claro, dissesse aos colegas que era natural do México (novos estudos sugerem que em sua ascendência, além de negros, havia também indígenas e espanhóis).

Além das aulas de piano e órgão, ela passou a estudar na classe de composição de George Whitefield Chadwick, um dos poucos professores a aceitar mulheres e negros como alunos. Após se formar, em 1906, ela decidiu retornar a Little Rock.

Aos 23 anos, após a morte dos pais, aceitou um posto como professora da Clark Atlanta University, no estado da Georgia. Casou-se com o advogado Thomas Price e instalou-se mais uma vez em Arkansas até a família, com medo da violência provocada pela segregação – sua filha mais nova foi ameaçada de morte –, se mudar para Chicago, em 1927.

Na cidade, Price sofreu um drama particular, à medida em que o marido, com problemas financeiros intensificados pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929, passou a agredi-la. Os dois se separaram e a compositora passaria a viver mais tarde com o músico Pusey Dell Arnet.

Em 1933, a Sinfônica de Chicago tocou sua Sinfonia nº 1, fazendo dela a primeira compositora negra a ter uma obra sinfônica apresentada no país. Seria normalmente o primeiro passo em direção a uma carreira consolidada. Mas o reconhecimento por completo não veio antes de sua morte, em junho de 1953.

Resgate contínuo

Suas primeiras obras, em especial peças para piano, estão muito ligadas à tentativa de recriar pela música clássica melodias e temas afro-americanos, muitas vezes a partir da releitura de spirituals. Sua Sinfonia nº 1, assim como a maior parte de sua produção para piano, é testemunho disso. Com o tempo, porém, sem abandonar totalmente essa inspiração, Price começou a se relacionar com as novas ideias composicionais que eram experimentadas na primeira metade do século 20.

“Sua música esteve sempre muito conectada à música da América negra, ao jazz, aos spirituals. E isso nunca a abandonou”, diz Michelle Cann. “Mas é notável como, com o passar dos anos, outros elementos vão se somando à sua criação. Primeiro, sinto uma influência da música do romantismo, de Brahms, de Rachmaninov. E, mais para frente, há o interesse por outras possibilidades, um flerte com a dissonância, com a música moderna”, completa.

Em 2008, foram encontrados em uma casa abandonada em uma cidade próxima de Chicago pacotes com composições até então desconhecidas de Florence Price, incluindo obras de grande magnitude, como dois concertos para violino e sua quarta sinfonia.

É bem possível que outras partituras também tenham se perdido – a sinfonia nº 2, por exemplo, ficou incompleta ou parte dela também pode ter extraviado com o tempo. Mas a música de Florence Price que foi preservada dá conta o suficiente de revelar uma compositora cujo caminho artístico é dos mais interessantes.

Serviço Florence Price

  • Orquestra Sinfônica Municipal - Michelle Cann - piano
  • Dias 16, 20h; dia 17, 17h.
  • Teatro Municipal de São Paulo
  • Pça. Ramos de Azevedo, s/nº
  • Ingressos: theatromunicipal.org.br
  • De R$ 12 a R$ 64

Em 1943, a compositora Florence Price resolveu escrever ao maestro Sergei Koussevitzky. Então diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, ele era a grande personalidade da vida musical nos Estados Unidos. E seu interesse pela obra de qualquer autor significava a garantia de abertura de novas portas.

“Meu caro dr. Koussevitzky. Para começar, devo dizer que tenho duas deficiências – de gênero e de raça. Sou uma mulher. E tenho algum sangue negro em minhas veias”, escreveu Price, que enviou junto ao maestro uma de suas partituras. E encerrou a carta pedindo: “Deixe-me tranquilizá-lo dizendo que não espero ou peço nenhuma concessão em sua avaliação da obra. Eu gostaria de ser julgada apenas pelo seu mérito.”

