Funk mineiro: das festas de BH ao fenômeno das MTGs; entenda como tudo começou e a nova cena mineira


Com a ascensão das MTG nas paradas, o funk mineiro - onde tudo começou - ganhou destaque. Conversamos com pesquisadores e músicos para entender as diferenças para o funk feito no eixo Rio-SP e como se estabelece como gênero musical

Por Damy Coelho
Vhoor: das quadras da Vilarinho, na zona norte de Belo Horizonte, para as pistas de Londres Foto: Divulgação Vhoor / Cebo Luthuli

Na temporada de Malhação 2012, a personagem-sensação Fatinha, vivida por Juliana Paiva, desfilava pelo colégio com um shortinho curto e um cropped ao som do hit Piriguete. Quem canta é MC Papo, expoente do funk mineiro que despontou para o País com um... reggaeton.

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A música tinha cheiro de novidade e virou hit, mas ainda não dava pistas que pudesse classificar o funk do estado como gênero musical - ao menos para quem via de fora.

A verdade é que, a despeito do sucesso recente, nas novelas ou nas redes com as MTGs, o funk mineiro tem história - e ela remonta aos anos 1980, em festas da zona norte de Belo Horizonte. Impulsionados pelo movimento Black Rio, os moradores da região fundamentaram os próprios bailes.

Não demoraria para o funk despontar de norte a sul em Belo Horizonte - respectivamente, nos bairros Vilarinho, onde fica a quadra que deu início a tudo, e Serra, onde o funk se consolida nos bailes ao ar livre, antes de se espalhar pela região metropolitana.

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Nascente

Mas foi nos anos 1990 que a cena belo-horizontina teve uma virada. “Foi quando surgiram os mestres de cerimônia (MC’S). Eles cantavam músicas autorais, com letras em português, em vez de apenas reproduzirem as canções da música norte-americana”, explica Bruna Vilela, mestre em Comunicação pela UFPE e pesquisadora do funk de Belo Horizonte.

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Até DJ Marlboro, nome fundamental do funk nacional, teve envolvimento direto para fazer a cena mineira acontecer. Em 1989, ele aglutinou talentos regionais na coletânea Funk Brasil, na contramão do que sugeria a gravadora . Ninguém via futuro no funk. “Muito menos no funk feito fora do Rio de Janeiro”, ressalta DJ Malboro, em entrevista ao Estadão.

“A gravadora não gostou do nome [da coletânea]”, relembra. “Eles queriam ‘Funk Carioca’. Insisti pelo ‘Funk Brasil’ pois sempre acreditei que deveria ser um movimento nacional”, ressalta.

A despeito dos pessimistas, o primeiro volume chamou a atenção de grupos de funk que começavam a enviar fitas para o DJ. A coletânea rendeu: vieram os volumes 2 e 3, incluindo os mineiros Protocolo de Subúrbio e União Rap Funk, formados inicialmente por dançarinos - inclusive, o “passinho” (movimentos de improviso em que o baile todo dança) foi fundamentador do funk mineiro.

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Desse movimento saiu DJ Joseph, um daqueles primeiros MCs que experimentou cantar as músicas próprias no baile, ressalta Bruna.

'Funk Brasil', com curadoria de DJ Marlboro, apresentava novos funks pelo País Foto: Reprodução Polydor / DJ Marlboro
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Chico Mineiro da Vilarinho

Com o boom nacional do funk impulsionado por DJ Marlboro, o miami bass norte-americano e seu “filho” brasileiro, o funk melody carioca, fizeram a cabeça dos mineiros. Em BH, essa mistura ganhou o nome de funk consciente, por conta das letras que apontavam críticas sociais e até alguma religiosidade.

Em Fé na Vitória, de MC Dodô, a letra mostra o arrependimento pelos crimes cometidos e passa a mensagem de esperança e redenção: “Falhas, todos cometemos, tristeza e alegria nós vivemos/ Perdi toda família, tive que fazer a minha correria/ Hoje sinto e lamento, já passei tanto tempo aqui dentro”.

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O funk consciente tem um padrão narrativo distinto, com muitos versos, além de emularem verdadeiras jornadas do herói com histórias de superação - pode-se fazer um paralelo com as modas de viola, tal qual Chico Mineiro, de Tonico e Tinoco, que narram peripécias e tragédias típicas da vida do campo, muito marcadas na cultura do interior do estado.

“Minha geração cresceu ouvindo funk consciente”, conta o DJ e produtor Vhoor ao Estadão. Aos 25 anos, hoje arrasta públicos para festas dos Estados Unidos e da Europa. A carreira existia há mais de uma década, mas o reconhecimento veio em 2021, com O Baile, parceria dele com FBC.

O álbum, que, de certa forma, celebra as raízes do funk de BH, foi mixado e masterizado por Spider, nome influente do gênero. “Acho que o funk consciente pegou em BH por ser uma cidade política, e ter um movimento de rap e hip hop muito forte”, comenta.

Quando essa onda passou, MCs e produtores foram influenciados pelo funk ostentação paulistano, passando pelos beats minimalistas - que reverberam hoje - até desaguar nas montagens (ou MTGs) que hoje o Brasil conhece.

“O funk de BH abusa de efeitos sonoros como o delay e o reverb, dando uma sensação atmosférica, espacial e um pouco psicodélica às músicas”, explica Bruna Vilela.

‘Tá estourado’

Nos anos 2000, as ruas da região metropolitana foram tomadas pelo funk automotivo, em que as batidas eram feitas para ecoar em toda a comunidade nas enormes caixas de som instaladas em carros. A estética “suja” dessa sonoridade dá o tom saturado das batidas.

A música Radinho de Pilha (pronuncia-se “radim”, em bom mineirês), de MC Papo com as meninas da Blast Girl, ilustra essa fissura pelo som estourado: “Você não vai me conquistar com seu radinho de pilha / Eu quero um som que abala/ um carro de corrida.”

Com o tempo, o funk de Minas Gerais ganha identidade própria. Refletindo os costumes locais, vai desde uma influência cristã - que é cultural no estado das igrejas barrocas - às letras sexuais mais explícitas.

A música é feita por jovens em contato com referências globais por meio das redes sociais, com mais acesso a softwares e vontade de misturar diferentes beats para ver até onde podiam chegar. E viram que dava para chegar longe.

Hit nacional

Assim como Papo, outros MCs furaram a bolha regional nos anos 2010. Alguns uniram forças com músicos de outros estados. É o caso de Mc L da Vinte, que se juntou ao paulista MC Gury em Parado no Bailão, funk de beat “lentinho” que virou hit do carnaval de 2018.

A faixa foi produzida por Delano, que influenciou o funk mineiro com referências que iam de Led Zeppelin ao uso do agogôs dos terreiros para marcar o compasso. É dele também os hits Na ponta ela fica, de 2015, e Devagarinho - que pode remeter ao “jeitinho” do funk mineiro, com batidas lentas e envolventes.

MC Rick foi outro nome que influenciou uma geração mais nova. Entre outros hits locais, mandou o novo hino da cidade para uma geração: BH é quem?/BH é nós.

Menos é mais

Foi impulsionado pelo minimalismo que o funk de BH e da região metropolitana começou a estabelecer seu lugar no mainstream brasileiro. E aparece de várias formas: nos memes, nos vídeos de TikTok, nas paradas de streaming.

Basta lembrar do ano passado, quando as redes sociais foram tomadas por vídeos editados que mostravam Chico Moedas, ex-namorado de Luísa Sonza, ao som de Aquariano Nato, do carioca radicado em BH MC Saci, com DJ Sammer e MC Pretchako. Ou dos últimos meses, quando as MTGs, atribuídas diretamente ao funk de BH, se espalharam pelas redes.

Vhoor também atribui a consolidação do funk mineiro ao inchaço na cena de funk carioca no “tamborzão”, a partir dos anos 2010. Foi quando produtores começaram a migrar para BH para experimentar sonoridades e despontar novos talentos.

DJ, produtor e pesquisador Vhoor Foto: Divulgação Vhoor/ Oranduu

Baile em Miami

Vhoor – nome artístico de Victor Hugo - cresceu na avenida Vilarinho, próximo à quadra que sediava festas de black e soul nos anos 1980 e, mais tarde, de funk consciente. Viver a infância nos anos 2010 possibilitou o contato com primeiros experimentos na montagem e alguma revolução tecnológica que facilitou a produção musical.

Para ele, o funk foi oportunidade de crescimento profissional e pessoal. “Hoje, eu vivo de funk”, orgulha-se.

