Taylor Swift, Roger Waters, Red Hot Chili Peppers e Bruno Mars passam por São Paulo no segundo semestre de 2023. Junto com eles aparece outra figura cada vez mais conhecida dos fãs de música no Brasil: o golpista no mercado paralelo de revenda de ingressos.
A retomada intensa de shows, com agendas e preços em alta, chega em meio a disputas por ingressos que esgotam em minutos. Isso abre espaço para um crescente mercado paralelo extraoficial de revenda de ingressos.
Esse cenário cresce sem regulamentação e expõe o público a golpes de estelionatários que renovam suas práticas através de grupos no Facebook, postagens no Twitter, perfis falsos no Instagram e até a criação de eventos falsos em plataformas oficiais de vendas.
Conheça histórias de vítimas e fãs que escaparam por pouco, veja dicas de advogado sobre seus direitos caso algo dê errado e saiba com fãs estão tentando evitar essa roubada. A reportagem se infiltrou em grupos de venda e descobriu esquemas cada vez mais elaborados - assim como as defesas, que incluem assinatura de contrato digital.
O golpe do falso evento
Uma página falsa de vendas foi a artimanha que chegou a Bárbara Pires, de 26 anos, e Edson Guidoni, 28. Os dois procuravam por um ingresso para o Numanice, o show de Ludmilla, que aconteceu em São Paulo e recebeu 40 mil pessoas nos dois dias (3 e 4 de junho).
Quando as vendas foram anunciadas, em abril, a primeira data se esgotou em 30 minutos no site de vendas Sympla. Edson percebeu a tempo que o ingresso que estava prestes a comprar era de um evento falso, criado na mesma plataforma. Bárbara não teve a mesma sorte.
“Parece que desde o meio do ano passado qualquer compra de ingresso para eventos grandes em São Paulo se tornou uma verdadeira missão”, diz a jovem. A analista de material estava na fila para a compra do ingresso online e, quando atualizou a página, já estava no quinto lote.
Ela decidiu comentar em publicações nas redes sociais do show que estava à procura de ingressos mais baratos. “Entre todas as opções, uma ‘menina’ dizia que enviaria o ingresso e depois eu faria o pix. Quem já tomou golpe com terceiros sabe que normalmente é feito o pix de metade do valor como um sinal e a pessoa some sem transferir o ingresso. Dentro desse cenário, achei que não seria possível tomar um golpe e comprei o ingresso open bar do Numanice por R$ 400″, conta.
Bárbara, de fato, recebeu o ingresso na plataforma da Sympla. Mas, uma semana depois, foi notificada de que sua compra havia sido cancelada, porque aquele não era o evento oficial e a plataforma não se responsabilizaria pela compra de terceiros. Ou seja: o golpista criou um falso show da Ludmilla no site e vendeu a Bárbara por lá.
“Liguei no banco e pedi uma investigação sobre a conta, alertando do golpe. Entraram em contato com o banco dessa pessoa, bloquearam a conta, e, caso entrasse algum valor dentro daquela conta, ele seria automaticamente transferido para mim”, explica.
Ela ainda não conseguiu o dinheiro de volta. Já Edson percebeu a situação antes de realizar a compra, porque o publicitário tem experiência profissional com as plataformas de venda de ingresso.
“Foi a primeira vez que tentei comprar ingressos fora de plataformas oficiais. Até por isso, minha atenção foi redobrada. Meu filtro era perguntar se o vendedor conseguiria transferir a titularidade do ingresso pela plataforma de vendas oficial, e foi aí que eu descobri que ainda assim era possível cair em um golpe”, explica o fã.
Edson conta que o golpista em questão se prontificou a transferir o ingresso antes mesmo do pagamento. Quando o ticket chegou no seu e-mail, ele percebeu que o valor estava como “gratuito” e o link do evento era direcionado para uma página diferente da oficial, mas ainda assim dentro da Sympla.
“Foi aí que eu entendi o golpe. Ele criou um evento ‘clone’ na mesma plataforma de vendas do ingresso e me cadastrou como se eu tivesse realizado uma nova venda. Quando questionei, ele conseguiu cancelar na plataforma de gerenciamento do evento, algo que somente o comprador conseguiria fazer ou um organizador do evento. Depois que ele cancelou, nem respondi mais a conversa”, explica.