Koussevitzky nunca respondeu a essa ou a outras tentativas de contato de Price. E por mais de seis décadas suas obras mantiveram-se distante dos palcos – passando apenas recentemente por um processo de resgate levado adiante por algumas orquestras americanas e músicos em busca de redescobrir vozes que ficaram perdidas no passado.

Florence Price Foto: G. Nelidoff

Peças de Price têm sido recuperadas em gravações por diversos artistas e grupos. Depois de gravar as sinfonias nº 1 e nº 3, e ganhar o Grammy 2022 com o álbum, a Orquestra de Filadélfia e o maestro Yannick Nézét-Séguin lançaram em maio os dois concertos para violino da compositora com solos de Randall Goosby.

O Quarteto Catalyst colocou no mercado em 2022 o registro de suas principais obras de câmara, ao lado da pianista Michelle Cann, que lançou na semana passada uma seleção de peças para piano – ao todo, Price escreveu mais de duzentas partituras para o instrumento. Já seu Concerto para piano chegou às plataformas em maio em leitura da pianista Jeneba Kanneh-Mason e dos músicos da Chineke! Orchestra.

“Toda história merece ser ouvida, e histórias como a de Price foram barradas durante muito tempo”, diz Cann, que está no Brasil e na sexta, 16, e no sábado, 17, apresenta o Concerto de Price no Teatro Municipal de São Paulo (veja serviço completo abaixo).

Ela foi uma compositora fascinante, teve uma história de vida marcante. Mas nunca recebeu da parte do meio musical oportunidades justas e é nossa missão como artistas fazer essa música ser ouvida.

Michelle Cann, pianista, sobre Florence Price

O caso de Florence Price está longe de ser único na história da música. Avanços têm sido lentos. Uma pesquisa da Fundação Donne, criada pela cantora lírica brasileira Gabriella di Laccio na Inglaterra, mostra que, das 20.400 obras apresentadas por 111 orquestras de 31 países em 2022, apenas 7,7% foram escritas por mulheres – e, entre essas peças, apenas 1,02% é de autoria de compositoras negras. Na lista de autores mais apresentados, a primeira mulher aparece na 50ª posição – justamente Florence Price.

Trajetória

Price nasceu no dia 9 de abril de 1887 em Little Rock, cidade do estado de Arkansas, em uma comunidade na qual negros e brancos viviam de forma integrada. Seu pai era dentista – àquela altura, um dos apenas doze dentistas negros nos Estados Unidos. Sua mãe havia estudado piano e foi a primeira a dar aulas para a filha que, aos 16 anos, mudou-se para Boston, onde passou a estudar no New England Conservatory.

A tensão racial nos Estados Unidos aumentava rapidamente. As Leis Jim Crow, que oficializavam a segregação racial nos Estados Unidos, fizeram com que muitos negros se mudassem para estados do norte, onde começaram a ser vistos com preconceito cada vez maior.

Segundo Michael J. Cooper, biógrafo de Price, sua mãe alugou um apartamento fora do campus para a filha e sugeriu a ela que, por ter tom de pele mais claro, dissesse aos colegas que era natural do México (novos estudos sugerem que em sua ascendência, além de negros, havia também indígenas e espanhóis).

Além das aulas de piano e órgão, ela passou a estudar na classe de composição de George Whitefield Chadwick, um dos poucos professores a aceitar mulheres e negros como alunos. Após se formar, em 1906, ela decidiu retornar a Little Rock.

Aos 23 anos, após a morte dos pais, aceitou um posto como professora da Clark Atlanta University, no estado da Georgia. Casou-se com o advogado Thomas Price e instalou-se mais uma vez em Arkansas até a família, com medo da violência provocada pela segregação – sua filha mais nova foi ameaçada de morte –, se mudar para Chicago, em 1927.

Na cidade, Price sofreu um drama particular, à medida em que o marido, com problemas financeiros intensificados pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929, passou a agredi-la. Os dois se separaram e a compositora passaria a viver mais tarde com o músico Pusey Dell Arnet.