Vhoor conversa com a reportagem enquanto está em mais uma turnê pelos Estados Unidos. Ele conta que está tentando conhecer as cidades, apesar do tempo corrido. “Pude ir em lojas de discos e lugares que sempre sonhei em ir, porque, querendo ou não, cresci ouvindo música americana, né?”, comenta.

Agora, ele segue o contrafluxo levando a música de Belo Horizonte para o rádio e baladas internacionais - e bota todo mundo para dançar. Ao contrário de como se fundamentou o funk no Brasil, em meio a preconceitos e tentativas de criminalização, lá fora o funk é considerado um expoente da música eletrônica brasileira.

O boom das MTGs

E finalmente chegamos às MTGs. Você já deve ter visto a sigla, que tomou conta do TOP 50 Brasil do Spotify. MTG é a “montagem”, a arte do “copia e cola” criativo que transforma o trecho de uma música que reside no imaginário popular em algo novo, com texturas e camadas de vozes.

O produtor carioca Mulú explica ao Estadão a relação do MTG com Minas Gerais.

A tendência de fazer montagens misturando várias músicas em cima de um beat já existia em outros lugares e voltou forte. Quando explodiu no TikTok com vozes de MPB e sertanejo, o entendimento geral foi que MTG se referia a qualquer música ou remix nesse estilo mineiro, e a sigla acabou pegando

Mulú, DJ e produtor

Experimento de Mulú com música de Billie Eilish ganhou vocais de Duda Beat, produtor carioca explica a relação entre MTG e Minas Gerais Foto: Divulgação Mulú / Glaucia Mayer

As MTGs representam um funk ao mesmo tempo barulhento e ritmado que retoma clássicos da música popular recente - é o caso da MTG Quem Não Quer Sou Eu, do mineiro DJ Topo, com sample do sucesso de Seu Jorge de mesmo nome.

O também mineiro DJ Luan Gomes é outro expoente do MTG. Ele pegou um verso da música Cabide, de Mart’nália, e transformou no MTG Quero ver se você tem atitude. A mistura de samba e funk deu liga e se tornou uma das faixas mais ouvidas do País no Spotify.

Mulú foi outro expoente dos MTGs com sua versão para a música Chihiro, da Billie Eilish. O produtor procurou a equipe da artista para licenciar a música. Como resposta, ouviu que não havia interesse em remixes (notícia ruim), mas que poderiam abrir uma brecha se fosse um cover (notícia boa). “Então, chamei a Duda Beat para cantar e trazer mais brasilidade para a faixa”, conta.

Funk gótico

Em paralelo às MTGs, uma nova geração desponta no funk mineiro.

Esses DJs e MCs carregam a territorialidade em seus nomes e trabalham em coletivo: WS da Igrejinha, por exemplo, é referência à região do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, onde ele cresceu e onde está o maior baile funk de Minas Gerais, o Baile da Serra. Anderson do Paraiso, como o nome intui, veio do Paraíso, na zona Leste da capital mineira, e se destaca pelas batidas lentas do downtempo com clima e estética “dark”.

O álbum do DJ, Queridão, lançado em dezembro, foi destaque no site norte-americano Pitchfork: “Anderson desenvolveu uma abordagem misteriosa e minimalista do funk brasileiro que está a um mundo de distância das melodias pesadas do Rio ou São Paulo”, classifica a resenha.

Jeito lentinho

Em uma coisa, os entrevistados concordam: o funk mineiro é diferente - seja pela forma como como a própria cena se moldou, “pelas beiradas”, seja pelo jeito “lentinho” de suas batidas.

Para Marlboro, a música como movimento bebe diretamente da cultura de onde advém.

O funk é um camaleão. Não é um movimento de imposição, mas de adaptação. Ele se adapta às características, às linguagens, aos costumes de cada região onde se faz presente

DJ Malrboro

Os beats melódicos do funk mineiro convidam para dançar e cantar junto, como as MTGs, ou para sentir cada textura sonora, como faz DJ Anderson do Paraíso.

A presença das mulheres ao longo dos anos também se faz crescente, seguindo exemplos de MC Nahara, MC Mika e MC Morena, cantando letras que evocam a liberdade sexual.

Música eletrônica popular brasileira

Para Vhoor, a nova onda do funk, ao se aliar à MPB, amplia diálogos e rompe preconceitos, além de apresentar a uma geração mais nova a música popular brasileira.

“Moro na Serra [zona sul de Belo Horizonte] e acho muito legal ver um Seu Jorge tocando e uma galera mais jovem curtindo”, comenta.

Ele destaca ainda que cada vez mais MCs e produtores saem de bairros periféricos, fazendo música sem oportunidade de estudos na área, em uma cena que, afinal, nasceu nas próprias comunidades e sempre se fez à margem de incentivos. “É uma galera cada vez mais nova que quer entender de softwares musicais e trabalhar com música. São esses produtores que hoje fazem as MTGs, que usam a MPB como base para fazer suas batidas”, explica.

O funk teve dificuldades em ser aceito como música popular brasileira

Vhoor, produtor e DJ

O produtor joga luz para outro aspecto: o que chama a atenção no funk mineiro é a persistência de fazer uma cena acontecer, como quem finalmente colhe o que planta.

“Pra mim, a diferença do funk mineiro mora na delicadeza como ele é trabalhado. É olhar esses ritmos feitos em SP e Rio, absorvê-los e fazer de um jeito mais delicado, respeitando o tempo de maturação”, finaliza.

Vhoor: das quadras da Vilarinho, na zona norte de Belo Horizonte, para as pistas de Londres Foto: Divulgação Vhoor / Cebo Luthuli

Na temporada de Malhação 2012, a personagem-sensação Fatinha, vivida por Juliana Paiva, desfilava pelo colégio com um shortinho curto e um cropped ao som do hit Piriguete. Quem canta é MC Papo, expoente do funk mineiro que despontou para o País com um... reggaeton.

A música tinha cheiro de novidade e virou hit, mas ainda não dava pistas que pudesse classificar o funk do estado como gênero musical - ao menos para quem via de fora.

A verdade é que, a despeito do sucesso recente, nas novelas ou nas redes com as MTGs, o funk mineiro tem história - e ela remonta aos anos 1980, em festas da zona norte de Belo Horizonte. Impulsionados pelo movimento Black Rio, os moradores da região fundamentaram os próprios bailes.

Não demoraria para o funk despontar de norte a sul em Belo Horizonte - respectivamente, nos bairros Vilarinho, onde fica a quadra que deu início a tudo, e Serra, onde o funk se consolida nos bailes ao ar livre, antes de se espalhar pela região metropolitana.

Nascente

Mas foi nos anos 1990 que a cena belo-horizontina teve uma virada. “Foi quando surgiram os mestres de cerimônia (MC’S). Eles cantavam músicas autorais, com letras em português, em vez de apenas reproduzirem as canções da música norte-americana”, explica Bruna Vilela, mestre em Comunicação pela UFPE e pesquisadora do funk de Belo Horizonte.

Até DJ Marlboro, nome fundamental do funk nacional, teve envolvimento direto para fazer a cena mineira acontecer. Em 1989, ele aglutinou talentos regionais na coletânea Funk Brasil, na contramão do que sugeria a gravadora . Ninguém via futuro no funk. “Muito menos no funk feito fora do Rio de Janeiro”, ressalta DJ Malboro, em entrevista ao Estadão.

“A gravadora não gostou do nome [da coletânea]”, relembra. “Eles queriam ‘Funk Carioca’. Insisti pelo ‘Funk Brasil’ pois sempre acreditei que deveria ser um movimento nacional”, ressalta.

A despeito dos pessimistas, o primeiro volume chamou a atenção de grupos de funk que começavam a enviar fitas para o DJ. A coletânea rendeu: vieram os volumes 2 e 3, incluindo os mineiros Protocolo de Subúrbio e União Rap Funk, formados inicialmente por dançarinos - inclusive, o “passinho” (movimentos de improviso em que o baile todo dança) foi fundamentador do funk mineiro.

Desse movimento saiu DJ Joseph, um daqueles primeiros MCs que experimentou cantar as músicas próprias no baile, ressalta Bruna.

'Funk Brasil', com curadoria de DJ Marlboro, apresentava novos funks pelo País Foto: Reprodução Polydor / DJ Marlboro

Chico Mineiro da Vilarinho

Com o boom nacional do funk impulsionado por DJ Marlboro, o miami bass norte-americano e seu “filho” brasileiro, o funk melody carioca, fizeram a cabeça dos mineiros. Em BH, essa mistura ganhou o nome de funk consciente, por conta das letras que apontavam críticas sociais e até alguma religiosidade.

