Heraldo do Monte: livro narra a construção de um gigante da guitarra brasileira


Aos 85 anos, pernambucano que criou uma linguagem para o improviso brasileiro e disse não ao grupo Weather Report tem vida narrada em projeto biográfico analítico e respeitoso

Por Julio Maria
Atualização:

Hermeto Pascoal não foi chamado porque era feio. Isso mesmo, feio. Seus olhos enviesados, sua pele de uma cor que não era cor alguma e sua postura de um desconjuntamento que não ficava ereto nem nos ternos feitos em alfaiate por encomenda de Livio Ragan. Assim, acabaram indo para a estrada com Geraldo Vandré apenas o percussionista Airto Moreira, o violonista Theo de Barros e o guitarrista Heraldo do Monte. A turnê era para sonorizar com shows ao vivo os desfiles de moda que a empresa têxtil Rhodia promovia pelo País. Por mais difícil que seja visualizar a cena, era o que era: Geraldo Vandré cantava e essa turma tocava enquanto modelos longilíneas iam e vinham pela passarela portando as tendências da alta-costura de 1967. Não poderia dar boa coisa, mas deu.

Heraldo em ação com sua guitarra Les Paul Foto: Carlos Sadao Myiabara

Foi entre um desfile e outro, e à revelia do contratante Ragan, o diretor de marketing da empresa que decidiu deixar Hermeto de fora por razões estéticas, que Heraldo, Airto e Theo confabularam uma histórica rebeldia sonora. Assim que retornassem das viagens, iriam chamar Hermeto de volta, dizer não a toda forma de jazz brasileiro que se impunha por aqueles anos sob a condição de samba jazz e criar uma expressão completamente nova e saída de uma parte do País que o “Sul” ainda não conhecia. Nada de blue notes, padrões de improviso do jazz nem cascatas folegosas de Charlie Parker.

continua após a publicidade

  Eles queriam se livrar de toda infecção jazzística contraída por trios como Zimbo, Tamba, Jongo e os que seguiam Sergio Mendes, Edison Machado, Dom Um Romão e Milton Banana para usarem a matriz do baião, do xote, dos aboios, do maracatu, das modas e de todo o sertão para criar com ela uma música instrumental pura. Nem que, para isso, Heraldo tocasse um instrumento que esse meio não vira ainda e pelo qual ele próprio guardava preconceito: a viola.

A criação do Quarteto Novo é um episódio grande na vida de Heraldo do Monte, um ponto da linha do tempo da música brasileira – aquele em que ela descobre ter mais do que o samba para chamar de seu quando quiser brincar de jazz – e um dos trechos bem retratados por uma publicação que chega agora para lembrar a quem porventura possa ter se esquecido de que Heraldo, 85 anos, ainda é um dos maiores nomes da música brasileira. 

As Cordas Livres de Heraldo do Monte é a primeira publicação da série Brasil de Dentro, criada pelo Instituto Çarê para fazer um serviço público: sistematizar, editar e difundir obras de compositores brasileiros desse vulto. Por isso, o livro traz uma segunda parte com partituras de 58 temas criados por Heraldo e um CD com uma bela coletânea-curadoria, com composições como o impressionante Forrozin, Caboclo Elétrico, Giant Steps (de John Coltrane) e Meditando.

continua após a publicidade

O recifense Heraldo, como o alagoano Hermeto, é uma daquelas flores de mandacaru que desabrocham sem água. Ele não sabia o que era um acorde ao violão quando o empunhou pela primeira vez. Não estudou, não teve um mestre e tudo o que sabia no início era tocar clarinete. Ou seja, cada uma das seis cordas de um violão eram pensadas como se fossem um clarinete diferente. Quem nasce assim não poderia mesmo ser igual a nada, mas não era o bastante.

Heraldo passou a buscar outros caminhos. “E a evitar as coisas que os outros guitarristas faziam”, conta. Assim, onde todos tocariam um vibrato típico, ele usa a carga do sangue árabe de um nordestino (as escalas desse povo estão impregnadas no solo de sua terra) para vibrar a corda como o canto de um aboio.

