Confinado com a família em Petrópolis, no Rio, Gilberto Gil, 77 anos, vive entre o “sufoco em comoção e lágrimas” pelas vítimas do novo coronavírus e as palavras de Caetano: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. Gil responde ao Estado, refletindo dias que parecem fazer valer muitas de suas canções. “Não só os velhos morrerão. Sei que é tudo muito difícil, mas essa é a essência do trágico.”
Vivemos em um mundo de isolamento, medo, agonia. Como você percebe esse momento? O caráter ameaçador que essa pandemia tem resulta num sentimento de temor e incerteza. Como se fôssemos subitamente ameaçados pela possibilidade de choque com um grande asteroide: o fantasma da destruição não só das nossas vidas individuais mas da vida do planeta. As pessoas se indagam se, de fato, estamos diante de algo dessa dimensão. Então, podemos imaginar a carga de agonia que isso traz. Algo que extrapola o rol das “pequenas agonias de todo dia” com que já convivemos. Maior, mais total, mais final.
Com vídeos diários, os artistas podem estar criando uma relação com seu público que se perpetue na pós-pandemia? Em todas as situações-limite em que a solidariedade parece ser um apelo compulsório (esse é o caso, agora) pensamos se não deveria ser assim o tempo todo. E acho que, de fato, avançamos um pouco a cada desastre, a cada catástrofe. No entanto, nunca chegamos a alcançar a redenção total. Não sei porque é assim, mas é assim. Acho que esse grande surto de solidariedade e compaixão de hoje depositará, mais uma vez, seus resíduos positivos no amanhã.
Gil, você pensa a vida, a morte e seus mistérios desde que tudo começou, desde seu primeiro disco. Como anda agora esse espírito? Imaginou um dia passar por algo parecido? “Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”, diz o verso da canção. Meu coração tem estado sempre pronto (ao menos, sempre procurado estar pronto) para o que der e vier. Ou seja, na meditação sobre a vida há sempre um lugar para o tudo ou nada. Penso que, ainda que não seja fácil, é necessário esperar pelo que quer que seja. Caetano: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.
Ainda querendo saber do Gil mais profundo, você está triste, agoniado, tranquilo, confiante? Acredita que podemos sair desse momento de alguma forma melhor do que entramos? São todas essas coisas ao mesmo tempo. Triste pelo sofrimento, o flagelo, a agonia dos velhinhos morrendo sufocados. A agonia deles é também minha; eu também sufoco em comoção e lágrimas. Tranquilo e confiante? Sim, na medida do possível. Ao testemunhar o esforço hercúleo dos médicos, enfermeiros, trabalhadores do sistema de saúde, especialistas e cientistas, políticos e gestores públicos, todos os que continuam trabalhando, expostos a todos os riscos, para garantir nosso alimento e nosso transporte, nossa luz e nossa água. Tanta gente fazendo tudo que é possível para assegurar um futuro. Tenho me emocionado muito com as imagens, as palavras, os gestos de tantos, aqui e ao redor do mundo, buscando estender ao máximo essa rede solidária de amor e sacrifício. De uma certa forma, fortalecendo nossa crença na humanidade e no seu sonho de uma verdadeira civilização. Certamente, sairemos dessa um pouco mais instruídos, pelo menos.
Você consegue compor ou tocar violão por esses dias? Eu li uma reportagem sobre Guilherme Arantes, emboscado pela epidemia, numa pequena cidade da Espanha, improvisando ao piano, horas e horas por dia, mas sem vontade de compor. Ele acredita que qualquer canção agora soaria superficial. Compreendi o seu impasse. Eu também tenho a impressão de que não conseguiria compor nada satisfatório neste momento, tal o grau de indefinição do caminho existencial e o sequestro absoluto da atenção e do interesse por tudo que diz respeito à pandemia, ao pandemônio. Peço ao deus em mim que sintonize com acurácia o deus nos outros e que isso construa a fé que precisamos.