Em Fé na Vitória, de MC Dodô, a letra mostra o arrependimento pelos crimes cometidos e passa a mensagem de esperança e redenção: “Falhas, todos cometemos, tristeza e alegria nós vivemos/ Perdi toda família, tive que fazer a minha correria/ Hoje sinto e lamento, já passei tanto tempo aqui dentro”.

O funk consciente tem um padrão narrativo distinto, com muitos versos, além de emularem verdadeiras jornadas do herói com histórias de superação - pode-se fazer um paralelo com as modas de viola, tal qual Chico Mineiro, de Tonico e Tinoco, que narram peripécias e tragédias típicas da vida do campo, muito marcadas na cultura do interior do estado.

“Minha geração cresceu ouvindo funk consciente”, conta o DJ e produtor Vhoor ao Estadão. Aos 25 anos, hoje arrasta públicos para festas dos Estados Unidos e da Europa. A carreira existia há mais de uma década, mas o reconhecimento veio em 2021, com O Baile, parceria dele com FBC.

O álbum, que, de certa forma, celebra as raízes do funk de BH, foi mixado e masterizado por Spider, nome influente do gênero. “Acho que o funk consciente pegou em BH por ser uma cidade política, e ter um movimento de rap e hip hop muito forte”, comenta.

Quando essa onda passou, MCs e produtores foram influenciados pelo funk ostentação paulistano, passando pelos beats minimalistas - que reverberam hoje - até desaguar nas montagens (ou MTGs) que hoje o Brasil conhece.

“O funk de BH abusa de efeitos sonoros como o delay e o reverb, dando uma sensação atmosférica, espacial e um pouco psicodélica às músicas”, explica Bruna Vilela.

‘Tá estourado’

Nos anos 2000, as ruas da região metropolitana foram tomadas pelo funk automotivo, em que as batidas eram feitas para ecoar em toda a comunidade nas enormes caixas de som instaladas em carros. A estética “suja” dessa sonoridade dá o tom saturado das batidas.

A música Radinho de Pilha (pronuncia-se “radim”, em bom mineirês), de MC Papo com as meninas da Blast Girl, ilustra essa fissura pelo som estourado: “Você não vai me conquistar com seu radinho de pilha / Eu quero um som que abala/ um carro de corrida.”

Com o tempo, o funk de Minas Gerais ganha identidade própria. Refletindo os costumes locais, vai desde uma influência cristã - que é cultural no estado das igrejas barrocas - às letras sexuais mais explícitas.

A música é feita por jovens em contato com referências globais por meio das redes sociais, com mais acesso a softwares e vontade de misturar diferentes beats para ver até onde podiam chegar. E viram que dava para chegar longe.

Hit nacional

Assim como Papo, outros MCs furaram a bolha regional nos anos 2010. Alguns uniram forças com músicos de outros estados. É o caso de Mc L da Vinte, que se juntou ao paulista MC Gury em Parado no Bailão, funk de beat “lentinho” que virou hit do carnaval de 2018.

A faixa foi produzida por Delano, que influenciou o funk mineiro com referências que iam de Led Zeppelin ao uso do agogôs dos terreiros para marcar o compasso. É dele também os hits Na ponta ela fica, de 2015, e Devagarinho - que pode remeter ao “jeitinho” do funk mineiro, com batidas lentas e envolventes.

MC Rick foi outro nome que influenciou uma geração mais nova. Entre outros hits locais, mandou o novo hino da cidade para uma geração: BH é quem?/BH é nós.

Menos é mais

Foi impulsionado pelo minimalismo que o funk de BH e da região metropolitana começou a estabelecer seu lugar no mainstream brasileiro. E aparece de várias formas: nos memes, nos vídeos de TikTok, nas paradas de streaming.

Basta lembrar do ano passado, quando as redes sociais foram tomadas por vídeos editados que mostravam Chico Moedas, ex-namorado de Luísa Sonza, ao som de Aquariano Nato, do carioca radicado em BH MC Saci, com DJ Sammer e MC Pretchako. Ou dos últimos meses, quando as MTGs, atribuídas diretamente ao funk de BH, se espalharam pelas redes.

Vhoor também atribui a consolidação do funk mineiro ao inchaço na cena de funk carioca no “tamborzão”, a partir dos anos 2010. Foi quando produtores começaram a migrar para BH para experimentar sonoridades e despontar novos talentos.

DJ, produtor e pesquisador Vhoor Foto: Divulgação Vhoor/ Oranduu

Baile em Miami

Vhoor – nome artístico de Victor Hugo - cresceu na avenida Vilarinho, próximo à quadra que sediava festas de black e soul nos anos 1980 e, mais tarde, de funk consciente. Viver a infância nos anos 2010 possibilitou o contato com primeiros experimentos na montagem e alguma revolução tecnológica que facilitou a produção musical.

Para ele, o funk foi oportunidade de crescimento profissional e pessoal. “Hoje, eu vivo de funk”, orgulha-se.

Vhoor conversa com a reportagem enquanto está em mais uma turnê pelos Estados Unidos. Ele conta que está tentando conhecer as cidades, apesar do tempo corrido. “Pude ir em lojas de discos e lugares que sempre sonhei em ir, porque, querendo ou não, cresci ouvindo música americana, né?”, comenta.

Agora, ele segue o contrafluxo levando a música de Belo Horizonte para o rádio e baladas internacionais - e bota todo mundo para dançar. Ao contrário de como se fundamentou o funk no Brasil, em meio a preconceitos e tentativas de criminalização, lá fora o funk é considerado um expoente da música eletrônica brasileira.

O boom das MTGs

E finalmente chegamos às MTGs. Você já deve ter visto a sigla, que tomou conta do TOP 50 Brasil do Spotify. MTG é a “montagem”, a arte do “copia e cola” criativo que transforma o trecho de uma música que reside no imaginário popular em algo novo, com texturas e camadas de vozes.

O produtor carioca Mulú explica ao Estadão a relação do MTG com Minas Gerais.

A tendência de fazer montagens misturando várias músicas em cima de um beat já existia em outros lugares e voltou forte. Quando explodiu no TikTok com vozes de MPB e sertanejo, o entendimento geral foi que MTG se referia a qualquer música ou remix nesse estilo mineiro, e a sigla acabou pegando

Mulú, DJ e produtor

Experimento de Mulú com música de Billie Eilish ganhou vocais de Duda Beat, produtor carioca explica a relação entre MTG e Minas Gerais Foto: Divulgação Mulú / Glaucia Mayer

As MTGs representam um funk ao mesmo tempo barulhento e ritmado que retoma clássicos da música popular recente - é o caso da MTG Quem Não Quer Sou Eu, do mineiro DJ Topo, com sample do sucesso de Seu Jorge de mesmo nome.

O também mineiro DJ Luan Gomes é outro expoente do MTG. Ele pegou um verso da música Cabide, de Mart’nália, e transformou no MTG Quero ver se você tem atitude. A mistura de samba e funk deu liga e se tornou uma das faixas mais ouvidas do País no Spotify.

Mulú foi outro expoente dos MTGs com sua versão para a música Chihiro, da Billie Eilish. O produtor procurou a equipe da artista para licenciar a música. Como resposta, ouviu que não havia interesse em remixes (notícia ruim), mas que poderiam abrir uma brecha se fosse um cover (notícia boa). “Então, chamei a Duda Beat para cantar e trazer mais brasilidade para a faixa”, conta.

Funk gótico

Em paralelo às MTGs, uma nova geração desponta no funk mineiro.

Esses DJs e MCs carregam a territorialidade em seus nomes e trabalham em coletivo: WS da Igrejinha, por exemplo, é referência à região do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, onde ele cresceu e onde está o maior baile funk de Minas Gerais, o Baile da Serra. Anderson do Paraiso, como o nome intui, veio do Paraíso, na zona Leste da capital mineira, e se destaca pelas batidas lentas do downtempo com clima e estética “dark”.

O álbum do DJ, Queridão, lançado em dezembro, foi destaque no site norte-americano Pitchfork: “Anderson desenvolveu uma abordagem misteriosa e minimalista do funk brasileiro que está a um mundo de distância das melodias pesadas do Rio ou São Paulo”, classifica a resenha.

Jeito lentinho

Em uma coisa, os entrevistados concordam: o funk mineiro é diferente - seja pela forma como como a própria cena se moldou, “pelas beiradas”, seja pelo jeito “lentinho” de suas batidas.

