Hermeto Pascoal pensa como música. Aos 87 anos, o músico multi-instrumentista sabe estar aberto à inspiração que chega como o vento, como um fluxo contínuo, passa por ele e se transforma em partitura. Neste momento da vida, ele não se força a fazer música, ela flui. Se for premeditado, não tem pureza.
“Nada é premeditado”, diz ele, ao telefone, para o Estadão. “As coisas vêm até mim, eu não preciso chamar. Comparo o meu sentir com o vento, com a luz, com o sol, o céu, as estrelas. Tudo roda, não para. Pelo contrário, se transforma.”
Não por acaso, as pessoas ao redor do bruxo, como é carinhosamente chamado, já sabem que precisam estar atentas às todas as interações dele. Quando menos se espera, Hermeto pode entregar a um desconhecido uma música escrita em um guardanapo, ou folha de caderno, criada ali na hora. Seus produtores, sempre atentos, são sugeridos a fotografarem cada partitura, para catalogá-la e cadastrá-la.
Talvez um dos trabalhos mais hercúleos da música brasileira atual seja o de catalogação das músicas de Hermeto Pascoal. Durante a pandemia, foram registradas mais de mil músicas em nome dele. Tudo, absolutamente tudo que existe em papel, está acondicionado em um apartamento no bairro do Jabour, na zona oeste do Rio de Janeiro. A poucos metros de distância deste apartamento, Hermeto vive ao lado do filho e nora, Fábio Pascoal e Jeane.
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Neste arquivo gigantesco vertical, de gavetas, em que tudo está catalogado, havia um livro de partituras de capa cinza e branca. Um caderno Rialto de 200 páginas, da Casa Manon, icônica loja de instrumentos musicais de uma época boêmia de São Paulo, então localizada na Rua 24 de abril. Ali, estavam 198 partituras de músicas - choros, em sua maioria - criadas por Hermeto Pascoal, entre 4 de setembro de 1999 até 20 de março de 2000.
Dona Ilza da Silva, esposa de Hermeto Pascoal por 46 anos, morreu alguns meses depois da última partitura ter sido escrita, em 1º de novembro de 2000.
Há, entre os fãs de Hermeto, aqueles mais ardosos, quase como historiadores do bruxo, quem conhecia o livro. Era chamado de “o livro da Ilza”. Hermeto caminhava para cima e para baixo com o livro e o entregava às pessoas do convívio para que deixassem recados para a esposa nas primeiras folhas. “Amiga eterna em nossos corações”, diz uma dedicatória. “Ilza, que saudade daquela feijoada”, dizia outro.
Se durante a pandemia, o trabalho era catalogar e digitalizar o que havia sido escrito, no mundo pós-Covid, a ideia é colocar esse material no mundo. O primeiro projeto é Pra Você, Ilza, um álbum lançado nesta terça-feira, 28, pela editora Rocinante, em vinil (R$ 165) e nas plataformas de música por streaming.
Um álbum de choro, mas não só
Em uma conversa entre o produtor Flavio de Abreu e Fábio Pascoal, filho e percussionista d’O Grupo, nome do conjunto a acompanhar musicalmente Hermeto, durante uma turnê no Japão, em novembro de 2023, o livro dedicado à Ilza foi lembrado.
Em fevereiro de 2024, Hermeto e o Grupo já estavam reunidos no Estúdio Rocinante, na região serrana do estado do Rio, para a gravação das 13 faixas.
Neste disco, Hermeto mostra a maestria. Da folha de partitura, ele tinha uma melodia e harmonia. A partir dali, ele, André Marques (piano), Jota P (saxofone), Itiberê Zwarg (baixo), Ajurinã Zwarg (bateria) e Fábio Pascoal (percussão) criaram cada uma das músicas, seus arranjos, viradas e solos. Como um maestro, Hermeto usa sua musicalidade quase sobrenatural para reger, criar e expandir o que havia criado naquela folha de papel, com fraseados, loopings, e improviso.
“Gravamos neste lugar maravilhoso”, lembra-se Hermeto. “O grupo é muito bom, são músicos intuitivos, com facilidade de escrever as coisas também. Tocamos sem decorar. Fazíamos um pouco, depois quando voltávamos, já era outra coisa. Como digo: a criatividade é como o vento, não para.”