Em 1933, a Sinfônica de Chicago tocou sua Sinfonia nº 1, fazendo dela a primeira compositora negra a ter uma obra sinfônica apresentada no país. Seria normalmente o primeiro passo em direção a uma carreira consolidada. Mas o reconhecimento por completo não veio antes de sua morte, em junho de 1953.

Resgate contínuo

Suas primeiras obras, em especial peças para piano, estão muito ligadas à tentativa de recriar pela música clássica melodias e temas afro-americanos, muitas vezes a partir da releitura de spirituals. Sua Sinfonia nº 1, assim como a maior parte de sua produção para piano, é testemunho disso. Com o tempo, porém, sem abandonar totalmente essa inspiração, Price começou a se relacionar com as novas ideias composicionais que eram experimentadas na primeira metade do século 20.

“Sua música esteve sempre muito conectada à música da América negra, ao jazz, aos spirituals. E isso nunca a abandonou”, diz Michelle Cann. “Mas é notável como, com o passar dos anos, outros elementos vão se somando à sua criação. Primeiro, sinto uma influência da música do romantismo, de Brahms, de Rachmaninov. E, mais para frente, há o interesse por outras possibilidades, um flerte com a dissonância, com a música moderna”, completa.

Em 2008, foram encontrados em uma casa abandonada em uma cidade próxima de Chicago pacotes com composições até então desconhecidas de Florence Price, incluindo obras de grande magnitude, como dois concertos para violino e sua quarta sinfonia.

É bem possível que outras partituras também tenham se perdido – a sinfonia nº 2, por exemplo, ficou incompleta ou parte dela também pode ter extraviado com o tempo. Mas a música de Florence Price que foi preservada dá conta o suficiente de revelar uma compositora cujo caminho artístico é dos mais interessantes.

Serviço Florence Price

  • Orquestra Sinfônica Municipal - Michelle Cann - piano
  • Dias 16, 20h; dia 17, 17h.
  • Teatro Municipal de São Paulo
  • Pça. Ramos de Azevedo, s/nº
  • Ingressos: theatromunicipal.org.br
  • De R$ 12 a R$ 64

Em 1943, a compositora Florence Price resolveu escrever ao maestro Sergei Koussevitzky. Então diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, ele era a grande personalidade da vida musical nos Estados Unidos. E seu interesse pela obra de qualquer autor significava a garantia de abertura de novas portas.

“Meu caro dr. Koussevitzky. Para começar, devo dizer que tenho duas deficiências – de gênero e de raça. Sou uma mulher. E tenho algum sangue negro em minhas veias”, escreveu Price, que enviou junto ao maestro uma de suas partituras. E encerrou a carta pedindo: “Deixe-me tranquilizá-lo dizendo que não espero ou peço nenhuma concessão em sua avaliação da obra. Eu gostaria de ser julgada apenas pelo seu mérito.”

Koussevitzky nunca respondeu a essa ou a outras tentativas de contato de Price. E por mais de seis décadas suas obras mantiveram-se distante dos palcos – passando apenas recentemente por um processo de resgate levado adiante por algumas orquestras americanas e músicos em busca de redescobrir vozes que ficaram perdidas no passado.

Florence Price Foto: G. Nelidoff

Peças de Price têm sido recuperadas em gravações por diversos artistas e grupos. Depois de gravar as sinfonias nº 1 e nº 3, e ganhar o Grammy 2022 com o álbum, a Orquestra de Filadélfia e o maestro Yannick Nézét-Séguin lançaram em maio os dois concertos para violino da compositora com solos de Randall Goosby.

O Quarteto Catalyst colocou no mercado em 2022 o registro de suas principais obras de câmara, ao lado da pianista Michelle Cann, que lançou na semana passada uma seleção de peças para piano – ao todo, Price escreveu mais de duzentas partituras para o instrumento. Já seu Concerto para piano chegou às plataformas em maio em leitura da pianista Jeneba Kanneh-Mason e dos músicos da Chineke! Orchestra.