Para Marlboro, a música como movimento bebe diretamente da cultura de onde advém.

O funk é um camaleão. Não é um movimento de imposição, mas de adaptação. Ele se adapta às características, às linguagens, aos costumes de cada região onde se faz presente

DJ Malrboro

Os beats melódicos do funk mineiro convidam para dançar e cantar junto, como as MTGs, ou para sentir cada textura sonora, como faz DJ Anderson do Paraíso.

A presença das mulheres ao longo dos anos também se faz crescente, seguindo exemplos de MC Nahara, MC Mika e MC Morena, cantando letras que evocam a liberdade sexual.

Música eletrônica popular brasileira

Para Vhoor, a nova onda do funk, ao se aliar à MPB, amplia diálogos e rompe preconceitos, além de apresentar a uma geração mais nova a música popular brasileira.

“Moro na Serra [zona sul de Belo Horizonte] e acho muito legal ver um Seu Jorge tocando e uma galera mais jovem curtindo”, comenta.

Ele destaca ainda que cada vez mais MCs e produtores saem de bairros periféricos, fazendo música sem oportunidade de estudos na área, em uma cena que, afinal, nasceu nas próprias comunidades e sempre se fez à margem de incentivos. “É uma galera cada vez mais nova que quer entender de softwares musicais e trabalhar com música. São esses produtores que hoje fazem as MTGs, que usam a MPB como base para fazer suas batidas”, explica.

O funk teve dificuldades em ser aceito como música popular brasileira

Vhoor, produtor e DJ

O produtor joga luz para outro aspecto: o que chama a atenção no funk mineiro é a persistência de fazer uma cena acontecer, como quem finalmente colhe o que planta.

“Pra mim, a diferença do funk mineiro mora na delicadeza como ele é trabalhado. É olhar esses ritmos feitos em SP e Rio, absorvê-los e fazer de um jeito mais delicado, respeitando o tempo de maturação”, finaliza.

Vhoor: das quadras da Vilarinho, na zona norte de Belo Horizonte, para as pistas de Londres Foto: Divulgação Vhoor / Cebo Luthuli

Na temporada de Malhação 2012, a personagem-sensação Fatinha, vivida por Juliana Paiva, desfilava pelo colégio com um shortinho curto e um cropped ao som do hit Piriguete. Quem canta é MC Papo, expoente do funk mineiro que despontou para o País com um... reggaeton.

A música tinha cheiro de novidade e virou hit, mas ainda não dava pistas que pudesse classificar o funk do estado como gênero musical - ao menos para quem via de fora.

A verdade é que, a despeito do sucesso recente, nas novelas ou nas redes com as MTGs, o funk mineiro tem história - e ela remonta aos anos 1980, em festas da zona norte de Belo Horizonte. Impulsionados pelo movimento Black Rio, os moradores da região fundamentaram os próprios bailes.

Não demoraria para o funk despontar de norte a sul em Belo Horizonte - respectivamente, nos bairros Vilarinho, onde fica a quadra que deu início a tudo, e Serra, onde o funk se consolida nos bailes ao ar livre, antes de se espalhar pela região metropolitana.

Nascente

Mas foi nos anos 1990 que a cena belo-horizontina teve uma virada. “Foi quando surgiram os mestres de cerimônia (MC’S). Eles cantavam músicas autorais, com letras em português, em vez de apenas reproduzirem as canções da música norte-americana”, explica Bruna Vilela, mestre em Comunicação pela UFPE e pesquisadora do funk de Belo Horizonte.

Até DJ Marlboro, nome fundamental do funk nacional, teve envolvimento direto para fazer a cena mineira acontecer. Em 1989, ele aglutinou talentos regionais na coletânea Funk Brasil, na contramão do que sugeria a gravadora . Ninguém via futuro no funk. “Muito menos no funk feito fora do Rio de Janeiro”, ressalta DJ Malboro, em entrevista ao Estadão.

“A gravadora não gostou do nome [da coletânea]”, relembra. “Eles queriam ‘Funk Carioca’. Insisti pelo ‘Funk Brasil’ pois sempre acreditei que deveria ser um movimento nacional”, ressalta.

A despeito dos pessimistas, o primeiro volume chamou a atenção de grupos de funk que começavam a enviar fitas para o DJ. A coletânea rendeu: vieram os volumes 2 e 3, incluindo os mineiros Protocolo de Subúrbio e União Rap Funk, formados inicialmente por dançarinos - inclusive, o “passinho” (movimentos de improviso em que o baile todo dança) foi fundamentador do funk mineiro.

Desse movimento saiu DJ Joseph, um daqueles primeiros MCs que experimentou cantar as músicas próprias no baile, ressalta Bruna.

'Funk Brasil', com curadoria de DJ Marlboro, apresentava novos funks pelo País Foto: Reprodução Polydor / DJ Marlboro

Chico Mineiro da Vilarinho

Com o boom nacional do funk impulsionado por DJ Marlboro, o miami bass norte-americano e seu “filho” brasileiro, o funk melody carioca, fizeram a cabeça dos mineiros. Em BH, essa mistura ganhou o nome de funk consciente, por conta das letras que apontavam críticas sociais e até alguma religiosidade.

Em Fé na Vitória, de MC Dodô, a letra mostra o arrependimento pelos crimes cometidos e passa a mensagem de esperança e redenção: “Falhas, todos cometemos, tristeza e alegria nós vivemos/ Perdi toda família, tive que fazer a minha correria/ Hoje sinto e lamento, já passei tanto tempo aqui dentro”.

O funk consciente tem um padrão narrativo distinto, com muitos versos, além de emularem verdadeiras jornadas do herói com histórias de superação - pode-se fazer um paralelo com as modas de viola, tal qual Chico Mineiro, de Tonico e Tinoco, que narram peripécias e tragédias típicas da vida do campo, muito marcadas na cultura do interior do estado.

“Minha geração cresceu ouvindo funk consciente”, conta o DJ e produtor Vhoor ao Estadão. Aos 25 anos, hoje arrasta públicos para festas dos Estados Unidos e da Europa. A carreira existia há mais de uma década, mas o reconhecimento veio em 2021, com O Baile, parceria dele com FBC.

O álbum, que, de certa forma, celebra as raízes do funk de BH, foi mixado e masterizado por Spider, nome influente do gênero. “Acho que o funk consciente pegou em BH por ser uma cidade política, e ter um movimento de rap e hip hop muito forte”, comenta.

Quando essa onda passou, MCs e produtores foram influenciados pelo funk ostentação paulistano, passando pelos beats minimalistas - que reverberam hoje - até desaguar nas montagens (ou MTGs) que hoje o Brasil conhece.

“O funk de BH abusa de efeitos sonoros como o delay e o reverb, dando uma sensação atmosférica, espacial e um pouco psicodélica às músicas”, explica Bruna Vilela.

‘Tá estourado’

Nos anos 2000, as ruas da região metropolitana foram tomadas pelo funk automotivo, em que as batidas eram feitas para ecoar em toda a comunidade nas enormes caixas de som instaladas em carros. A estética “suja” dessa sonoridade dá o tom saturado das batidas.

A música Radinho de Pilha (pronuncia-se “radim”, em bom mineirês), de MC Papo com as meninas da Blast Girl, ilustra essa fissura pelo som estourado: “Você não vai me conquistar com seu radinho de pilha / Eu quero um som que abala/ um carro de corrida.”

Com o tempo, o funk de Minas Gerais ganha identidade própria. Refletindo os costumes locais, vai desde uma influência cristã - que é cultural no estado das igrejas barrocas - às letras sexuais mais explícitas.

A música é feita por jovens em contato com referências globais por meio das redes sociais, com mais acesso a softwares e vontade de misturar diferentes beats para ver até onde podiam chegar. E viram que dava para chegar longe.

Hit nacional

Assim como Papo, outros MCs furaram a bolha regional nos anos 2010. Alguns uniram forças com músicos de outros estados. É o caso de Mc L da Vinte, que se juntou ao paulista MC Gury em Parado no Bailão, funk de beat “lentinho” que virou hit do carnaval de 2018.

A faixa foi produzida por Delano, que influenciou o funk mineiro com referências que iam de Led Zeppelin ao uso do agogôs dos terreiros para marcar o compasso. É dele também os hits Na ponta ela fica, de 2015, e Devagarinho - que pode remeter ao “jeitinho” do funk mineiro, com batidas lentas e envolventes.