Edson decidiu compartilhar a descoberta no Twitter e sua publicação teve mais de 22 mil visualizações. Com o alcance, ele conseguiu comprar um ingresso oficial pela metade do preço. Ainda assim, acionou o suporte da plataforma para garantir que o código era válido.
Além de ser respondido rapidamente, o publicitário contou que a plataforma lhe enviou outro e-mail agradecendo a postagem no Twitter e também fixou um aviso sobre golpes em seu perfil na rede social.
O Estadão entrou em contato com a Sympla para pedir pronunciamento sobre os casos citados, mas obteve retorno até o momento.
Golpistas no grupo
Neste mesmo fim de semana, outro grande evento aconteceu em São Paulo. O festival Mita, que começou nos dias 27 e 28 de maio no Rio de Janeiro, chegou na capital paulista nos mesmos dias que o Numanice e trouxe nomes como Lana del Rey, Florence The Machine e Sabrina Carpenter.
A reportagem se infiltrou no grupo do Facebook (Mita) Music Festival 2023 (Grupo Compra e Venda de Ingressos), com mais de 10 mil membros, para entender como os golpistas agem na oferta de vendas. Por ter uma alta procura, as postagens de compradores eram mais recorrentes que as de vendedores.
Foi nesse grupo que Wilson Pereira, de 32 anos, sofreu um golpe. O analista de sistemas já realizou compras e vendas antes, mas essa foi a primeira vez que foi enganado, mesmo usando diversas táticas para se proteger (veja lista no final deste texto).
Além de solicitar os documentos do suposto vendedor e realizar uma chamada de vídeo com ele, Wilson ainda redigiu um contrato para ser assinado digitalmente. Mas, depois do pagamento, o golpista sumiu.
“Eu errei em confiar demais, baseado nas boas experiências que tive no passado. Deveria ter obrigado o sujeito a assinar através da plataforma digital de assinaturas do gov.br, pois seria certeza que o CPF seria o dele mesmo, além de obrigá-lo a informar o pix de seu CPF. Dessa vez, eu aceitei o pix de sua ‘empresa’ e, agora, eu sei que isso é suspeito”, explicou.
Ele disse que irá tentar abrir um boletim de ocorrência, mas acredita que o documento que tem do golpista seja falso. Ele teme ter problemas ainda maiores. “Meu medo é ele usar os meus dados para continuar fazendo golpes, em meu nome”, refletiu.
Falsos amigos nos grupos de venda
Outra tentativa de golpe nesses grupos é através da recomendação de usuários. Dentre os farsantes identificados pela reportagem, um perfil no Instagram foi citado por mais que uma pessoa no Facebook como “confiável”. A reportagem entrou em contato com esse perfil simulando uma compra.
Além de ter diversos destaques com fotos de supostas mensagens de agradecimentos de compradores e vídeos de supostas entregas de ingressos físicos, a golpista se prontificou a enviar fotos de seus documentos. De fato, os enviou. Porém, quando foi pedida uma foto da tela do ingresso, cobrindo o QR code, a golpista alegou que enviaria em breve e não retornou mais.
O que fazer quando sofrer um golpe?
O advogado especialista em direito digital Márcio Chaves explica que todos esses casos que envolvam a intenção de enganar a vítima são configurados como crime de estelionato.
“Vale, inclusive, quando há um ingresso verdadeiro sendo vendido, mas que já tenha sido vendido ou prometido de ser vendido anteriormente para outra pessoa para pagamento de forma parcelada. E aqueles golpes nos quais os ingressos são fraudados, há o crime de falsificação de documento particular”, afirma.
Quando a vítima identificar que sofreu um golpe, Marcio reitera que, sim, é necessário coletar todas as provas do ocorrido: os documentos e informações que houver sobre o farsante e toda conversa da negociação precisa ficar salva.