“Toda história merece ser ouvida, e histórias como a de Price foram barradas durante muito tempo”, diz Cann, que está no Brasil e na sexta, 16, e no sábado, 17, apresenta o Concerto de Price no Teatro Municipal de São Paulo (veja serviço completo abaixo).

Ela foi uma compositora fascinante, teve uma história de vida marcante. Mas nunca recebeu da parte do meio musical oportunidades justas e é nossa missão como artistas fazer essa música ser ouvida.

Michelle Cann, pianista, sobre Florence Price

O caso de Florence Price está longe de ser único na história da música. Avanços têm sido lentos. Uma pesquisa da Fundação Donne, criada pela cantora lírica brasileira Gabriella di Laccio na Inglaterra, mostra que, das 20.400 obras apresentadas por 111 orquestras de 31 países em 2022, apenas 7,7% foram escritas por mulheres – e, entre essas peças, apenas 1,02% é de autoria de compositoras negras. Na lista de autores mais apresentados, a primeira mulher aparece na 50ª posição – justamente Florence Price.

Trajetória

Price nasceu no dia 9 de abril de 1887 em Little Rock, cidade do estado de Arkansas, em uma comunidade na qual negros e brancos viviam de forma integrada. Seu pai era dentista – àquela altura, um dos apenas doze dentistas negros nos Estados Unidos. Sua mãe havia estudado piano e foi a primeira a dar aulas para a filha que, aos 16 anos, mudou-se para Boston, onde passou a estudar no New England Conservatory.

A tensão racial nos Estados Unidos aumentava rapidamente. As Leis Jim Crow, que oficializavam a segregação racial nos Estados Unidos, fizeram com que muitos negros se mudassem para estados do norte, onde começaram a ser vistos com preconceito cada vez maior.

Segundo Michael J. Cooper, biógrafo de Price, sua mãe alugou um apartamento fora do campus para a filha e sugeriu a ela que, por ter tom de pele mais claro, dissesse aos colegas que era natural do México (novos estudos sugerem que em sua ascendência, além de negros, havia também indígenas e espanhóis).

Além das aulas de piano e órgão, ela passou a estudar na classe de composição de George Whitefield Chadwick, um dos poucos professores a aceitar mulheres e negros como alunos. Após se formar, em 1906, ela decidiu retornar a Little Rock.

Aos 23 anos, após a morte dos pais, aceitou um posto como professora da Clark Atlanta University, no estado da Georgia. Casou-se com o advogado Thomas Price e instalou-se mais uma vez em Arkansas até a família, com medo da violência provocada pela segregação – sua filha mais nova foi ameaçada de morte –, se mudar para Chicago, em 1927.

Na cidade, Price sofreu um drama particular, à medida em que o marido, com problemas financeiros intensificados pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929, passou a agredi-la. Os dois se separaram e a compositora passaria a viver mais tarde com o músico Pusey Dell Arnet.

Em 1933, a Sinfônica de Chicago tocou sua Sinfonia nº 1, fazendo dela a primeira compositora negra a ter uma obra sinfônica apresentada no país. Seria normalmente o primeiro passo em direção a uma carreira consolidada. Mas o reconhecimento por completo não veio antes de sua morte, em junho de 1953.

Resgate contínuo

Suas primeiras obras, em especial peças para piano, estão muito ligadas à tentativa de recriar pela música clássica melodias e temas afro-americanos, muitas vezes a partir da releitura de spirituals. Sua Sinfonia nº 1, assim como a maior parte de sua produção para piano, é testemunho disso. Com o tempo, porém, sem abandonar totalmente essa inspiração, Price começou a se relacionar com as novas ideias composicionais que eram experimentadas na primeira metade do século 20.

“Sua música esteve sempre muito conectada à música da América negra, ao jazz, aos spirituals. E isso nunca a abandonou”, diz Michelle Cann. “Mas é notável como, com o passar dos anos, outros elementos vão se somando à sua criação. Primeiro, sinto uma influência da música do romantismo, de Brahms, de Rachmaninov. E, mais para frente, há o interesse por outras possibilidades, um flerte com a dissonância, com a música moderna”, completa.