Quando o jazz chegou, na fase pré-Quarteto Novo, Heraldo não o repudiou. Adorava a sonoridade do opaco cristalino e sem agudos de Chuck Wayne, do grupo do pianista cego George Shearing. Muitos de seus primeiros álbuns como músico de estúdio, e eles são muitos, não são guardados com orgulho. “Não gosto, eles eram muito produzidos, os produtores só queriam vender discos. Fiz coisas bem comerciais. Até o timbre da guitarra era do produtor.” Mas era sua forma de ganhar dinheiro e ele se orgulha da carteira assinada e de viver de música, mesmo quando deveria colocar sua guitarra a serviço de Eu Não Sou Cachorro Não, de Waldick Soriano.  Momentos sublimes seriam vividos ao lado de Dolores Duran em pelo menos duas gravações magistrais. Para My Funny Valentine, standard definitivo de Richard Rodgers e Lorenz Hart, de 1937, Heraldo criou uma introdução, chamada tecnicamente de recitativo, para a qual usou seus dias de audição de música barroca, ainda uma de suas paixões, para investir em uma frase inspirada em uma fuga de Bach.

continua após a publicidade
Com sua parceira de toda a vida, Lurdinha Foto: Carlos Sadao Myiabara

Ao passar pelo Brasil com a cantora Ella Fitzgerald, a maior da história, o guitarrista Jim Hall disse pessoalmente a Heraldo que havia comprado o disco para aprender a tocar a introdução que o brasileiro havia criado. E a própria Ella, conta a história, teria dito que a gravação de Dolores com Heraldo havia sido a melhor que ela escutou.

O jazz ficou doido pela guitarra sem precedentes de Heraldo do Monte. Ao ouvirem o disco do Quarteto Novo, mostrado por Airto Moreira, o tecladista Joe Zawinul e o saxofonista Wayne Shorter o convidaram para fazer parte da constelação que já formava o grupo Weather Report, incluindo Airto. Mas era muita trabalheira esse negócio de viver viajando e Heraldo, gentilmente, disse não. O livro narra algo do qual ele diz não se lembrar. Um ou dois anos mais tarde, teria sido a vez de Miles Davis tentar levá-lo para a gravação do disco Pop, de 1973. Mas deu preguiça de novo e Heraldo preferiu o Brasil.

continua após a publicidade

A história passa por dois pontos obrigatórios e talvez os mais conhecidos: a participação do ainda Trio Novo nos festivais. Em 66, a formação que ficou para a posteridade por ter aparecido para acompanhar o vencedor Jair Rodrigues em Disparada não é a original, mas uma fake. Isso porque Theo, Airto e Heraldo estavam fazendo um show pela Rhodia em Natal, Rio Grande do Norte. No ano seguinte, eles, os originais, acompanharam Marilia Medalha em Ponteio, de Edu Lobo e Capinan e, finalmente, experimentaram uma vitória real. Uma das muitas que Heraldo viveria sem querer ser ninguém além de ele mesmo.

Hermeto Pascoal não foi chamado porque era feio. Isso mesmo, feio. Seus olhos enviesados, sua pele de uma cor que não era cor alguma e sua postura de um desconjuntamento que não ficava ereto nem nos ternos feitos em alfaiate por encomenda de Livio Ragan. Assim, acabaram indo para a estrada com Geraldo Vandré apenas o percussionista Airto Moreira, o violonista Theo de Barros e o guitarrista Heraldo do Monte. A turnê era para sonorizar com shows ao vivo os desfiles de moda que a empresa têxtil Rhodia promovia pelo País. Por mais difícil que seja visualizar a cena, era o que era: Geraldo Vandré cantava e essa turma tocava enquanto modelos longilíneas iam e vinham pela passarela portando as tendências da alta-costura de 1967. Não poderia dar boa coisa, mas deu.

Heraldo em ação com sua guitarra Les Paul Foto: Carlos Sadao Myiabara

Foi entre um desfile e outro, e à revelia do contratante Ragan, o diretor de marketing da empresa que decidiu deixar Hermeto de fora por razões estéticas, que Heraldo, Airto e Theo confabularam uma histórica rebeldia sonora. Assim que retornassem das viagens, iriam chamar Hermeto de volta, dizer não a toda forma de jazz brasileiro que se impunha por aqueles anos sob a condição de samba jazz e criar uma expressão completamente nova e saída de uma parte do País que o “Sul” ainda não conhecia. Nada de blue notes, padrões de improviso do jazz nem cascatas folegosas de Charlie Parker.