“Print de conversa não é a prova em si. A prova mesmo é a mensagem digital que está no aparelho ou conta da vítima. Mas, como os golpistas se escondem em contas falsas, números de telefone pré-pagos, ou até mesmo sequestrando e fazendo o uso de contas e números legítimos de laranjas, essa identificação pode envolver a necessidade de se obter ordem judicial. Ela pode ser usada para que o provedor de aplicação, como os aplicativos de mensagens e as redes sociais, e os provedores de conexão, que são as operadoras, forneçam esses dados”, explica.
O advogado diz que a atuação de autoridades policiais na identificação de quadrilhas ainda é “muito tímida” devido ao grande número de eventos. Para ele, as empresas de venda de ingressos deveriam promover a oportunidade de validação dos tickets.
“A tecnologia deveria ser a grande aliada dessas empresas, por exemplo, na oferta de meios oficiais de transferência de titularidade e validação de ingressos antes do evento”, reitera.
Como os fãs tentam se prevenir dessa roubada?
Ainda que não haja fiscalização dentro do Facebook, os próprios fãs e frequentadores de shows passaram a se unir no Whatsapp e desenvolveram táticas para se proteger de golpes.
A reportagem se infiltrou em três grupos de compra e venda com regras rígidas para os vendedores. O fundador dos grupos revela que já mapeou mais de 300 golpistas que tentaram adentrar nesses canais, mas, através das orientações do grupo, nenhum participante sofreu golpe até o momento.
No Whastapp, esses canais se dedicam a compra e venda de ingressos para os shows do The Weeknd, RBD e Red Hot Chili Peppers. Cássio, que preferiu não ter sua identidade completa revelada, explicou que o grupo foi criado originalmente em 2022, no Rock In Rio, com o intuito de “fazer amizades”.
“Tivemos a ideia de criar regras no grupo no momento que começamos a entender que existem muitos golpistas no Facebook. Começamos a bloquear esses perfis lá e no Twitter também, evitando que eles tenham acesso aos links dos nossos grupos do Whatsapp”, explicou Cássio.
“Sempre que algum integrante novo entra em nosso grupo e publica que está vendendo ingresso, verificamos se este perfil não é um golpista previamente identificado. Verificamos se este é o titular do ingresso e, em seguida, pedimos as confirmações das redes sociais e do ticket, para que seja comprovado que o vendedor é o titular do ingresso. Quando o vendedor não é o titular, salvamos o contato e removemos do grupo como forma de prevenção”, descreve.
Essa prevenção serve ainda como curadoria, uma vez que os compradores também consultam os outros participantes e administradores. “Olhamos o perfil e buscamos se o indivíduo já foi mapeado por nós como golpista. Se não, orientamos que o comprador faça uma chamada de vídeo com o vendedor e preencha o contrato de compra e venda. Aconselhamos que a assinatura seja feita digitalmente pelo Gov.br, ou no cartório mais próximo”, explica.
As regras do grupo listadas a seguir são condutas que podem proteger esses compradores justamente porque os fundadores do grupo perceberam que os golpistas não possuem todas as comprovações.
Mas não há garantia. Como o mercado não é regulamentado, e os golpistas são sofisticados a única forma totalmente segura de compra é nos canais oficiais.
Veja 7 dicas dadas nos grupos para tentar evitar golpes nas vendas de ingressos de shows:
- 📄 Sempre peça os documentos do vendedor (RG e CPF)
- 🎟️ Solicite o print do ingresso antes de realizar o pagamento (o vendedor pode cobrir o QR code)
- ✅ Peça ao vendedor o comprovante da compra de ingresso que plataformas como Eventim enviam no ato da realização da compra nos sites oficiais
- 🎥Faça uma vídeochamada com o vendedor para ter certeza de que ele é quem diz ser
- 🤳Se preferir, peça ainda um print das redes sociais desse vendedor, como o Instagram, Twitter ou Facebook
- ✍️ Faça um contrato de compra e venda para o ingresso. O recomendado é que a assinatura seja feita digitalmente pelo gov.com, ou até no cartório mais próximo
- 🧐Certifique-se de que o link de compra do ingresso é referente ao evento oficial, consulte as páginas oficiais do artista