Em 2008, foram encontrados em uma casa abandonada em uma cidade próxima de Chicago pacotes com composições até então desconhecidas de Florence Price, incluindo obras de grande magnitude, como dois concertos para violino e sua quarta sinfonia.

É bem possível que outras partituras também tenham se perdido – a sinfonia nº 2, por exemplo, ficou incompleta ou parte dela também pode ter extraviado com o tempo. Mas a música de Florence Price que foi preservada dá conta o suficiente de revelar uma compositora cujo caminho artístico é dos mais interessantes.

Serviço Florence Price

  • Orquestra Sinfônica Municipal - Michelle Cann - piano
  • Dias 16, 20h; dia 17, 17h.
  • Teatro Municipal de São Paulo
  • Pça. Ramos de Azevedo, s/nº
  • Ingressos: theatromunicipal.org.br
  • De R$ 12 a R$ 64

Em 1943, a compositora Florence Price resolveu escrever ao maestro Sergei Koussevitzky. Então diretor da Orquestra Sinfônica de Boston, ele era a grande personalidade da vida musical nos Estados Unidos. E seu interesse pela obra de qualquer autor significava a garantia de abertura de novas portas.

“Meu caro dr. Koussevitzky. Para começar, devo dizer que tenho duas deficiências – de gênero e de raça. Sou uma mulher. E tenho algum sangue negro em minhas veias”, escreveu Price, que enviou junto ao maestro uma de suas partituras. E encerrou a carta pedindo: “Deixe-me tranquilizá-lo dizendo que não espero ou peço nenhuma concessão em sua avaliação da obra. Eu gostaria de ser julgada apenas pelo seu mérito.”

Koussevitzky nunca respondeu a essa ou a outras tentativas de contato de Price. E por mais de seis décadas suas obras mantiveram-se distante dos palcos – passando apenas recentemente por um processo de resgate levado adiante por algumas orquestras americanas e músicos em busca de redescobrir vozes que ficaram perdidas no passado.

Florence Price Foto: G. Nelidoff

Peças de Price têm sido recuperadas em gravações por diversos artistas e grupos. Depois de gravar as sinfonias nº 1 e nº 3, e ganhar o Grammy 2022 com o álbum, a Orquestra de Filadélfia e o maestro Yannick Nézét-Séguin lançaram em maio os dois concertos para violino da compositora com solos de Randall Goosby.

O Quarteto Catalyst colocou no mercado em 2022 o registro de suas principais obras de câmara, ao lado da pianista Michelle Cann, que lançou na semana passada uma seleção de peças para piano – ao todo, Price escreveu mais de duzentas partituras para o instrumento. Já seu Concerto para piano chegou às plataformas em maio em leitura da pianista Jeneba Kanneh-Mason e dos músicos da Chineke! Orchestra.

“Toda história merece ser ouvida, e histórias como a de Price foram barradas durante muito tempo”, diz Cann, que está no Brasil e na sexta, 16, e no sábado, 17, apresenta o Concerto de Price no Teatro Municipal de São Paulo (veja serviço completo abaixo).

Ela foi uma compositora fascinante, teve uma história de vida marcante. Mas nunca recebeu da parte do meio musical oportunidades justas e é nossa missão como artistas fazer essa música ser ouvida.

Michelle Cann, pianista, sobre Florence Price

O caso de Florence Price está longe de ser único na história da música. Avanços têm sido lentos. Uma pesquisa da Fundação Donne, criada pela cantora lírica brasileira Gabriella di Laccio na Inglaterra, mostra que, das 20.400 obras apresentadas por 111 orquestras de 31 países em 2022, apenas 7,7% foram escritas por mulheres – e, entre essas peças, apenas 1,02% é de autoria de compositoras negras. Na lista de autores mais apresentados, a primeira mulher aparece na 50ª posição – justamente Florence Price.