  Eles queriam se livrar de toda infecção jazzística contraída por trios como Zimbo, Tamba, Jongo e os que seguiam Sergio Mendes, Edison Machado, Dom Um Romão e Milton Banana para usarem a matriz do baião, do xote, dos aboios, do maracatu, das modas e de todo o sertão para criar com ela uma música instrumental pura. Nem que, para isso, Heraldo tocasse um instrumento que esse meio não vira ainda e pelo qual ele próprio guardava preconceito: a viola.

A criação do Quarteto Novo é um episódio grande na vida de Heraldo do Monte, um ponto da linha do tempo da música brasileira – aquele em que ela descobre ter mais do que o samba para chamar de seu quando quiser brincar de jazz – e um dos trechos bem retratados por uma publicação que chega agora para lembrar a quem porventura possa ter se esquecido de que Heraldo, 85 anos, ainda é um dos maiores nomes da música brasileira. 

As Cordas Livres de Heraldo do Monte é a primeira publicação da série Brasil de Dentro, criada pelo Instituto Çarê para fazer um serviço público: sistematizar, editar e difundir obras de compositores brasileiros desse vulto. Por isso, o livro traz uma segunda parte com partituras de 58 temas criados por Heraldo e um CD com uma bela coletânea-curadoria, com composições como o impressionante Forrozin, Caboclo Elétrico, Giant Steps (de John Coltrane) e Meditando.

O recifense Heraldo, como o alagoano Hermeto, é uma daquelas flores de mandacaru que desabrocham sem água. Ele não sabia o que era um acorde ao violão quando o empunhou pela primeira vez. Não estudou, não teve um mestre e tudo o que sabia no início era tocar clarinete. Ou seja, cada uma das seis cordas de um violão eram pensadas como se fossem um clarinete diferente. Quem nasce assim não poderia mesmo ser igual a nada, mas não era o bastante.

Heraldo passou a buscar outros caminhos. “E a evitar as coisas que os outros guitarristas faziam”, conta. Assim, onde todos tocariam um vibrato típico, ele usa a carga do sangue árabe de um nordestino (as escalas desse povo estão impregnadas no solo de sua terra) para vibrar a corda como o canto de um aboio.

Quando o jazz chegou, na fase pré-Quarteto Novo, Heraldo não o repudiou. Adorava a sonoridade do opaco cristalino e sem agudos de Chuck Wayne, do grupo do pianista cego George Shearing. Muitos de seus primeiros álbuns como músico de estúdio, e eles são muitos, não são guardados com orgulho. “Não gosto, eles eram muito produzidos, os produtores só queriam vender discos. Fiz coisas bem comerciais. Até o timbre da guitarra era do produtor.” Mas era sua forma de ganhar dinheiro e ele se orgulha da carteira assinada e de viver de música, mesmo quando deveria colocar sua guitarra a serviço de Eu Não Sou Cachorro Não, de Waldick Soriano.  Momentos sublimes seriam vividos ao lado de Dolores Duran em pelo menos duas gravações magistrais. Para My Funny Valentine, standard definitivo de Richard Rodgers e Lorenz Hart, de 1937, Heraldo criou uma introdução, chamada tecnicamente de recitativo, para a qual usou seus dias de audição de música barroca, ainda uma de suas paixões, para investir em uma frase inspirada em uma fuga de Bach.

Com sua parceira de toda a vida, Lurdinha Foto: Carlos Sadao Myiabara

Ao passar pelo Brasil com a cantora Ella Fitzgerald, a maior da história, o guitarrista Jim Hall disse pessoalmente a Heraldo que havia comprado o disco para aprender a tocar a introdução que o brasileiro havia criado. E a própria Ella, conta a história, teria dito que a gravação de Dolores com Heraldo havia sido a melhor que ela escutou.

