A 66º edição do Grammy foi planejada como uma grande celebração do talento feminino: já nas indicações para as três principais categorias, o domínio das mulheres era quase total. Foi uma boa tentativa de responder às críticas, corrigir desigualdades históricas nas estatísticas e mostrar que o mastodôntico prêmio da indústria da música dos Estados Unidos consegue correr atrás do espírito do tempo sem sentir o peso do corpanzil.
O time das mulheres levou os prêmios de maior prestígio, incluindo Melhor Artista Novo (com Victoria Monét, 34 anos, apontada como barbada pela Variety e pela Rolling Stone) e venceu até mesmo em nichos misóginos como o rock, com o trio Boygenius e o Paramore (banda multigênero, mas liderada por Hayley Williams).
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A divisão de prêmios teve um traço político adicional ao contemplar forças contemporâneas diferentes nas três principais categorias. Teve para quase todas (menos para Lana del Rey, que mais uma vez saiu de mãos abanando de uma cerimônia de entrega). Miley Cyrus, 31 anos, levou o primeiro Grammy de sua carreira (iniciada ainda na infância), pelo irresistível single pop Flowers, consagrado como Gravação do Ano. A precoce Billie Eilish, 22 anos, papou seu oitavo gramofoninho com a balada sombria da trilha do filme Barbie, What Was I Made For (composta com seu irmão Finneas O’Connel), escolhida Canção do Ano.
Taylor Swift, cartaz maior do momento, 34 anos, ganhou o prêmio de Álbum do Ano por Midnights. Foi sua quarta conquista na categoria. Pela régua do Grammy, ela acaba de superar monstros sagrados como Frank Sinatra, Stevie Wonder e Paul Simon (o principal esnobado da premiação deste ano: seu álbum Seven Psalms sequer foi indicado) neste quesito.
Swift ficou em pé em vários momentos da cerimônia, dançando e cantando junto com as atrações, à vontade como se estivesse na sala de casa. Desde 2010, coleciona estatuetas de gramofone. Ao agradecer a primeira que ganhou na noite, por Melhor Álbum Pop Vocal, aproveitou para usar o momento como plataforma de divulgação. Anunciou o lançamento de um novo álbum, The Tortured Poets Department, para 19 de abril: “Um segredo que tenho guardado pelos últimos dois anos”.
Grammy é isso mesmo: indústria, trabalho, vendas. O comediante Trevor Noah, apresentador do evento pelo quarto ano seguido, comentou no começo da cerimônia, fazendo um trocadilho com o sobrenome de um convidado famoso: “À medida que Taylor Swift se move pela sala, toda a economia local em volta dela cresce. Olha isso! Lionel Richie? Agora é Lionel Wealthy!” (wealthy, abastado, em português).
Há quem ainda enxergue o Grammy como uma espécie de prêmio Caboré americano, um compadrio de oligopólios atrasados, resistente às mudanças culturais e com compreensão insuficiente dos mecanismos atuais de sucesso. Foi assim em décadas passadas, não é mais. Há um esforço notável para ser mais diverso e trazer exposição a gêneros mais nichados, como se nota em duas categorias incluídas neste ano: melhor performance de música africana e melhor álbum de jazz alternativo.
Na noite de domingo na Crypto.com Arena, em Los Angeles, houve espaço até para o executivo e rapper Jay-Z criticar a própria cerimônia do Grammy, questionando os critérios de premiação ao receber uma homenagem (Prêmio Dr. Dre de Impacto Global): “Vocês sabem, alguns de vocês vão para casa esta noite se sentindo como se tivessem sido roubados. Alguns de vocês podem ser roubados. Alguns de vocês não pertencem à categoria [em que concorrem]”. Ele não teve pudor de puxar a brasa para a sardinha de sua mulher, Beyoncé. “Ela tem mais Grammys que qualquer um, e nunca venceu por Álbum do Ano. Nem mesmo pelas métricas de vocês isso funciona”.
O toque político foi dado por Annie Lennox, depois de interpretar Nothing Compares 2 U, em homenagem à Sinéad O’Connor (1966-2023), pedindo “cessar-fogo” e “paz no mundo”.
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As brasileiras Astrud Gilberto (1940-2023) e Rita Lee (1947-2023) foram homenageadas brevemente na seção In Memoriam. A bossanovista surgiu no telão entre Harry Belafonte (1927-2023) e Robbie Robertson (1943-2023, líder da The Band) quando Stevie Wonder, cercado por um combo de jazz, cantava The best is yet to come, uma das grandes joias do repertório de Tony Bennett (1926-2023), no momento musicalmente mais elegante entre todas as apresentações da noite. Rita foi lembrada durante a apresentação de Jon Baptiste, que celebrava o executivo Clarence Avant.
Polêmicas à parte, esta 66ª cerimônia de entrega do prêmio deve ser mais lembrada pela comoção gerada em torno das aparições de mulheres legendárias como Tracy Chapman, que faz raras apresentações ao vivo e não grava desde 2008, Céline Dion, reclusa desde 2023, por conta de uma síndrome neurológica que dificulta seus movimentos (ela falou recentemente sobre sua condição; leia), e Joni Mitchell. Aos 80 anos, depois de se recuperar de um aneurisma que a obrigou a reaprender a falar (e a cantar), ela se apresentou pela primeira vez em uma cerimônia de entrega do Grammy. Sentada, com uma bengala na mão, e amparada vocalmente por Brandi Carlile, ela emocionou a todos cantando seu clássico Both Sides Now, que termina com os seguintes versos:
“Já olhei para a vida de ambos os lados/ Da vitória e da derrota e, ainda assim, de alguma forma/ É das ilusões da vida que me lembro/ Eu realmente não conheço a vida/ É das ilusões da vida que me lembro/ Eu realmente não conheço a vida”.