"Não confie na memória de uma hippie velha. Algumas coisas que eu falar podem não ser totalmente verdade”, adverte, em tom de brincadeira, a ex-fotógrafa Leila Lisboa, em papo com a reportagem do Estadão. Os eventuais lapsos de suas recordações, entretanto, são totalmente perdoáveis diante das cerca de 200 históricas fotos do livro Os Mutantes – A Hora e a Vez – Memórias Fotográficas, recém-lançado por ela.
A publicação é um relançamento de uma edição limitada de 2015, realizada por meio de um financiamento coletivo. Na época, os fãs da banda puderam adquirir o livro. Porém, a pequena editora contratada para fazer a impressão não conseguiu entregar todos os exemplares que Leila havia comprado para comercializar. Virou item de colecionador.
Agora, com edição ampliada, diagramação reformulada, acréscimo de novas fotos, textos com novas histórias – um deles é assinado pelo músico Luiz Thunderbird – e venda comercial, o livro desperta novamente a atenção dos devotos dos Muts – e daqueles que não puderam adquiri-lo anos atrás.
O livro se torna mais especial porque é fruto de uma história de amor e amizade na qual Leila entrou de cabeça depois de, em 1969, a convite da amiga Lucinha Turnbull – conhecida posteriormente por integrar o grupo Tutti Frutti, que acompanhou Rita Lee na era pós-Mutantes, e pelo sucesso popular Aroma – assistir a um show do grupo no Theatro São Pero, em São Paulo.
Leila não se lembra bem do que Os Mutantes apresentaram no palco. A sensação maior desse dia é sobre a paixão “de adolescente”, em suas palavras, que ela sentiu por Liminha, baixista da banda – e aqui, é preciso salientar, e o livro é justo nesse equilíbrio, que, nessa época, a banda não era mais formada apenas por Rita Lee e os irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista – imagem perpetuada pela participação dos três nos festivais de música da TV Record e nas capas de discos. Liminha, atualmente, produtor renomado, e o baterista Dinho Leme, irmão do jornalista de automobilismo Reginaldo Leme, eram membros importantes e atuantes.
De namoro com Liminha, de posse de um Ford 1951 – carro era algo raro entre os hippies que andavam meio desligados do mundo material – e com uma câmera fotográfica Pentax nas mãos – e, mais incrível que isso, sabendo fotografar muito bem, pois trabalhava como assistente de um fotógrafo da Scania – Leila passaria os cinco anos seguintes registrando o que a banda fazia nos ensaios, shows e momentos de descontração.
“Passei a quase que viver com os Mutantes. Ficávamos às vezes semanas na casa do Arnaldo. Havia um quarto enorme, dividido por cortinas, onde os casais ficavam”, lembra Leila, que também dividia uma quitinete com Liminha na Alameda Santos. O pequeno apartamento ganhou o apelido de “Zé” e serviu de abrigo para algumas criações dos amigos.
O livro abre com fotos cedidas por um amigo de Leila e da banda, o também músico Lineu Vitale. Tiradas na porta da casa de uma amiga do grupo, Suely Chagas, em setembro de 1970, elas mostram um ambiente de total descontração, com Rita sentada no chão imitando um de seus famosos personagens, Sérgio brincando com uma echarpe e Sérgio e Dinho simulando um beijo na boca.
As primeiras fotos de Leila datam de 1971, em uma casa às margens da Represa de Guarapiranga, na zona sul da capital paulista, pertencente ao casal Gilberta e Paulo Sri. Por lá, Os Mutantes passaram um tempo tranquilo e criativo.
Do mesmo ano, há o registro de um show do grupo no Clube Sírio, em São Paulo. Leila lembra que o espaço do palco era mínimo, mal abrigava os integrantes do grupo. Ela também tinha que ser ágil para fazer as fotos à época.
“Hoje em dia, se você vai fotografar um show, não tem como a foto não sair com 200 mil cores. Antes, os holofotes pareciam duas velas e eu tinha que me virar. Corria de um lado para o outro do palco. Acertava tudo na mão. Gosto até das fotos que estão fora de foco. Elas têm vida”, diz ainda.
Nessa série de 1971, o livro também detalha como uma das bandas de rock mais cultuadas aqui e no exterior, criada em 1966, naquela altura com quatro álbuns lançados e shows fora do País, já havia turbinado e reforçado sua coleção de instrumentos, como a bateria Ludwig Rock Duo, de Dinho, e a guitarra Regulus Raphael II de Sérgio Dias, que se tornou lendária entre os roqueiros brasileiros.
Do lançamento do disco Mutantes e Seus Cometas no País dos Bauret, no Parque da Água Branca, em 1972, há fotos coloridas, como a de Rita, Sérgio e Arnaldo nos bastidores, ao ar livre. A apresentação ficou conhecida como “o show dos cachorros”, por ter sido realizada em um dia de exposição de cães no local.