O jazz ficou doido pela guitarra sem precedentes de Heraldo do Monte. Ao ouvirem o disco do Quarteto Novo, mostrado por Airto Moreira, o tecladista Joe Zawinul e o saxofonista Wayne Shorter o convidaram para fazer parte da constelação que já formava o grupo Weather Report, incluindo Airto. Mas era muita trabalheira esse negócio de viver viajando e Heraldo, gentilmente, disse não. O livro narra algo do qual ele diz não se lembrar. Um ou dois anos mais tarde, teria sido a vez de Miles Davis tentar levá-lo para a gravação do disco Pop, de 1973. Mas deu preguiça de novo e Heraldo preferiu o Brasil.

A história passa por dois pontos obrigatórios e talvez os mais conhecidos: a participação do ainda Trio Novo nos festivais. Em 66, a formação que ficou para a posteridade por ter aparecido para acompanhar o vencedor Jair Rodrigues em Disparada não é a original, mas uma fake. Isso porque Theo, Airto e Heraldo estavam fazendo um show pela Rhodia em Natal, Rio Grande do Norte. No ano seguinte, eles, os originais, acompanharam Marilia Medalha em Ponteio, de Edu Lobo e Capinan e, finalmente, experimentaram uma vitória real. Uma das muitas que Heraldo viveria sem querer ser ninguém além de ele mesmo.

Hermeto Pascoal não foi chamado porque era feio. Isso mesmo, feio. Seus olhos enviesados, sua pele de uma cor que não era cor alguma e sua postura de um desconjuntamento que não ficava ereto nem nos ternos feitos em alfaiate por encomenda de Livio Ragan. Assim, acabaram indo para a estrada com Geraldo Vandré apenas o percussionista Airto Moreira, o violonista Theo de Barros e o guitarrista Heraldo do Monte. A turnê era para sonorizar com shows ao vivo os desfiles de moda que a empresa têxtil Rhodia promovia pelo País. Por mais difícil que seja visualizar a cena, era o que era: Geraldo Vandré cantava e essa turma tocava enquanto modelos longilíneas iam e vinham pela passarela portando as tendências da alta-costura de 1967. Não poderia dar boa coisa, mas deu.

Heraldo em ação com sua guitarra Les Paul Foto: Carlos Sadao Myiabara

Foi entre um desfile e outro, e à revelia do contratante Ragan, o diretor de marketing da empresa que decidiu deixar Hermeto de fora por razões estéticas, que Heraldo, Airto e Theo confabularam uma histórica rebeldia sonora. Assim que retornassem das viagens, iriam chamar Hermeto de volta, dizer não a toda forma de jazz brasileiro que se impunha por aqueles anos sob a condição de samba jazz e criar uma expressão completamente nova e saída de uma parte do País que o “Sul” ainda não conhecia. Nada de blue notes, padrões de improviso do jazz nem cascatas folegosas de Charlie Parker.

  Eles queriam se livrar de toda infecção jazzística contraída por trios como Zimbo, Tamba, Jongo e os que seguiam Sergio Mendes, Edison Machado, Dom Um Romão e Milton Banana para usarem a matriz do baião, do xote, dos aboios, do maracatu, das modas e de todo o sertão para criar com ela uma música instrumental pura. Nem que, para isso, Heraldo tocasse um instrumento que esse meio não vira ainda e pelo qual ele próprio guardava preconceito: a viola.

A criação do Quarteto Novo é um episódio grande na vida de Heraldo do Monte, um ponto da linha do tempo da música brasileira – aquele em que ela descobre ter mais do que o samba para chamar de seu quando quiser brincar de jazz – e um dos trechos bem retratados por uma publicação que chega agora para lembrar a quem porventura possa ter se esquecido de que Heraldo, 85 anos, ainda é um dos maiores nomes da música brasileira. 

As Cordas Livres de Heraldo do Monte é a primeira publicação da série Brasil de Dentro, criada pelo Instituto Çarê para fazer um serviço público: sistematizar, editar e difundir obras de compositores brasileiros desse vulto. Por isso, o livro traz uma segunda parte com partituras de 58 temas criados por Heraldo e um CD com uma bela coletânea-curadoria, com composições como o impressionante Forrozin, Caboclo Elétrico, Giant Steps (de John Coltrane) e Meditando.