Antes que o vírus revirasse tudo, estávamos divididos em um mundo de extremos. Negros ou racistas, LGBTs ou homofóbicos, ricos ou pobres, lulistas ou bolsonaristas, terraplanistas ou criacionistas, esquerdistas ou direitistas. Teria a tragédia força para refundar a essência das pessoas? Ou seria otimismo demais? Seria otimismo demais. Continuamos e continuaremos divididos. A ordem vai se estabelecendo como flutuação do caos, como sempre acontece, e, assim, estabelecendo novos equilíbrios entre as polaridades. Os homens de boa vontade continuarão sua caminhada ao lado da má vontade dos outros. Se o futuro humano nos reserva uma nova singularidade que nos reconcilie definitivamente com o restante da natureza e nos garanta paz universal duradoura, veremos. Por enquanto, vamos garantindo que o nosso computador corrija, cada vez mais automaticamente, os nossos erros de digitação para um texto cada vez mais limpo.
Como vai sua relação com a música? Ainda lapida ideias até encontrar o brilho das pérolas ou já prefere a primeira inspiração? Anda cada vez mais vaga. Vaga das ondas do mar das incertezas e das imprecisões. Um dia, uma canção velha que se renova ao sabor de uma nova maneira de interpretá-la; outro dia uma canção nova que “ainda não é mesmo velha” e ainda não pode ser rainha; outro dia querendo achar a tal “pérola”; ou registrando a tal “primeira inspiração” em sua irredutível brutalidade de pedra sem lapidação.
Estamos mais ou menos assim: um ministro da saúde diz que temos de nos confinar para amenizar a tragédia e um presidente sai à rua para mostrar que a economia não pode parar. Em sua opinião, que governo seguir? Devemos seguir o fio tênue da intuição ancorada em nossa capacidade de obter e processar conhecimento. Estamos sendo abastecidos de muita informação relevante e confiável e de muito lixo tóxico. Temos os exemplos factuais da trágica realidade da pandemia mundo afora. Temos escolhas a fazer em função do nosso saber e da nossa confiança. Um tanto de ciência, um tanto de fé. Um tanto de esperança, um tanto de ceticismo. Devemos considerar que o presidente possa eventualmente estar certo e esperar que ele seja razoável e leve em conta as evidências; que ele entre em sintonia fina com a inevitável condição excepcional do momento e tenha paciência.
Bolsonaro já disse à Nação que não é preciso ter pânico porque os mais afetados são os idosos, como você, que devem ficar isolados da família para que as pessoas voltem ao trabalho. Alguma chance de dar certo? O presidente tem se mostrado alinhado com a chamada estratégia do “isolamento vertical”. Os técnicos da saúde em diálogo com os gestores da economia vêm buscando encontrar a melhor calibragem nessa conciliação. Quer dizer: isolar os idosos e outros grupos de risco em confinamento que lhes garanta tratamento, caso necessário, e liberar os outros grupos para a circulação e o trabalho, já que correm menos riscos. A sustentabilidade dessa política requer tempo e aí está a dificuldade: os prazos. Para que se fortaleça o sistema médico-hospitalar, a obtenção dos remédios, o controle estatístico da pandemia e se garanta, ao mesmo tempo, a volta segura ao trabalho. É um jogo sutil que requer calma, paciência e confiança. No estágio atual ainda é muito arriscado garantir aos mais jovens uma certa promiscuidade imunológica. Não só os velhos morrerão. Sei que é tudo muito difícil mas essa é a essência do trágico.
Alguma música sua reflete esse momento com mais força? Talvez em A Novidade a gente tenha o diálogo tenso entre os valores espirituais e as necessidades materias de agora. A guerra entre o poeta e o esfomeado.
Deixamos de falar sobre isso por motivos de forças bem maiores, mas estamos com uma ministra da Cultura do meio artístico, como você foi. Regina Duarte. Qual sua expectativa com Regina para que tenhamos de volta uma estrutura revigorada em seus mecanismos quando tudo isso passar? O tempo é que vai dizer. E eu continuo confiando no poder de alcance da beleza do tempo e no milagre da vida.