Gilberto Gil já apareceu de surpresa de pijama na live de Teresa Cristina, e a emocionou cantando Estrela. Nesta sexta, 19, participou do programa Amanhãs Aqui e Agora, do Museu do Amanhã no YouTube. E neste sábado, 20, às 20h, Gil terá finalmente a própria live, a sua primeira, junto com a cantora Iza, sensação da atual cena pop no País. Influenciada pela obra de Gil e de outros nomes da MPB, Iza já havia se encontrado com o músico em palcos, mas esta é a primeira vez que eles farão, lado a lado, um show completo, que será exibido ao vivo no canal da Mastercard Brasil no YouTube. Os dois e a equipe que os acompanhará vão seguir os protocolos de segurança recomendados – todos, inclusive, já passaram por testes para covid-19. Serão arrecadadas doações no combate à fome que serão revertidas para a ONG Ação da Cidadania.
A ideia desse encontro musical partiu do diretor artístico Zé Ricardo. “Recebi do Tom Gil (diretor de negócios da agência W/McCann e sem parentesco com o compositor e cantor) o desafio de criar um encontro que não tivesse preço. Tenho revisitado a obra do Gil e ela me veio logo à cabeça”, conta Zé Ricardo. O repertório foi pensado por ele, Gil e Iza. Mas prevaleceram as escolhas da cantora, conta o músico. “Iza conhece muito do meu repertório, e aí vamos compartilhar essas canções que ela conhece. Sugeri uma coisa ou outra fora do que ela tinha proposto”, diz Gil, ao Estadão, por telefone, de sua casa em Araras, região serrana do Rio, onde está confinado – e será realizada a live. “Tudo o que ela propôs são coisas que eu já venho cantando: A Paz, Se Eu Quiser Falar com Deus, Andar Com Fé, Vamos Fugir.”
Se foi pressionado pelos fãs a fazer uma live? Gil diverte-se com a pergunta. “Não sei (risos), há, sim, um interesse muito difundido de que os artistas agora se aproveitem dessa nova modalidade, muito adequada ao isolamento de todos, tanto nosso, dos artistas, quanto do público. Também pela pressão natural do trabalho, que ficou muito prejudicado nas suas formas convencionais, com as aglomerações impedidas”, pondera. “E há ainda a grande curiosidade pela exploração desse novo formato do ponto de vista tecnológico. Há vários experimentos, isso tudo está provocando muita curiosidade. Então, o que você chama de pressão do público para que eu fizesse (a live) é uma pressão geral, da situação geral.”
No próximo dia 26, quando completará 78 anos, o cantor e compositor vai apresentar outra live, embalada pelos festejos de São João, que foram cancelados no Nordeste. “Seremos eu e mais cinco músicos, todos também já foram testados. Estamos todos dentro do procedimento do padrão da quarentena.”
Os cuidados foram redobrados na gravação de um especial que Gil fez para a estatal francesa TV5Monde, a convite da emissora, também em sua casa em Araras, no sábado passado, por contar com mais pessoas envolvidas nos bastidores. Com o cancelamento de shows e festivais de verão na Europa, o programa tem espaço reservado na grade do canal em julho. Para a gravação, Gil contou com a participação dos filhos Nara, Bem e José e a neta Flor. “Veio toda uma equipe de lá, diretores, técnicos de luz, de som e tudo. Ficaram 15 dias de quarentena, um deles inclusive testou positivo e não pôde vir, ficou preso no Rio.”
Grande parte do repertório contou com canções de Gil. Ele cantou novamente Volare com Flor – os dois já haviam gravado um vídeo da canção em homenagem à Itália, que enfrentava o auge da pandemia de covid-19. E revisitou sua canção francesa, Touche Pas à Mon Pote (‘não mexa com meu chapa’), slogan do movimento antirracista SOS Racismo. “A música acabou ficando atualíssima com o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam)”, diz Gil. O grito de ordem ganhou força nas ruas e nas redes sociais após o assassinato de George Floyd, negro morto por um policial branco nos EUA.