O recifense Heraldo, como o alagoano Hermeto, é uma daquelas flores de mandacaru que desabrocham sem água. Ele não sabia o que era um acorde ao violão quando o empunhou pela primeira vez. Não estudou, não teve um mestre e tudo o que sabia no início era tocar clarinete. Ou seja, cada uma das seis cordas de um violão eram pensadas como se fossem um clarinete diferente. Quem nasce assim não poderia mesmo ser igual a nada, mas não era o bastante.

Heraldo passou a buscar outros caminhos. “E a evitar as coisas que os outros guitarristas faziam”, conta. Assim, onde todos tocariam um vibrato típico, ele usa a carga do sangue árabe de um nordestino (as escalas desse povo estão impregnadas no solo de sua terra) para vibrar a corda como o canto de um aboio.

Quando o jazz chegou, na fase pré-Quarteto Novo, Heraldo não o repudiou. Adorava a sonoridade do opaco cristalino e sem agudos de Chuck Wayne, do grupo do pianista cego George Shearing. Muitos de seus primeiros álbuns como músico de estúdio, e eles são muitos, não são guardados com orgulho. “Não gosto, eles eram muito produzidos, os produtores só queriam vender discos. Fiz coisas bem comerciais. Até o timbre da guitarra era do produtor.” Mas era sua forma de ganhar dinheiro e ele se orgulha da carteira assinada e de viver de música, mesmo quando deveria colocar sua guitarra a serviço de Eu Não Sou Cachorro Não, de Waldick Soriano.  Momentos sublimes seriam vividos ao lado de Dolores Duran em pelo menos duas gravações magistrais. Para My Funny Valentine, standard definitivo de Richard Rodgers e Lorenz Hart, de 1937, Heraldo criou uma introdução, chamada tecnicamente de recitativo, para a qual usou seus dias de audição de música barroca, ainda uma de suas paixões, para investir em uma frase inspirada em uma fuga de Bach.

Com sua parceira de toda a vida, Lurdinha Foto: Carlos Sadao Myiabara

Ao passar pelo Brasil com a cantora Ella Fitzgerald, a maior da história, o guitarrista Jim Hall disse pessoalmente a Heraldo que havia comprado o disco para aprender a tocar a introdução que o brasileiro havia criado. E a própria Ella, conta a história, teria dito que a gravação de Dolores com Heraldo havia sido a melhor que ela escutou.

O jazz ficou doido pela guitarra sem precedentes de Heraldo do Monte. Ao ouvirem o disco do Quarteto Novo, mostrado por Airto Moreira, o tecladista Joe Zawinul e o saxofonista Wayne Shorter o convidaram para fazer parte da constelação que já formava o grupo Weather Report, incluindo Airto. Mas era muita trabalheira esse negócio de viver viajando e Heraldo, gentilmente, disse não. O livro narra algo do qual ele diz não se lembrar. Um ou dois anos mais tarde, teria sido a vez de Miles Davis tentar levá-lo para a gravação do disco Pop, de 1973. Mas deu preguiça de novo e Heraldo preferiu o Brasil.

A história passa por dois pontos obrigatórios e talvez os mais conhecidos: a participação do ainda Trio Novo nos festivais. Em 66, a formação que ficou para a posteridade por ter aparecido para acompanhar o vencedor Jair Rodrigues em Disparada não é a original, mas uma fake. Isso porque Theo, Airto e Heraldo estavam fazendo um show pela Rhodia em Natal, Rio Grande do Norte. No ano seguinte, eles, os originais, acompanharam Marilia Medalha em Ponteio, de Edu Lobo e Capinan e, finalmente, experimentaram uma vitória real. Uma das muitas que Heraldo viveria sem querer ser ninguém além de ele mesmo.

Hermeto Pascoal não foi chamado porque era feio. Isso mesmo, feio. Seus olhos enviesados, sua pele de uma cor que não era cor alguma e sua postura de um desconjuntamento que não ficava ereto nem nos ternos feitos em alfaiate por encomenda de Livio Ragan. Assim, acabaram indo para a estrada com Geraldo Vandré apenas o percussionista Airto Moreira, o violonista Theo de Barros e o guitarrista Heraldo do Monte. A turnê era para sonorizar com shows ao vivo os desfiles de moda que a empresa têxtil Rhodia promovia pelo País. Por mais difícil que seja visualizar a cena, era o que era: Geraldo Vandré cantava e essa turma tocava enquanto modelos longilíneas iam e vinham pela passarela portando as tendências da alta-costura de 1967. Não poderia dar boa coisa, mas deu.