Por limitações físicas, o álbum digital tem três músicas a mais do que a versão em vinil - são elas Voltando Para casa, Na Feira do Jabour e No Topo do Morro de Aracajú - além de algumas pequenas mudanças na ordem das músicas para facilitar a narrativa.
O que costura cada uma das músicas, sobretudo, não é uma linha de raciocínio, com uma história contrata cronologicamente - talvez até porque, com Hermeto Pascoal, nada é tratado de firma linear, com começo, meio e fim.
“O que existe é um olhar sobre o todo. Da imaginação que veio e passou também”, explica Hermeto. ‘É preciso deixar a mente aberta para que essas coisas venham para a gente.”
Pra Você, Ilza então, é um disco sobre sensações e sentimentos. De modo geral, o que emana de cada uma das músicas é leveza, é amor cotidiano, como se Hermeto Pascoal fotografasse momentos de rotina ao lado da esposa com quem teve seis filhos, e transformasse a memória em sentimento, o sentimento em harmonias, notas e melodias. Não por acaso, Voltando Para Casa é cheia da excitação e saudade, enquanto Recordações de Recife é energética e, ao mesmo tempo, saudosa, enquanto Seus Lindos Olhos tenha uma repetição mais demarcada, como se Hermeto quisesse capturar um mesmo olhar recebido de Dona Ilza, algumas vezes nestas cinco décadas de coexistência entre eles.
Na capa, uma foto de Hermeto Pascoal e Ilza, tirada em novembro de 1999. Ela sorri, abraçada por ele, no registro em preto e branco. “É uma foto tirada depois do almoço”, recorda-se ele.
Este álbum não é, de forma alguma, triste ou melancólico. Hermeto acredita que viemos a este planeta com algum propósito. Que o que existe dentro de cada um de nós, a alma, está pronta para voltar para o ludar de onde viemos. “A gente sai de lá, fica um pouco aqui e volta para lá”, ele diz
Livro e exposição no Sesc
Não foi premeditado que Hermeto esteja em tantos lugares ao mesmo tempo. Além do álbum de inéditas, o bruxo também é tema da biografia Quebra Tudo!, a Arte Livre de Hermeto Pascoal (Kuarup, 280 pág, R$ 60), de Vitor Nuzzi, e da exposição Ars Sonora – Hermeto Pascoal (Sesc Bom Retiro, Alameda Nothmann, 185 - Campos Elíseos), aberta a partir deste 28 de maio e visitação até 3 de novembro.
Nuzzi, indicado ao prêmio Jabuti pelo livro Geraldo Vandré - Uma Canção Interrompida, fez um trabalho minucioso, com 50 entrevistas, para tentar documentar a riqueza da história de Hermeto, do nascimento em Alagoas, passando pela mudança para o Rio de Janeiro e o início da vida como artista autodidata. De pesquisa intensa, o livro documenta de forma bastante segura a vida e os feitos de Hermeto Pascoal - para um artista que acumula tantas histórias e músicas, um material desse vem bem a calhar.
Já a exposição mostra Hermeto Pascoal na condição de artista plástico, com a curadoria de Adolfo Montejo Navas, com entrada gratuita. Nela, estarão expostos parte do material que passou pelas mãos e anotações de Hermeto, como panos de prato, toalhas de mesa, sacolas, brinquedos, chapéus. Tudo vira partitura ou poesia, sempre.
Nenhuma das duas produções tem a criação vinda da equipe de Hermeto Pascoal, mas isso faz sentido.
Hermeto é, como ele mesmo diz ao Estadão, alguém do agora, do momento, da existência do presente. Isso não significa que ele ignora o passado, claro, mas este esmiuçamento do que passou ele deixa para os outros. Segundo a produção de Hermeto, novos discos vem aí, inclusive novas prensagens de clássicos.
“As pessoas falam do passado como se ele não prestasse”, valia Hermeto. “O passado está segurando eternamente o presente.” Ele respeita o passado, mas deixa-o para trás. Por isso, não para de escrever novas músicas. “Vem fácil porque minha mente está sempre aberta. Deixo ela assim, pronta para receber estas coisas. São intuições”, encerra o músico, como se fosse realmente fácil. Bom, no caso dele, até é.