MC Rick foi outro nome que influenciou uma geração mais nova. Entre outros hits locais, mandou o novo hino da cidade para uma geração: BH é quem?/BH é nós.

Menos é mais

Foi impulsionado pelo minimalismo que o funk de BH e da região metropolitana começou a estabelecer seu lugar no mainstream brasileiro. E aparece de várias formas: nos memes, nos vídeos de TikTok, nas paradas de streaming.

Basta lembrar do ano passado, quando as redes sociais foram tomadas por vídeos editados que mostravam Chico Moedas, ex-namorado de Luísa Sonza, ao som de Aquariano Nato, do carioca radicado em BH MC Saci, com DJ Sammer e MC Pretchako. Ou dos últimos meses, quando as MTGs, atribuídas diretamente ao funk de BH, se espalharam pelas redes.

Vhoor também atribui a consolidação do funk mineiro ao inchaço na cena de funk carioca no “tamborzão”, a partir dos anos 2010. Foi quando produtores começaram a migrar para BH para experimentar sonoridades e despontar novos talentos.

DJ, produtor e pesquisador Vhoor Foto: Divulgação Vhoor/ Oranduu

Baile em Miami

Vhoor – nome artístico de Victor Hugo - cresceu na avenida Vilarinho, próximo à quadra que sediava festas de black e soul nos anos 1980 e, mais tarde, de funk consciente. Viver a infância nos anos 2010 possibilitou o contato com primeiros experimentos na montagem e alguma revolução tecnológica que facilitou a produção musical.

Para ele, o funk foi oportunidade de crescimento profissional e pessoal. “Hoje, eu vivo de funk”, orgulha-se.

Vhoor conversa com a reportagem enquanto está em mais uma turnê pelos Estados Unidos. Ele conta que está tentando conhecer as cidades, apesar do tempo corrido. “Pude ir em lojas de discos e lugares que sempre sonhei em ir, porque, querendo ou não, cresci ouvindo música americana, né?”, comenta.

Agora, ele segue o contrafluxo levando a música de Belo Horizonte para o rádio e baladas internacionais - e bota todo mundo para dançar. Ao contrário de como se fundamentou o funk no Brasil, em meio a preconceitos e tentativas de criminalização, lá fora o funk é considerado um expoente da música eletrônica brasileira.

O boom das MTGs

E finalmente chegamos às MTGs. Você já deve ter visto a sigla, que tomou conta do TOP 50 Brasil do Spotify. MTG é a “montagem”, a arte do “copia e cola” criativo que transforma o trecho de uma música que reside no imaginário popular em algo novo, com texturas e camadas de vozes.

O produtor carioca Mulú explica ao Estadão a relação do MTG com Minas Gerais.

A tendência de fazer montagens misturando várias músicas em cima de um beat já existia em outros lugares e voltou forte. Quando explodiu no TikTok com vozes de MPB e sertanejo, o entendimento geral foi que MTG se referia a qualquer música ou remix nesse estilo mineiro, e a sigla acabou pegando

Mulú, DJ e produtor

Experimento de Mulú com música de Billie Eilish ganhou vocais de Duda Beat, produtor carioca explica a relação entre MTG e Minas Gerais Foto: Divulgação Mulú / Glaucia Mayer

As MTGs representam um funk ao mesmo tempo barulhento e ritmado que retoma clássicos da música popular recente - é o caso da MTG Quem Não Quer Sou Eu, do mineiro DJ Topo, com sample do sucesso de Seu Jorge de mesmo nome.

O também mineiro DJ Luan Gomes é outro expoente do MTG. Ele pegou um verso da música Cabide, de Mart’nália, e transformou no MTG Quero ver se você tem atitude. A mistura de samba e funk deu liga e se tornou uma das faixas mais ouvidas do País no Spotify.

Mulú foi outro expoente dos MTGs com sua versão para a música Chihiro, da Billie Eilish. O produtor procurou a equipe da artista para licenciar a música. Como resposta, ouviu que não havia interesse em remixes (notícia ruim), mas que poderiam abrir uma brecha se fosse um cover (notícia boa). “Então, chamei a Duda Beat para cantar e trazer mais brasilidade para a faixa”, conta.

Funk gótico

Em paralelo às MTGs, uma nova geração desponta no funk mineiro.

Esses DJs e MCs carregam a territorialidade em seus nomes e trabalham em coletivo: WS da Igrejinha, por exemplo, é referência à região do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, onde ele cresceu e onde está o maior baile funk de Minas Gerais, o Baile da Serra. Anderson do Paraiso, como o nome intui, veio do Paraíso, na zona Leste da capital mineira, e se destaca pelas batidas lentas do downtempo com clima e estética “dark”.

O álbum do DJ, Queridão, lançado em dezembro, foi destaque no site norte-americano Pitchfork: “Anderson desenvolveu uma abordagem misteriosa e minimalista do funk brasileiro que está a um mundo de distância das melodias pesadas do Rio ou São Paulo”, classifica a resenha.

Jeito lentinho

Em uma coisa, os entrevistados concordam: o funk mineiro é diferente - seja pela forma como como a própria cena se moldou, “pelas beiradas”, seja pelo jeito “lentinho” de suas batidas.

Para Marlboro, a música como movimento bebe diretamente da cultura de onde advém.

O funk é um camaleão. Não é um movimento de imposição, mas de adaptação. Ele se adapta às características, às linguagens, aos costumes de cada região onde se faz presente

DJ Malrboro

Os beats melódicos do funk mineiro convidam para dançar e cantar junto, como as MTGs, ou para sentir cada textura sonora, como faz DJ Anderson do Paraíso.

A presença das mulheres ao longo dos anos também se faz crescente, seguindo exemplos de MC Nahara, MC Mika e MC Morena, cantando letras que evocam a liberdade sexual.

Música eletrônica popular brasileira

Para Vhoor, a nova onda do funk, ao se aliar à MPB, amplia diálogos e rompe preconceitos, além de apresentar a uma geração mais nova a música popular brasileira.

“Moro na Serra [zona sul de Belo Horizonte] e acho muito legal ver um Seu Jorge tocando e uma galera mais jovem curtindo”, comenta.

Ele destaca ainda que cada vez mais MCs e produtores saem de bairros periféricos, fazendo música sem oportunidade de estudos na área, em uma cena que, afinal, nasceu nas próprias comunidades e sempre se fez à margem de incentivos. “É uma galera cada vez mais nova que quer entender de softwares musicais e trabalhar com música. São esses produtores que hoje fazem as MTGs, que usam a MPB como base para fazer suas batidas”, explica.

O funk teve dificuldades em ser aceito como música popular brasileira

Vhoor, produtor e DJ

O produtor joga luz para outro aspecto: o que chama a atenção no funk mineiro é a persistência de fazer uma cena acontecer, como quem finalmente colhe o que planta.

“Pra mim, a diferença do funk mineiro mora na delicadeza como ele é trabalhado. É olhar esses ritmos feitos em SP e Rio, absorvê-los e fazer de um jeito mais delicado, respeitando o tempo de maturação”, finaliza.

Vhoor: das quadras da Vilarinho, na zona norte de Belo Horizonte, para as pistas de Londres Foto: Divulgação Vhoor / Cebo Luthuli

Na temporada de Malhação 2012, a personagem-sensação Fatinha, vivida por Juliana Paiva, desfilava pelo colégio com um shortinho curto e um cropped ao som do hit Piriguete. Quem canta é MC Papo, expoente do funk mineiro que despontou para o País com um... reggaeton.

A música tinha cheiro de novidade e virou hit, mas ainda não dava pistas que pudesse classificar o funk do estado como gênero musical - ao menos para quem via de fora.

A verdade é que, a despeito do sucesso recente, nas novelas ou nas redes com as MTGs, o funk mineiro tem história - e ela remonta aos anos 1980, em festas da zona norte de Belo Horizonte. Impulsionados pelo movimento Black Rio, os moradores da região fundamentaram os próprios bailes.

Não demoraria para o funk despontar de norte a sul em Belo Horizonte - respectivamente, nos bairros Vilarinho, onde fica a quadra que deu início a tudo, e Serra, onde o funk se consolida nos bailes ao ar livre, antes de se espalhar pela região metropolitana.

Nascente

Mas foi nos anos 1990 que a cena belo-horizontina teve uma virada. “Foi quando surgiram os mestres de cerimônia (MC’S). Eles cantavam músicas autorais, com letras em português, em vez de apenas reproduzirem as canções da música norte-americana”, explica Bruna Vilela, mestre em Comunicação pela UFPE e pesquisadora do funk de Belo Horizonte.