Heraldo em ação com sua guitarra Les Paul Foto: Carlos Sadao Myiabara

Foi entre um desfile e outro, e à revelia do contratante Ragan, o diretor de marketing da empresa que decidiu deixar Hermeto de fora por razões estéticas, que Heraldo, Airto e Theo confabularam uma histórica rebeldia sonora. Assim que retornassem das viagens, iriam chamar Hermeto de volta, dizer não a toda forma de jazz brasileiro que se impunha por aqueles anos sob a condição de samba jazz e criar uma expressão completamente nova e saída de uma parte do País que o “Sul” ainda não conhecia. Nada de blue notes, padrões de improviso do jazz nem cascatas folegosas de Charlie Parker.

  Eles queriam se livrar de toda infecção jazzística contraída por trios como Zimbo, Tamba, Jongo e os que seguiam Sergio Mendes, Edison Machado, Dom Um Romão e Milton Banana para usarem a matriz do baião, do xote, dos aboios, do maracatu, das modas e de todo o sertão para criar com ela uma música instrumental pura. Nem que, para isso, Heraldo tocasse um instrumento que esse meio não vira ainda e pelo qual ele próprio guardava preconceito: a viola.

A criação do Quarteto Novo é um episódio grande na vida de Heraldo do Monte, um ponto da linha do tempo da música brasileira – aquele em que ela descobre ter mais do que o samba para chamar de seu quando quiser brincar de jazz – e um dos trechos bem retratados por uma publicação que chega agora para lembrar a quem porventura possa ter se esquecido de que Heraldo, 85 anos, ainda é um dos maiores nomes da música brasileira. 

As Cordas Livres de Heraldo do Monte é a primeira publicação da série Brasil de Dentro, criada pelo Instituto Çarê para fazer um serviço público: sistematizar, editar e difundir obras de compositores brasileiros desse vulto. Por isso, o livro traz uma segunda parte com partituras de 58 temas criados por Heraldo e um CD com uma bela coletânea-curadoria, com composições como o impressionante Forrozin, Caboclo Elétrico, Giant Steps (de John Coltrane) e Meditando.

O recifense Heraldo, como o alagoano Hermeto, é uma daquelas flores de mandacaru que desabrocham sem água. Ele não sabia o que era um acorde ao violão quando o empunhou pela primeira vez. Não estudou, não teve um mestre e tudo o que sabia no início era tocar clarinete. Ou seja, cada uma das seis cordas de um violão eram pensadas como se fossem um clarinete diferente. Quem nasce assim não poderia mesmo ser igual a nada, mas não era o bastante.

Heraldo passou a buscar outros caminhos. “E a evitar as coisas que os outros guitarristas faziam”, conta. Assim, onde todos tocariam um vibrato típico, ele usa a carga do sangue árabe de um nordestino (as escalas desse povo estão impregnadas no solo de sua terra) para vibrar a corda como o canto de um aboio.

Quando o jazz chegou, na fase pré-Quarteto Novo, Heraldo não o repudiou. Adorava a sonoridade do opaco cristalino e sem agudos de Chuck Wayne, do grupo do pianista cego George Shearing. Muitos de seus primeiros álbuns como músico de estúdio, e eles são muitos, não são guardados com orgulho. “Não gosto, eles eram muito produzidos, os produtores só queriam vender discos. Fiz coisas bem comerciais. Até o timbre da guitarra era do produtor.” Mas era sua forma de ganhar dinheiro e ele se orgulha da carteira assinada e de viver de música, mesmo quando deveria colocar sua guitarra a serviço de Eu Não Sou Cachorro Não, de Waldick Soriano.  Momentos sublimes seriam vividos ao lado de Dolores Duran em pelo menos duas gravações magistrais. Para My Funny Valentine, standard definitivo de Richard Rodgers e Lorenz Hart, de 1937, Heraldo criou uma introdução, chamada tecnicamente de recitativo, para a qual usou seus dias de audição de música barroca, ainda uma de suas paixões, para investir em uma frase inspirada em uma fuga de Bach.

