Os fundos de investimentos especializados em catálogos musicais já operam no Brasil. Depois de experiências internacionais recentes e milionárias de aquisição de toda a obra de um artista ou parte dela feita por investidores e mesmo gravadoras, uma onda que fez Bob Dylan vender o controle de suas mais de 600 canções para a Universal Music Group por um valor estimado em US$ 300 milhões e Neil Young vender metade dos direitos de cerca de 1.180 canções para o gigante Hipgnosis Songs Fund por uma quantia não divulgada, mas avaliada em muitos milhões, artistas brasileiros estão sendo procurados por uma gente que quer comprar seus catálogos a preço de ouro.
As cifras e os status das negociações correm com contratos de confidencialidade, mas a reportagem falou com artistas, empresários e investidores que confirmam o início das conversas e o teor das propostas. A lógica é simples: o fundo aborda o artista que possui um catálogo com potencial atraente para investidores. Além da força econômica que as obras representam, um estudo de mercado aponta que os valores em direitos autorais no País gerados por execuções de música em streaming, estimados hoje em R$ 2 bilhões, serão o dobro em 2025. Ou seja, se uma obra é financeiramente atraente hoje, ela será, ao menos no mundo digital, duplamente rentável em apenas três anos.
Sentados à mesa com os representantes dos compositores, os agentes fazem a proposta. Eles estudam os ganhos dos artistas por um período específico baseados em planilhas de execuções em streaming, por exemplo, chegam a uma estimativa do que cada um ganharia pelos próximos 10 anos – esse prazo pode variar em cada negociação – e se comprometem a pagar tal montante no ato. Ou seja: o artista ganha agora o que, segundo os cálculos apresentados pelos empresários, só receberia em uma década. Sem poder fazer shows, sensibilizados pela sensação de finitude que a pandemia reforça todos os dias ou dispostos a resolver questões de partilha aos herdeiros, autores tendem a ver as propostas como uma espécie de última grande chance para conseguirem uma bolada em dinheiro vivo, o que o mercado chama de liquidez, proveniente de uma obra que o mesmo mercado passará a chamar de ativo.
Uma vez que passa a ser administrada pelo fundo, inteira ou parcialmente, e a ter seus ganhos repartidos com os investidores, a obra, segundo alguns acordos aos quais a reportagem teve acesso, passa a ser trabalhada para ter lucros potencializados. É onde pode entrar com mais agressividade a prática do sync licensing, a licença de sincronização, um acordo entre um usuário de música e o compositor que concede permissão mediante pagamentos para a obra ser lançada em vídeo para plataformas como YouTube; a aplicação de um marketing digital mais pesado para que as músicas ganhem posições de destaque em empresas como Deezer e Spotify e o controle financeiramente mais exigente sobre regravações, remixes e liberações.
A reportagem identificou um dos fundos de investimentos que opera desde o final de 2020 com muita discrição. Ele se chama Arbor Adaggio e se apresenta como “o primeiro fundo de investimento brasileiro dedicado a royalties musicais”. Um de seus mentores é o músico, engenheiro de áudio e DJ João Luccas Caracas, de 33 anos. “Nosso propósito maior é ajudar os músicos”, ele diz. “Por ser produtor e artista, entendo que existe um valor intangível da obra, que é preciso tratá-la com respeito.” A seu lado estão experts como Edison Coelho, no marketing; Eduardo Senna, advogado referência em direitos autorais; e Edu Vasconcellos, ex-Sony ATV, que cuidará da administração dos catálogos.
Sem dar nomes, João confirma que negocia com grandes artistas. Em apenas uma reunião, segundo uma fonte, estiveram com agentes da Adaggio representantes das obras de Caetano Veloso, Djavan e Tom Jobim. Um encontro que, para um dos participantes, deixou muitas perguntas no ar. “Baseados em quais números eles podem saber de nossos ganhos para pensar em uma proposta? Os rendimentos não são apenas provenientes das plataformas digitais.”
Dois fatores complicam a vida dos negociadores que abordam os artistas da MPB clássica. 1.) Ao contrário de mercados mais sólidos onde imperam legislações firmes, o Brasil tem um longo histórico de exploração e falta de transparência por parte de gravadoras e entidades de repasses de direitos autorais. Ou seja, depois de lutarem para recuperar o controle de suas obras, os artistas olham para investidores como se eles fossem as próximas raposas. 2.) Depois de apanhar muito, e de perder milhões, um autor brasileiro com mais de 40 anos de carreira sabe tudo. Não se trata mais do jovem sonhador que não lia os contratos que assinava. Negociar com ele, senhores, é jogo duro.