Ainda do ano de 1972, há registros de um show no Teatro Oficina, em São Paulo – detalhe para uma foto na qual um fotógrafo aparece tapando os ouvidos – e dos longos ensaios da banda em uma casa na Serra da Cantareira.
Nessa mesma época, Leila e Liminha embarcaram de férias para Londres em companhia de Rita e Lucinha. Assistiram a shows de nomes como Genesis (4 vezes), Edgar Winter e Little Richard. Por lá, moraram por um tempo em um hotel que tinha 30 quartos e um banheiro. O casal comprava álcool para desinfetar a banheira e tomar banhos diários, para desespero do dono do estabelecimento. “Eu e Liminha éramos os limpinhos da turma. Quase fomos expulsos por gastar muita água”, conta. Enquanto isso, Arnaldo foi para Nova York comprar novos instrumentos.
O ano de 1972 marcaria o fim de uma era nos Mutantes. Após desentendimentos e de mais um disco que saiu apenas com o nome de Rita Lee na capa – Hoje É o Primeiro Dia do Resto de Sua Vida –, uma forçada de barra da gravadora que já previa um futuro solo para a primeira-dama do grupo, a banda ficou sem sua vocalista.
Ao longo dos anos, como toda banda lendária que se preze, as versões para a saída de Rita se multiplicaram. A mais conhecida – e aceita – é a de que a cantora foi expulsa por Arnaldo Baptista. Essa também é a interpretação de Leila, que estava por perto quando tudo aconteceu.
“Um terror! Foi o Arnaldo que pediu para a Rita sair. Eles passaram a ser músicos de altíssima qualidade. Eles perseguiam bandas como Genesis e Emerson, Lake & Palmer, enquanto Rita era outra coisa, era a graça, a alegria, as brincadeiras com os instrumentinhos”, lembra.
Leila lembra do convite que recebeu da amiga. “No dia seguinte, ela passou na casa da minha mãe, superchateada, e me convidou para fazer um conjunto com ela. Eu recusei, não era para mim”, conta.
O convite aconteceu porque, tempos antes, Leila (no baixo) Rita (na bateria) e Lucinha (na guitarra) e Lilian Turnbull (teclado) montaram um grupo chamado Baseado Nelas, que também teve vida curtíssima, em uma única apresentação no Teatro Oficina. “Foi um desastre, apesar de divertido. Na verdade, não lembro se só ensaiamos ou tocamos. Mas acho que tocamos”, diz.
Leila se recorda de uma frase dita por Rita, nesse dia seguinte à sua expulsão dos Mutantes. “Ela me disse: ‘Guarde o que vou te falar. Eu serei a maior roqueira deste país’.”
O afastamento de Rita, além de um acontecimento de ordem musical, foi um trauma para os amigos que estavam em volta e se refletiu alguns meses depois, quando Leila esteve no festival Phono 73 – O Canto de Um Povo, organizado pela gravadora Philips, hoje Universal, com seu elenco. Em três noites, se apresentaram nomes como Elis Regina, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, o então Jorge Ben (hoje Ben Jor) e Odair José.
Rita se juntou a Lucinha para formar o duo As Cilibrinas do Éden, que abriu a apresentação dos Mutantes no evento. Acompanhadas apenas por seus violões, eles cantaram músicas como Mamãe Natureza e Bandido Corazón. Foi a primeira e única apresentação da dupla.
“Foi uma tristeza. Um momento de ruptura de alma. Eu chorei do começo ao fim. Só eu as fotografei. Ninguém queria saber dos cabeludos naquela época e os cabeludos também não gostavam de quem não tinha cabelo compridos”, comenta. Leila faz questão de desmentir a história de que Rita e Lucinha foram vaiadas nesse dia. “Pura mentira! Elas foram aplaudidas normalmente. Os Mutantes foram ovacionados”, afirma.
A fase marcou ainda o fim dos casais. Rita se separou de Arnaldo e Leila de Liminha. Dinho e Sérgio também terminaram seus respectivos relacionamentos.
“Eu tive a sorte de pegar a época brilhante dos Mutantes. Havia muita alegria, brincadeiras, esperança e paz entre eles. Foi um tempo feliz. E digo: não éramos drogados como as pessoas dizem. Nem havia chegado a cocaína por aqui ainda. Eventualmente, um cogumelo. Eles ensaiavam sóbrios, na raça. Arnaldo era um monstro da criação e um líder nato”, conta.
Na fase pós-Mutantes, Leila fotografou Arnaldo para a capa de Loki?, seu álbum solo de 1974. Usou 4 rolos de filme. Quase todas se perderam nas mãos da gravadora e da imprensa, assim como tantas outras fotos que ela tirou do grupo.
Com o tempo, Leila deixou de fotografar shows. Teve uma escola de mergulho, fez fotos subaquáticas, viajou pelo mundo e, atualmente, trabalha com turismo. Mantém contato com os amigos de Mutantes – falam-se pelo menos uma vez por mês. Apenas de Rita ela se afastou. “Tenho muito orgulho desse livro. É algo que vou deixar para a história do rock’n’roll brasileiro”, acrescenta.