Com sua parceira de toda a vida, Lurdinha Foto: Carlos Sadao Myiabara

Ao passar pelo Brasil com a cantora Ella Fitzgerald, a maior da história, o guitarrista Jim Hall disse pessoalmente a Heraldo que havia comprado o disco para aprender a tocar a introdução que o brasileiro havia criado. E a própria Ella, conta a história, teria dito que a gravação de Dolores com Heraldo havia sido a melhor que ela escutou.

O jazz ficou doido pela guitarra sem precedentes de Heraldo do Monte. Ao ouvirem o disco do Quarteto Novo, mostrado por Airto Moreira, o tecladista Joe Zawinul e o saxofonista Wayne Shorter o convidaram para fazer parte da constelação que já formava o grupo Weather Report, incluindo Airto. Mas era muita trabalheira esse negócio de viver viajando e Heraldo, gentilmente, disse não. O livro narra algo do qual ele diz não se lembrar. Um ou dois anos mais tarde, teria sido a vez de Miles Davis tentar levá-lo para a gravação do disco Pop, de 1973. Mas deu preguiça de novo e Heraldo preferiu o Brasil.

A história passa por dois pontos obrigatórios e talvez os mais conhecidos: a participação do ainda Trio Novo nos festivais. Em 66, a formação que ficou para a posteridade por ter aparecido para acompanhar o vencedor Jair Rodrigues em Disparada não é a original, mas uma fake. Isso porque Theo, Airto e Heraldo estavam fazendo um show pela Rhodia em Natal, Rio Grande do Norte. No ano seguinte, eles, os originais, acompanharam Marilia Medalha em Ponteio, de Edu Lobo e Capinan e, finalmente, experimentaram uma vitória real. Uma das muitas que Heraldo viveria sem querer ser ninguém além de ele mesmo.

Hermeto Pascoal não foi chamado porque era feio. Isso mesmo, feio. Seus olhos enviesados, sua pele de uma cor que não era cor alguma e sua postura de um desconjuntamento que não ficava ereto nem nos ternos feitos em alfaiate por encomenda de Livio Ragan. Assim, acabaram indo para a estrada com Geraldo Vandré apenas o percussionista Airto Moreira, o violonista Theo de Barros e o guitarrista Heraldo do Monte. A turnê era para sonorizar com shows ao vivo os desfiles de moda que a empresa têxtil Rhodia promovia pelo País. Por mais difícil que seja visualizar a cena, era o que era: Geraldo Vandré cantava e essa turma tocava enquanto modelos longilíneas iam e vinham pela passarela portando as tendências da alta-costura de 1967. Não poderia dar boa coisa, mas deu.

Heraldo em ação com sua guitarra Les Paul Foto: Carlos Sadao Myiabara

Foi entre um desfile e outro, e à revelia do contratante Ragan, o diretor de marketing da empresa que decidiu deixar Hermeto de fora por razões estéticas, que Heraldo, Airto e Theo confabularam uma histórica rebeldia sonora. Assim que retornassem das viagens, iriam chamar Hermeto de volta, dizer não a toda forma de jazz brasileiro que se impunha por aqueles anos sob a condição de samba jazz e criar uma expressão completamente nova e saída de uma parte do País que o “Sul” ainda não conhecia. Nada de blue notes, padrões de improviso do jazz nem cascatas folegosas de Charlie Parker.

  Eles queriam se livrar de toda infecção jazzística contraída por trios como Zimbo, Tamba, Jongo e os que seguiam Sergio Mendes, Edison Machado, Dom Um Romão e Milton Banana para usarem a matriz do baião, do xote, dos aboios, do maracatu, das modas e de todo o sertão para criar com ela uma música instrumental pura. Nem que, para isso, Heraldo tocasse um instrumento que esse meio não vira ainda e pelo qual ele próprio guardava preconceito: a viola.

A criação do Quarteto Novo é um episódio grande na vida de Heraldo do Monte, um ponto da linha do tempo da música brasileira – aquele em que ela descobre ter mais do que o samba para chamar de seu quando quiser brincar de jazz – e um dos trechos bem retratados por uma publicação que chega agora para lembrar a quem porventura possa ter se esquecido de que Heraldo, 85 anos, ainda é um dos maiores nomes da música brasileira. 