E qualquer deslize pode colocar tudo a perder. Há poucos meses, a foto montagem de uma apresentação para o mercado, feita pela Arbor Adaggio, vazou e foi parar nas mãos de um grupo de artistas. A imagem criada para uso restrito colocada na abertura de um power point, e que obviamente daria força à ideia do negócio, mostrava dezesseis grandes nomes com ativos dignos de despertarem investimentos. Faces como as de Tom Jobim, Djavan, Gil, Roberto, Erasmo, Chico Buarque, Rita Lee e Caetano apareciam sobre a frase “música é a alma da cultura, e vale ouro.” “Isso era uma capa de apresentação interna que vazou com má-fé. Nos retratamos com as partes e elas entenderam”, diz João Luccas. O representante de um dos artistas afirmou ao Estado que cada um recebeu, como retratação, 100 cestas básicas para fins de caridade.
As negociações estão aquecidas. O empresário de Roberto Carlos, Dodi Sirena, confirma que foi procurado por interessados no catálogo do rei, dono de um dos maiores ativos da América Latina. “Sim, já fui procurado pela indústria fonográfica e por fundos de investimentos, destacando três que estão na liderança mundial deste processo. Há mais de um ano venho recebendo esta procura e assumo que estou conversando, mas nenhum compromisso com ninguém apesar das sinalizações de valores bastante atraentes.” Segundo Dodi, Roberto faz questão de manter controle absoluto do uso de sua obra e tem demonstrado cautela em vender mesmo parte de seu patrimônio autoral para terceiros. Ainda assim, as cartas estão na mesa: “Admito que estou conversando com os players”, diz Dodi.
O compositor Roberto de Carvalho, autor e coautor de uma das mais extensas e cobiçadas “coleções de ativos” do País, ao lado de Rita Lee, diz que está em conversas simultâneas com três fundos de investimentos diferentes e duas gravadoras. Não há nada fechado, mas ele estuda com prazer e curiosidade os avanços de negócios no exterior antes de tomar a decisão. “Eu vejo como uma viabilidade sim (a venda do catálogo). Business é business. Mas estou tirando algumas conclusões e observando as propostas.” E uma das conclusões é a de que pode haver vantagens técnicas trazidas pela sanha dos jovens investidores sobre a cadeia musical.
A administração muitas vezes deficiente das obras feita por suas respectivas editoras, as empresas responsáveis pelo controle, liberações e arrecadação de verbas provenientes de regravações, joga a favor dos fundos. Eles prometem trabalhar os artistas quase que com exclusividade, dando uma atenção que as editoras não dispensam a eles por falta de braços ou de interesse. Se nas editoras um único gerente cuida da obra de até 60 artistas, os fundos prometem ter um editor para cada grupo de quatro autores.
A empresária Paula Lavigne conversou com um dos fundos interessados em adquirir a obra de Caetano. Mas, antes mesmo de ouvir a proposta financeira, ela sentiu que precisava de argumentos mais sólidos para seguir com a negociação. Sua fala sobre um ponto da discussão serve de dica aos próximos agentes de fundos que se sentarem com artistas dispostos a convencê-los com um bom argumento: “Eu espero que todos esses fundos que estão investindo se unam a nós para lutar pelo pagamento de direitos como os conexos (direitos autorais que deveriam ser pagos aos instrumentistas que tocam nas faixas). Ele não é pago no mundo digital e isso é um absurdo. Se querem investir dinheiro, torço para que entrem na luta para reivindicar os diretos da gente com a gente.”
O hitmaker Lulu Santos fala com simpatia à ideia da venda de catálogo. “Bob Dylan vendeu tudo. Acho que chega um momento em que a música cumpre sua missão. O capitalismo sabe disso, vivemos disso. Não deixa de ser uma forma de valorizar o que fizemos na vida.” Até aqui, um entendimento pode ser reconfortante mesmo aos milhões de fãs que nunca imaginaram ver seu espólio afetivo – sim, são eles os donos das canções imortais por usucapião emocional – sendo negociadas com investidores que não entram no jogo para perder: a onda dos lobos de Wall Street em busca da melhor música brasileira é prova de que, mesmo depois de milhares de fenômenos de mídia produzidos ao longo da história, só tem peso de ouro aqueles que, de fato, produziram ouro.