“Agora vou cantar para ‘voceizis’ o Samba do Arnesto”, diz Adoniran Barbosa (1910-1982) em apresentação no Sesc Consolação, em 1980 . “Pera, pera”, pede o compositor, assim que o conjunto Talismã dá os primeiros acordes da famosa canção. “Meu mel, meu mel...”, grita Adoniran, arrancando risadas da plateia, ao revelar o motivo da pausa – um gole em sua bebida.
Tudo isso está no álbum Adoniran Barbosa (Ao Vivo no Sesc 1980), quarto volume do projeto Relicário, do Selo Sesc, que chega à plataforma da instituição e nos players comerciais de música no próximo dia 5 de dezembro.
O Estadão ouviu a gravação, agora remasterizada, com exclusividade (ouça trecho abaixo). Trata-se de uma preciosidade - o Relicário já produziu outras e deve ainda revelar mais raridades da música popular brasileira nos próximos anos (leia mais abaixo). Inaugurado em 2023, o projeto já trouxe registros de shows de João Gilberto, Zélia Duncan e João Bosco.
Adoniran, gênio paulista
Adoniran, figura única no samba, construiu um repertório peculiar em sua forma poética. Sua matéria prima eram os edifícios antigos, baixos de viadutos, malocas, cortiços e seus moradores. Foi a forma que ele encontrou para denunciar as injustiças sociais – apesar da comicidade contida em seus versos. Um cronista de seu tempo.
Até mesmo o sotaque meio ‘italianado’ – quase em extinção em bairros como Brás, Mooca e Bixiga – está preservado na voz rouca de Adoniran que ressurge de forma brilhante nas onze faixas do álbum.
Da triste Eu Já Fui Uma Brasa – com letra que constata que seu tempo, de certa forma, já havia passado - , à quase marchinha politicamente incorreta Vai da Valsa, a qual ele classifica de “muito importante”, Adoniran atravessa o tempo e fascina a quem vai ouvi-lo agora, mais de 40 anos depois. Em certos momentos, ele mesmo não se aguenta. Ri entre os versos. A plateia, que lotava o extinto Teatro Pixinguinha, delira.
Em Trem das Onze, sua canção mais famosa, ele se despede do público. “Trem das Onze e tchau”, diz. Adoniran deixa que o público e o grupo Talismã, que o acompanha, cantem os versos do samba. O compositor morreria um ano e meio depois.
“É provavelmente um dos últimos shows dele que foram gravados”, diz Wagner Palazzi, gerente do Centro de Produção Audiovisual do Sesc SP, departamento responsável pelo Relicário.
Wagner Palazzi
A ressalva de Palazzi é justificável para quem comparar esse registro com o que deu origem ao álbum João Gilberto (Ao Vivo no Sesc 1998), por exemplo. Ainda assim, Adoniran Barbosa (Ao Vivo no Sesc 1980) se mostra sonoramente mais sedutor – graças ao avanço da tecnologia – do que o disco Adoniran Barbosa Ao Vivo (2013), que traz um som sem brilho e bastante confuso.
O show de lançamento do álbum ocorrerá no dia 12 de dezembro, no recém-inaugurado Sesc 14 Bis, ali pertinho do Bixiga, área que Adoniran cantava em verso e prosa. A festa para o poeta da cidade será comandada por Marisa Orth e pelo músico Wandi Doratiotto.
Dona Ivone Lara, Nana Caymmi e Paulinho Moura na mira
Parecia improvável que algo inédito de João Gilberto chegaria aos ouvidos de seus fãs nos dias de hoje - sobretudo diante do imbróglio judicial a respeito da obra do cantor baiano nos últimos 30 anos.
O projeto Relicário conseguiu. Em um processo que começou em 2011, quando o Centro de Produção de Audiovisual do Sesc São Paulo começou a organizar as centenas de fitas que estavam armazenadas em uma sala, uma gravação de um show de João em 1998, no Sesc Vila Mariana, resultou em um álbum com 36 faixas, sendo uma inédita na voz do cantor. Segundo contou Bebel Gilberto ao Estadão, João, antes de morrer, em julho de 2019, ouviu e aprovou.
Foi um sucesso – para a demanda por lançamentos físicos atualmente. As duas mil cópias feitas em CD sumiram rapidamente das lojas das unidades e do site do Sesc. Na próxima semana, mil cópias do LP triplo começarão a ser vendidas. Com propriedade dos fonogramas, o Relicário pode comercializar até cinco mil cópias entre CDs e LPs de João. Depois disso, uma nova negociação – nem sempre fácil – poderá ser feita com os herdeiros do cantor.
Há muito material ainda a ser explorado pelo Relicário. O grosso dos registros – há fitas de rolo, cassetes e DAT - são das décadas de 1970, 1980 e da primeira metade da década de 1990. São shows que ocorreram, principalmente, nas unidades como Consolação, Vila Mariana e Pompeia. Depois disso, bandas e artistas passaram a proibir a gravação.
“Lembro quando o Medeski Martin & Wood (trio de jazz americano) se apresentou no Pompeia e, dois dias depois, a gravação estava em um site gringo. Eu imagino que a pirataria assustou os artistas. Além disso, as gravadoras começaram a lançar CDs e DVDs gravados ao vivo”, conta Palazzi, que trabalha no Sesc desde 2005.
O acervo precioso do Sesc
As fitas do arquivo do Sesc guardam, por exemplo, apresentações de bandas como Titãs, Os Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Engenheiros do Hawaii, Racionais e do cantor Paulinho da Viola (na inauguração do Cine Sesc, em 1979).
Para 2024 estão previstos três lançamentos do Relicário. Um já é certo: uma apresentação da cantora e compositora Dona Ivone Lara no Sesc Pompeia no início dos anos 1990. A lista de desejos para o próximo ano ainda inclui um show do músico Paulo Moura, em fase de produção e de liberação de direitos autorais.
O Relicário guarda outra joia: o show Resposta ao Tempo, apresentado pela cantora Nana Caymmi em 1998 no Sesc Pompeia. Trata-se de um dos espetáculos mais importantes da carreira de Nana e um dos poucos registros solos da cantora. O álbum, já masterizado, ainda não tem data para ser lançado.
O modelo do lançamento de cada um depende de negociação com o artista (ou herdeiros). Zélia Duncan, por exemplo, avaliou que tinha registros ao vivo mais significativos e, por isso, seu volume ficou restrito à plataforma digital do Sesc. João Bosco deu o aval para o registro de seu show no fim dos anos 1970 fosse disponibilizado nos players comerciais de música. Bosco, conta Palazzi, gostou muito da gravação.
De certo mesmo é que não haverá mais lançamentos físicos do Relicário – para tristeza dos colecionadores. “João Gilberto é algo fora da curva. A gravação era muito boa. Alguns registros têm valor mais histórico do que técnico ou artístico”, explica Palazzi.