Trajetória

Price nasceu no dia 9 de abril de 1887 em Little Rock, cidade do estado de Arkansas, em uma comunidade na qual negros e brancos viviam de forma integrada. Seu pai era dentista – àquela altura, um dos apenas doze dentistas negros nos Estados Unidos. Sua mãe havia estudado piano e foi a primeira a dar aulas para a filha que, aos 16 anos, mudou-se para Boston, onde passou a estudar no New England Conservatory.

A tensão racial nos Estados Unidos aumentava rapidamente. As Leis Jim Crow, que oficializavam a segregação racial nos Estados Unidos, fizeram com que muitos negros se mudassem para estados do norte, onde começaram a ser vistos com preconceito cada vez maior.

Segundo Michael J. Cooper, biógrafo de Price, sua mãe alugou um apartamento fora do campus para a filha e sugeriu a ela que, por ter tom de pele mais claro, dissesse aos colegas que era natural do México (novos estudos sugerem que em sua ascendência, além de negros, havia também indígenas e espanhóis).

Além das aulas de piano e órgão, ela passou a estudar na classe de composição de George Whitefield Chadwick, um dos poucos professores a aceitar mulheres e negros como alunos. Após se formar, em 1906, ela decidiu retornar a Little Rock.

Aos 23 anos, após a morte dos pais, aceitou um posto como professora da Clark Atlanta University, no estado da Georgia. Casou-se com o advogado Thomas Price e instalou-se mais uma vez em Arkansas até a família, com medo da violência provocada pela segregação – sua filha mais nova foi ameaçada de morte –, se mudar para Chicago, em 1927.

Na cidade, Price sofreu um drama particular, à medida em que o marido, com problemas financeiros intensificados pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929, passou a agredi-la. Os dois se separaram e a compositora passaria a viver mais tarde com o músico Pusey Dell Arnet.

Em 1933, a Sinfônica de Chicago tocou sua Sinfonia nº 1, fazendo dela a primeira compositora negra a ter uma obra sinfônica apresentada no país. Seria normalmente o primeiro passo em direção a uma carreira consolidada. Mas o reconhecimento por completo não veio antes de sua morte, em junho de 1953.

Resgate contínuo

Suas primeiras obras, em especial peças para piano, estão muito ligadas à tentativa de recriar pela música clássica melodias e temas afro-americanos, muitas vezes a partir da releitura de spirituals. Sua Sinfonia nº 1, assim como a maior parte de sua produção para piano, é testemunho disso. Com o tempo, porém, sem abandonar totalmente essa inspiração, Price começou a se relacionar com as novas ideias composicionais que eram experimentadas na primeira metade do século 20.

“Sua música esteve sempre muito conectada à música da América negra, ao jazz, aos spirituals. E isso nunca a abandonou”, diz Michelle Cann. “Mas é notável como, com o passar dos anos, outros elementos vão se somando à sua criação. Primeiro, sinto uma influência da música do romantismo, de Brahms, de Rachmaninov. E, mais para frente, há o interesse por outras possibilidades, um flerte com a dissonância, com a música moderna”, completa.

Em 2008, foram encontrados em uma casa abandonada em uma cidade próxima de Chicago pacotes com composições até então desconhecidas de Florence Price, incluindo obras de grande magnitude, como dois concertos para violino e sua quarta sinfonia.

É bem possível que outras partituras também tenham se perdido – a sinfonia nº 2, por exemplo, ficou incompleta ou parte dela também pode ter extraviado com o tempo. Mas a música de Florence Price que foi preservada dá conta o suficiente de revelar uma compositora cujo caminho artístico é dos mais interessantes.

Serviço Florence Price

  • Orquestra Sinfônica Municipal - Michelle Cann - piano
  • Dias 16, 20h; dia 17, 17h.
  • Teatro Municipal de São Paulo
  • Pça. Ramos de Azevedo, s/nº
  • Ingressos: theatromunicipal.org.br
  • De R$ 12 a R$ 64

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