As Cordas Livres de Heraldo do Monte é a primeira publicação da série Brasil de Dentro, criada pelo Instituto Çarê para fazer um serviço público: sistematizar, editar e difundir obras de compositores brasileiros desse vulto. Por isso, o livro traz uma segunda parte com partituras de 58 temas criados por Heraldo e um CD com uma bela coletânea-curadoria, com composições como o impressionante Forrozin, Caboclo Elétrico, Giant Steps (de John Coltrane) e Meditando.

O recifense Heraldo, como o alagoano Hermeto, é uma daquelas flores de mandacaru que desabrocham sem água. Ele não sabia o que era um acorde ao violão quando o empunhou pela primeira vez. Não estudou, não teve um mestre e tudo o que sabia no início era tocar clarinete. Ou seja, cada uma das seis cordas de um violão eram pensadas como se fossem um clarinete diferente. Quem nasce assim não poderia mesmo ser igual a nada, mas não era o bastante.

Heraldo passou a buscar outros caminhos. “E a evitar as coisas que os outros guitarristas faziam”, conta. Assim, onde todos tocariam um vibrato típico, ele usa a carga do sangue árabe de um nordestino (as escalas desse povo estão impregnadas no solo de sua terra) para vibrar a corda como o canto de um aboio.

Quando o jazz chegou, na fase pré-Quarteto Novo, Heraldo não o repudiou. Adorava a sonoridade do opaco cristalino e sem agudos de Chuck Wayne, do grupo do pianista cego George Shearing. Muitos de seus primeiros álbuns como músico de estúdio, e eles são muitos, não são guardados com orgulho. “Não gosto, eles eram muito produzidos, os produtores só queriam vender discos. Fiz coisas bem comerciais. Até o timbre da guitarra era do produtor.” Mas era sua forma de ganhar dinheiro e ele se orgulha da carteira assinada e de viver de música, mesmo quando deveria colocar sua guitarra a serviço de Eu Não Sou Cachorro Não, de Waldick Soriano.  Momentos sublimes seriam vividos ao lado de Dolores Duran em pelo menos duas gravações magistrais. Para My Funny Valentine, standard definitivo de Richard Rodgers e Lorenz Hart, de 1937, Heraldo criou uma introdução, chamada tecnicamente de recitativo, para a qual usou seus dias de audição de música barroca, ainda uma de suas paixões, para investir em uma frase inspirada em uma fuga de Bach.

Com sua parceira de toda a vida, Lurdinha Foto: Carlos Sadao Myiabara

Ao passar pelo Brasil com a cantora Ella Fitzgerald, a maior da história, o guitarrista Jim Hall disse pessoalmente a Heraldo que havia comprado o disco para aprender a tocar a introdução que o brasileiro havia criado. E a própria Ella, conta a história, teria dito que a gravação de Dolores com Heraldo havia sido a melhor que ela escutou.

O jazz ficou doido pela guitarra sem precedentes de Heraldo do Monte. Ao ouvirem o disco do Quarteto Novo, mostrado por Airto Moreira, o tecladista Joe Zawinul e o saxofonista Wayne Shorter o convidaram para fazer parte da constelação que já formava o grupo Weather Report, incluindo Airto. Mas era muita trabalheira esse negócio de viver viajando e Heraldo, gentilmente, disse não. O livro narra algo do qual ele diz não se lembrar. Um ou dois anos mais tarde, teria sido a vez de Miles Davis tentar levá-lo para a gravação do disco Pop, de 1973. Mas deu preguiça de novo e Heraldo preferiu o Brasil.

A história passa por dois pontos obrigatórios e talvez os mais conhecidos: a participação do ainda Trio Novo nos festivais. Em 66, a formação que ficou para a posteridade por ter aparecido para acompanhar o vencedor Jair Rodrigues em Disparada não é a original, mas uma fake. Isso porque Theo, Airto e Heraldo estavam fazendo um show pela Rhodia em Natal, Rio Grande do Norte. No ano seguinte, eles, os originais, acompanharam Marilia Medalha em Ponteio, de Edu Lobo e Capinan e, finalmente, experimentaram uma vitória real. Uma das muitas que Heraldo viveria sem querer ser ninguém além de ele mesmo.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.