Até DJ Marlboro, nome fundamental do funk nacional, teve envolvimento direto para fazer a cena mineira acontecer. Em 1989, ele aglutinou talentos regionais na coletânea Funk Brasil, na contramão do que sugeria a gravadora . Ninguém via futuro no funk. “Muito menos no funk feito fora do Rio de Janeiro”, ressalta DJ Malboro, em entrevista ao Estadão.

“A gravadora não gostou do nome [da coletânea]”, relembra. “Eles queriam ‘Funk Carioca’. Insisti pelo ‘Funk Brasil’ pois sempre acreditei que deveria ser um movimento nacional”, ressalta.

A despeito dos pessimistas, o primeiro volume chamou a atenção de grupos de funk que começavam a enviar fitas para o DJ. A coletânea rendeu: vieram os volumes 2 e 3, incluindo os mineiros Protocolo de Subúrbio e União Rap Funk, formados inicialmente por dançarinos - inclusive, o “passinho” (movimentos de improviso em que o baile todo dança) foi fundamentador do funk mineiro.

Desse movimento saiu DJ Joseph, um daqueles primeiros MCs que experimentou cantar as músicas próprias no baile, ressalta Bruna.

'Funk Brasil', com curadoria de DJ Marlboro, apresentava novos funks pelo País Foto: Reprodução Polydor / DJ Marlboro

Chico Mineiro da Vilarinho

Com o boom nacional do funk impulsionado por DJ Marlboro, o miami bass norte-americano e seu “filho” brasileiro, o funk melody carioca, fizeram a cabeça dos mineiros. Em BH, essa mistura ganhou o nome de funk consciente, por conta das letras que apontavam críticas sociais e até alguma religiosidade.

Em Fé na Vitória, de MC Dodô, a letra mostra o arrependimento pelos crimes cometidos e passa a mensagem de esperança e redenção: “Falhas, todos cometemos, tristeza e alegria nós vivemos/ Perdi toda família, tive que fazer a minha correria/ Hoje sinto e lamento, já passei tanto tempo aqui dentro”.

O funk consciente tem um padrão narrativo distinto, com muitos versos, além de emularem verdadeiras jornadas do herói com histórias de superação - pode-se fazer um paralelo com as modas de viola, tal qual Chico Mineiro, de Tonico e Tinoco, que narram peripécias e tragédias típicas da vida do campo, muito marcadas na cultura do interior do estado.

“Minha geração cresceu ouvindo funk consciente”, conta o DJ e produtor Vhoor ao Estadão. Aos 25 anos, hoje arrasta públicos para festas dos Estados Unidos e da Europa. A carreira existia há mais de uma década, mas o reconhecimento veio em 2021, com O Baile, parceria dele com FBC.

O álbum, que, de certa forma, celebra as raízes do funk de BH, foi mixado e masterizado por Spider, nome influente do gênero. “Acho que o funk consciente pegou em BH por ser uma cidade política, e ter um movimento de rap e hip hop muito forte”, comenta.

Quando essa onda passou, MCs e produtores foram influenciados pelo funk ostentação paulistano, passando pelos beats minimalistas - que reverberam hoje - até desaguar nas montagens (ou MTGs) que hoje o Brasil conhece.

“O funk de BH abusa de efeitos sonoros como o delay e o reverb, dando uma sensação atmosférica, espacial e um pouco psicodélica às músicas”, explica Bruna Vilela.

‘Tá estourado’

Nos anos 2000, as ruas da região metropolitana foram tomadas pelo funk automotivo, em que as batidas eram feitas para ecoar em toda a comunidade nas enormes caixas de som instaladas em carros. A estética “suja” dessa sonoridade dá o tom saturado das batidas.

A música Radinho de Pilha (pronuncia-se “radim”, em bom mineirês), de MC Papo com as meninas da Blast Girl, ilustra essa fissura pelo som estourado: “Você não vai me conquistar com seu radinho de pilha / Eu quero um som que abala/ um carro de corrida.”

Com o tempo, o funk de Minas Gerais ganha identidade própria. Refletindo os costumes locais, vai desde uma influência cristã - que é cultural no estado das igrejas barrocas - às letras sexuais mais explícitas.

A música é feita por jovens em contato com referências globais por meio das redes sociais, com mais acesso a softwares e vontade de misturar diferentes beats para ver até onde podiam chegar. E viram que dava para chegar longe.

Hit nacional

Assim como Papo, outros MCs furaram a bolha regional nos anos 2010. Alguns uniram forças com músicos de outros estados. É o caso de Mc L da Vinte, que se juntou ao paulista MC Gury em Parado no Bailão, funk de beat “lentinho” que virou hit do carnaval de 2018.

A faixa foi produzida por Delano, que influenciou o funk mineiro com referências que iam de Led Zeppelin ao uso do agogôs dos terreiros para marcar o compasso. É dele também os hits Na ponta ela fica, de 2015, e Devagarinho - que pode remeter ao “jeitinho” do funk mineiro, com batidas lentas e envolventes.

MC Rick foi outro nome que influenciou uma geração mais nova. Entre outros hits locais, mandou o novo hino da cidade para uma geração: BH é quem?/BH é nós.

Menos é mais

Foi impulsionado pelo minimalismo que o funk de BH e da região metropolitana começou a estabelecer seu lugar no mainstream brasileiro. E aparece de várias formas: nos memes, nos vídeos de TikTok, nas paradas de streaming.

Basta lembrar do ano passado, quando as redes sociais foram tomadas por vídeos editados que mostravam Chico Moedas, ex-namorado de Luísa Sonza, ao som de Aquariano Nato, do carioca radicado em BH MC Saci, com DJ Sammer e MC Pretchako. Ou dos últimos meses, quando as MTGs, atribuídas diretamente ao funk de BH, se espalharam pelas redes.

Vhoor também atribui a consolidação do funk mineiro ao inchaço na cena de funk carioca no “tamborzão”, a partir dos anos 2010. Foi quando produtores começaram a migrar para BH para experimentar sonoridades e despontar novos talentos.

DJ, produtor e pesquisador Vhoor Foto: Divulgação Vhoor/ Oranduu

Baile em Miami

Vhoor – nome artístico de Victor Hugo - cresceu na avenida Vilarinho, próximo à quadra que sediava festas de black e soul nos anos 1980 e, mais tarde, de funk consciente. Viver a infância nos anos 2010 possibilitou o contato com primeiros experimentos na montagem e alguma revolução tecnológica que facilitou a produção musical.

Para ele, o funk foi oportunidade de crescimento profissional e pessoal. “Hoje, eu vivo de funk”, orgulha-se.

Vhoor conversa com a reportagem enquanto está em mais uma turnê pelos Estados Unidos. Ele conta que está tentando conhecer as cidades, apesar do tempo corrido. “Pude ir em lojas de discos e lugares que sempre sonhei em ir, porque, querendo ou não, cresci ouvindo música americana, né?”, comenta.

Agora, ele segue o contrafluxo levando a música de Belo Horizonte para o rádio e baladas internacionais - e bota todo mundo para dançar. Ao contrário de como se fundamentou o funk no Brasil, em meio a preconceitos e tentativas de criminalização, lá fora o funk é considerado um expoente da música eletrônica brasileira.

O boom das MTGs

E finalmente chegamos às MTGs. Você já deve ter visto a sigla, que tomou conta do TOP 50 Brasil do Spotify. MTG é a “montagem”, a arte do “copia e cola” criativo que transforma o trecho de uma música que reside no imaginário popular em algo novo, com texturas e camadas de vozes.

O produtor carioca Mulú explica ao Estadão a relação do MTG com Minas Gerais.

A tendência de fazer montagens misturando várias músicas em cima de um beat já existia em outros lugares e voltou forte. Quando explodiu no TikTok com vozes de MPB e sertanejo, o entendimento geral foi que MTG se referia a qualquer música ou remix nesse estilo mineiro, e a sigla acabou pegando

Mulú, DJ e produtor

Experimento de Mulú com música de Billie Eilish ganhou vocais de Duda Beat, produtor carioca explica a relação entre MTG e Minas Gerais Foto: Divulgação Mulú / Glaucia Mayer

As MTGs representam um funk ao mesmo tempo barulhento e ritmado que retoma clássicos da música popular recente - é o caso da MTG Quem Não Quer Sou Eu, do mineiro DJ Topo, com sample do sucesso de Seu Jorge de mesmo nome.