Como avançar na questão sobre o racismo estrutural? “Nos últimos tempos, a legislação brasileira tem, na medida do possível, contemplado uma série de coisas, a criminalização que foi feita em relação a muitos dos aspectos desse racismo estrutural; e o ‘prestigiamento’ dos movimentos negros, os próprios movimentos com uma capacidade muito maior de compreensão da importância da contribuição africana para formação cultural do Brasil. Todas essas coisas têm aparecido com mais visibilidade na vida brasileira e, na medida do possível, levado setores importantes do povo brasileiro a entender melhor essa questão do racismo estrutural e a se posicionar. Nesse sentido, acho que as coisas melhoraram, mas ainda resta a questão básica da inclusão, da segunda abolição necessária reivindicada por Joaquim Nabuco, a inclusão propriamente, o acesso ao trabalho, à riqueza”, avalia. “É preciso esse resgate mais pleno, inclusão na vida política, econômica. Tem sido lento o processo de avanço, mas também aí acho que temos avançado.”
Cumprindo quarentena há três meses, Gil conta que está lendo e tocando muito violão. Durante esse período do isolamento, ele não sente que seja momento para a composição. Mas também não a descarta. “Talvez agora, depois de uma certa adaptação que a gente já está tendo ao isolamento social e a todos os seus significados, eu possa começar a reservar espaço mental, intelectual e espiritual para pensar um pouco em música, em canção, em escrever coisas.”
E os sentimentos todos, pessimismo, otimismo, alegria, tristeza, ainda estão oscilando? “Sim, um pouco, mas com menos comoção que tive no início, quando foi muito chocante. Eu chorava muito, me afligia muito com as incertezas do sofrimento, e a penalização especialmente dos idosos, que começaram a ser vitimados. Aí veio o número de mortes na Itália, na França, na Inglaterra, depois, nos EUA e aqui também. Aquilo me comovia muito, eu vivia em estado de comoção, que já está mais atenuado agora.”
ENTREVISTA COM A CANTORA IZA:
Conte-nos sobre sua relação com a obra de Gilberto Gil. Minha mãe sempre foi grande admiradora da música do Gil. Na verdade, minha família gosta muito desses grandes nomes da música brasileira e eu os ouvia por tabela, foi assim desde que eu era pequena. Não só na casa de minha mãe, como na de minhas tias. É uma obra que pertence à casa de todo mundo.
Gil disse que você, ele e Zé Ricardo escolheram o repertório, mas que prevaleceram as suas escolhas. Que músicas afetivas de Gil você selecionou? Para mim, foi muito fácil escolher porque sou muito fã. Eu escolhi um repertório que qualquer fã de Gil ia amar ouvir. Achei muito lindo que ele topou minhas escolhas. Com certeza A Paz, Drão, Palco e Aquele Abraço não poderiam faltar.
Como é para vocês, artistas, explorarem esse formato de live, que surgiu como alternativa em meio à pandemia? Só participei de uma live, que foi o lançamento de Let Me Be The One. Confesso que precisei me adaptar, prefiro muito mais o formato ao vivo. Grande parte das lives precisa de muita gente para ser realizada e eu não entendia como isso poderia ser feito de forma segura, eu ficava um pouco reticente. Mas entendo que a música vem trazendo muita alegria para algumas pessoas, então realmente acho que foi uma mudança que o mercado musical fez e que foi muito válida para a vida das pessoas.
O racismo estrutural ainda faz parte das sociedades. Como avançar nessa questão? Discutindo sempre. Achei muito bacana que a gente nunca falou tanto sobre isso no Brasil. Infelizmente precisou de mais uma morte trágica, como foi a do (George) Floyd,que não é a primeira vez que vemos, acontecesse lá fora para que as pessoas começassem a problematizar tudo o que vem acontecendo. Isso tudo abriu o olho de muitas pessoas, mas a gente ainda não caminhou em relação a isso. A gente precisa deixar claro que, sim, vivemos em uma sociedade racista e não podemos mais negar isso.