O também mineiro DJ Luan Gomes é outro expoente do MTG. Ele pegou um verso da música Cabide, de Mart’nália, e transformou no MTG Quero ver se você tem atitude. A mistura de samba e funk deu liga e se tornou uma das faixas mais ouvidas do País no Spotify.

Mulú foi outro expoente dos MTGs com sua versão para a música Chihiro, da Billie Eilish. O produtor procurou a equipe da artista para licenciar a música. Como resposta, ouviu que não havia interesse em remixes (notícia ruim), mas que poderiam abrir uma brecha se fosse um cover (notícia boa). “Então, chamei a Duda Beat para cantar e trazer mais brasilidade para a faixa”, conta.

Funk gótico

Em paralelo às MTGs, uma nova geração desponta no funk mineiro.

Esses DJs e MCs carregam a territorialidade em seus nomes e trabalham em coletivo: WS da Igrejinha, por exemplo, é referência à região do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, onde ele cresceu e onde está o maior baile funk de Minas Gerais, o Baile da Serra. Anderson do Paraiso, como o nome intui, veio do Paraíso, na zona Leste da capital mineira, e se destaca pelas batidas lentas do downtempo com clima e estética “dark”.

O álbum do DJ, Queridão, lançado em dezembro, foi destaque no site norte-americano Pitchfork: “Anderson desenvolveu uma abordagem misteriosa e minimalista do funk brasileiro que está a um mundo de distância das melodias pesadas do Rio ou São Paulo”, classifica a resenha.

Jeito lentinho

Em uma coisa, os entrevistados concordam: o funk mineiro é diferente - seja pela forma como como a própria cena se moldou, “pelas beiradas”, seja pelo jeito “lentinho” de suas batidas.

Para Marlboro, a música como movimento bebe diretamente da cultura de onde advém.

O funk é um camaleão. Não é um movimento de imposição, mas de adaptação. Ele se adapta às características, às linguagens, aos costumes de cada região onde se faz presente

DJ Malrboro

Os beats melódicos do funk mineiro convidam para dançar e cantar junto, como as MTGs, ou para sentir cada textura sonora, como faz DJ Anderson do Paraíso.

A presença das mulheres ao longo dos anos também se faz crescente, seguindo exemplos de MC Nahara, MC Mika e MC Morena, cantando letras que evocam a liberdade sexual.

Música eletrônica popular brasileira

Para Vhoor, a nova onda do funk, ao se aliar à MPB, amplia diálogos e rompe preconceitos, além de apresentar a uma geração mais nova a música popular brasileira.

“Moro na Serra [zona sul de Belo Horizonte] e acho muito legal ver um Seu Jorge tocando e uma galera mais jovem curtindo”, comenta.

Ele destaca ainda que cada vez mais MCs e produtores saem de bairros periféricos, fazendo música sem oportunidade de estudos na área, em uma cena que, afinal, nasceu nas próprias comunidades e sempre se fez à margem de incentivos. “É uma galera cada vez mais nova que quer entender de softwares musicais e trabalhar com música. São esses produtores que hoje fazem as MTGs, que usam a MPB como base para fazer suas batidas”, explica.

O funk teve dificuldades em ser aceito como música popular brasileira

Vhoor, produtor e DJ

O produtor joga luz para outro aspecto: o que chama a atenção no funk mineiro é a persistência de fazer uma cena acontecer, como quem finalmente colhe o que planta.

“Pra mim, a diferença do funk mineiro mora na delicadeza como ele é trabalhado. É olhar esses ritmos feitos em SP e Rio, absorvê-los e fazer de um jeito mais delicado, respeitando o tempo de maturação”, finaliza.

Vhoor: das quadras da Vilarinho, na zona norte de Belo Horizonte, para as pistas de Londres Foto: Divulgação Vhoor / Cebo Luthuli

Na temporada de Malhação 2012, a personagem-sensação Fatinha, vivida por Juliana Paiva, desfilava pelo colégio com um shortinho curto e um cropped ao som do hit Piriguete. Quem canta é MC Papo, expoente do funk mineiro que despontou para o País com um... reggaeton.

A música tinha cheiro de novidade e virou hit, mas ainda não dava pistas que pudesse classificar o funk do estado como gênero musical - ao menos para quem via de fora.

A verdade é que, a despeito do sucesso recente, nas novelas ou nas redes com as MTGs, o funk mineiro tem história - e ela remonta aos anos 1980, em festas da zona norte de Belo Horizonte. Impulsionados pelo movimento Black Rio, os moradores da região fundamentaram os próprios bailes.

Não demoraria para o funk despontar de norte a sul em Belo Horizonte - respectivamente, nos bairros Vilarinho, onde fica a quadra que deu início a tudo, e Serra, onde o funk se consolida nos bailes ao ar livre, antes de se espalhar pela região metropolitana.

Nascente

Mas foi nos anos 1990 que a cena belo-horizontina teve uma virada. “Foi quando surgiram os mestres de cerimônia (MC’S). Eles cantavam músicas autorais, com letras em português, em vez de apenas reproduzirem as canções da música norte-americana”, explica Bruna Vilela, mestre em Comunicação pela UFPE e pesquisadora do funk de Belo Horizonte.

Até DJ Marlboro, nome fundamental do funk nacional, teve envolvimento direto para fazer a cena mineira acontecer. Em 1989, ele aglutinou talentos regionais na coletânea Funk Brasil, na contramão do que sugeria a gravadora . Ninguém via futuro no funk. “Muito menos no funk feito fora do Rio de Janeiro”, ressalta DJ Malboro, em entrevista ao Estadão.

“A gravadora não gostou do nome [da coletânea]”, relembra. “Eles queriam ‘Funk Carioca’. Insisti pelo ‘Funk Brasil’ pois sempre acreditei que deveria ser um movimento nacional”, ressalta.

A despeito dos pessimistas, o primeiro volume chamou a atenção de grupos de funk que começavam a enviar fitas para o DJ. A coletânea rendeu: vieram os volumes 2 e 3, incluindo os mineiros Protocolo de Subúrbio e União Rap Funk, formados inicialmente por dançarinos - inclusive, o “passinho” (movimentos de improviso em que o baile todo dança) foi fundamentador do funk mineiro.

Desse movimento saiu DJ Joseph, um daqueles primeiros MCs que experimentou cantar as músicas próprias no baile, ressalta Bruna.

'Funk Brasil', com curadoria de DJ Marlboro, apresentava novos funks pelo País Foto: Reprodução Polydor / DJ Marlboro

Chico Mineiro da Vilarinho

Com o boom nacional do funk impulsionado por DJ Marlboro, o miami bass norte-americano e seu “filho” brasileiro, o funk melody carioca, fizeram a cabeça dos mineiros. Em BH, essa mistura ganhou o nome de funk consciente, por conta das letras que apontavam críticas sociais e até alguma religiosidade.

Em Fé na Vitória, de MC Dodô, a letra mostra o arrependimento pelos crimes cometidos e passa a mensagem de esperança e redenção: “Falhas, todos cometemos, tristeza e alegria nós vivemos/ Perdi toda família, tive que fazer a minha correria/ Hoje sinto e lamento, já passei tanto tempo aqui dentro”.

O funk consciente tem um padrão narrativo distinto, com muitos versos, além de emularem verdadeiras jornadas do herói com histórias de superação - pode-se fazer um paralelo com as modas de viola, tal qual Chico Mineiro, de Tonico e Tinoco, que narram peripécias e tragédias típicas da vida do campo, muito marcadas na cultura do interior do estado.

“Minha geração cresceu ouvindo funk consciente”, conta o DJ e produtor Vhoor ao Estadão. Aos 25 anos, hoje arrasta públicos para festas dos Estados Unidos e da Europa. A carreira existia há mais de uma década, mas o reconhecimento veio em 2021, com O Baile, parceria dele com FBC.

O álbum, que, de certa forma, celebra as raízes do funk de BH, foi mixado e masterizado por Spider, nome influente do gênero. “Acho que o funk consciente pegou em BH por ser uma cidade política, e ter um movimento de rap e hip hop muito forte”, comenta.

Quando essa onda passou, MCs e produtores foram influenciados pelo funk ostentação paulistano, passando pelos beats minimalistas - que reverberam hoje - até desaguar nas montagens (ou MTGs) que hoje o Brasil conhece.

“O funk de BH abusa de efeitos sonoros como o delay e o reverb, dando uma sensação atmosférica, espacial e um pouco psicodélica às músicas”, explica Bruna Vilela.

‘Tá estourado’

Nos anos 2000, as ruas da região metropolitana foram tomadas pelo funk automotivo, em que as batidas eram feitas para ecoar em toda a comunidade nas enormes caixas de som instaladas em carros. A estética “suja” dessa sonoridade dá o tom saturado das batidas.

A música Radinho de Pilha (pronuncia-se “radim”, em bom mineirês), de MC Papo com as meninas da Blast Girl, ilustra essa fissura pelo som estourado: “Você não vai me conquistar com seu radinho de pilha / Eu quero um som que abala/ um carro de corrida.”

Com o tempo, o funk de Minas Gerais ganha identidade própria. Refletindo os costumes locais, vai desde uma influência cristã - que é cultural no estado das igrejas barrocas - às letras sexuais mais explícitas.

A música é feita por jovens em contato com referências globais por meio das redes sociais, com mais acesso a softwares e vontade de misturar diferentes beats para ver até onde podiam chegar. E viram que dava para chegar longe.

Hit nacional

Assim como Papo, outros MCs furaram a bolha regional nos anos 2010. Alguns uniram forças com músicos de outros estados. É o caso de Mc L da Vinte, que se juntou ao paulista MC Gury em Parado no Bailão, funk de beat “lentinho” que virou hit do carnaval de 2018.

A faixa foi produzida por Delano, que influenciou o funk mineiro com referências que iam de Led Zeppelin ao uso do agogôs dos terreiros para marcar o compasso. É dele também os hits Na ponta ela fica, de 2015, e Devagarinho - que pode remeter ao “jeitinho” do funk mineiro, com batidas lentas e envolventes.

MC Rick foi outro nome que influenciou uma geração mais nova. Entre outros hits locais, mandou o novo hino da cidade para uma geração: BH é quem?/BH é nós.

Menos é mais

Foi impulsionado pelo minimalismo que o funk de BH e da região metropolitana começou a estabelecer seu lugar no mainstream brasileiro. E aparece de várias formas: nos memes, nos vídeos de TikTok, nas paradas de streaming.

Basta lembrar do ano passado, quando as redes sociais foram tomadas por vídeos editados que mostravam Chico Moedas, ex-namorado de Luísa Sonza, ao som de Aquariano Nato, do carioca radicado em BH MC Saci, com DJ Sammer e MC Pretchako. Ou dos últimos meses, quando as MTGs, atribuídas diretamente ao funk de BH, se espalharam pelas redes.

Vhoor também atribui a consolidação do funk mineiro ao inchaço na cena de funk carioca no “tamborzão”, a partir dos anos 2010. Foi quando produtores começaram a migrar para BH para experimentar sonoridades e despontar novos talentos.

DJ, produtor e pesquisador Vhoor Foto: Divulgação Vhoor/ Oranduu

Baile em Miami

Vhoor – nome artístico de Victor Hugo - cresceu na avenida Vilarinho, próximo à quadra que sediava festas de black e soul nos anos 1980 e, mais tarde, de funk consciente. Viver a infância nos anos 2010 possibilitou o contato com primeiros experimentos na montagem e alguma revolução tecnológica que facilitou a produção musical.

Para ele, o funk foi oportunidade de crescimento profissional e pessoal. “Hoje, eu vivo de funk”, orgulha-se.

Vhoor conversa com a reportagem enquanto está em mais uma turnê pelos Estados Unidos. Ele conta que está tentando conhecer as cidades, apesar do tempo corrido. “Pude ir em lojas de discos e lugares que sempre sonhei em ir, porque, querendo ou não, cresci ouvindo música americana, né?”, comenta.

Agora, ele segue o contrafluxo levando a música de Belo Horizonte para o rádio e baladas internacionais - e bota todo mundo para dançar. Ao contrário de como se fundamentou o funk no Brasil, em meio a preconceitos e tentativas de criminalização, lá fora o funk é considerado um expoente da música eletrônica brasileira.

O boom das MTGs

E finalmente chegamos às MTGs. Você já deve ter visto a sigla, que tomou conta do TOP 50 Brasil do Spotify. MTG é a “montagem”, a arte do “copia e cola” criativo que transforma o trecho de uma música que reside no imaginário popular em algo novo, com texturas e camadas de vozes.

O produtor carioca Mulú explica ao Estadão a relação do MTG com Minas Gerais.

A tendência de fazer montagens misturando várias músicas em cima de um beat já existia em outros lugares e voltou forte. Quando explodiu no TikTok com vozes de MPB e sertanejo, o entendimento geral foi que MTG se referia a qualquer música ou remix nesse estilo mineiro, e a sigla acabou pegando

Mulú, DJ e produtor

Experimento de Mulú com música de Billie Eilish ganhou vocais de Duda Beat, produtor carioca explica a relação entre MTG e Minas Gerais Foto: Divulgação Mulú / Glaucia Mayer

As MTGs representam um funk ao mesmo tempo barulhento e ritmado que retoma clássicos da música popular recente - é o caso da MTG Quem Não Quer Sou Eu, do mineiro DJ Topo, com sample do sucesso de Seu Jorge de mesmo nome.

O também mineiro DJ Luan Gomes é outro expoente do MTG. Ele pegou um verso da música Cabide, de Mart’nália, e transformou no MTG Quero ver se você tem atitude. A mistura de samba e funk deu liga e se tornou uma das faixas mais ouvidas do País no Spotify.

Mulú foi outro expoente dos MTGs com sua versão para a música Chihiro, da Billie Eilish. O produtor procurou a equipe da artista para licenciar a música. Como resposta, ouviu que não havia interesse em remixes (notícia ruim), mas que poderiam abrir uma brecha se fosse um cover (notícia boa). “Então, chamei a Duda Beat para cantar e trazer mais brasilidade para a faixa”, conta.

Funk gótico

Em paralelo às MTGs, uma nova geração desponta no funk mineiro.

Esses DJs e MCs carregam a territorialidade em seus nomes e trabalham em coletivo: WS da Igrejinha, por exemplo, é referência à região do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, onde ele cresceu e onde está o maior baile funk de Minas Gerais, o Baile da Serra. Anderson do Paraiso, como o nome intui, veio do Paraíso, na zona Leste da capital mineira, e se destaca pelas batidas lentas do downtempo com clima e estética “dark”.

O álbum do DJ, Queridão, lançado em dezembro, foi destaque no site norte-americano Pitchfork: “Anderson desenvolveu uma abordagem misteriosa e minimalista do funk brasileiro que está a um mundo de distância das melodias pesadas do Rio ou São Paulo”, classifica a resenha.

Jeito lentinho

Em uma coisa, os entrevistados concordam: o funk mineiro é diferente - seja pela forma como como a própria cena se moldou, “pelas beiradas”, seja pelo jeito “lentinho” de suas batidas.

Para Marlboro, a música como movimento bebe diretamente da cultura de onde advém.

O funk é um camaleão. Não é um movimento de imposição, mas de adaptação. Ele se adapta às características, às linguagens, aos costumes de cada região onde se faz presente

DJ Malrboro

Os beats melódicos do funk mineiro convidam para dançar e cantar junto, como as MTGs, ou para sentir cada textura sonora, como faz DJ Anderson do Paraíso.

A presença das mulheres ao longo dos anos também se faz crescente, seguindo exemplos de MC Nahara, MC Mika e MC Morena, cantando letras que evocam a liberdade sexual.

Música eletrônica popular brasileira

Para Vhoor, a nova onda do funk, ao se aliar à MPB, amplia diálogos e rompe preconceitos, além de apresentar a uma geração mais nova a música popular brasileira.

“Moro na Serra [zona sul de Belo Horizonte] e acho muito legal ver um Seu Jorge tocando e uma galera mais jovem curtindo”, comenta.

Ele destaca ainda que cada vez mais MCs e produtores saem de bairros periféricos, fazendo música sem oportunidade de estudos na área, em uma cena que, afinal, nasceu nas próprias comunidades e sempre se fez à margem de incentivos. “É uma galera cada vez mais nova que quer entender de softwares musicais e trabalhar com música. São esses produtores que hoje fazem as MTGs, que usam a MPB como base para fazer suas batidas”, explica.

O funk teve dificuldades em ser aceito como música popular brasileira

Vhoor, produtor e DJ

O produtor joga luz para outro aspecto: o que chama a atenção no funk mineiro é a persistência de fazer uma cena acontecer, como quem finalmente colhe o que planta.

“Pra mim, a diferença do funk mineiro mora na delicadeza como ele é trabalhado. É olhar esses ritmos feitos em SP e Rio, absorvê-los e fazer de um jeito mais delicado, respeitando o tempo de maturação”, finaliza.

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