Inspirado pelo clássico ‘Previsão do Tempo’, de 1973, Marcos Valle lança 'Cinzento' 


Artista prova a força e a juventude de sua linguagem ao se unir a parceiros jovens para o novo disco

Por Julio Maria
Atualização:

Marcos Valle tem uma mensagem do tempo nas mãos. Um álbum de temas inéditos feito com muitos parceiros letristas de várias frentes, uma inspiração instrumental retirada da aura de seu cultuado LP Previsão do Tempo, que gravou com o Azymuth, em 1973, e uma pertinente reflexão. Adotado como bossa-novista de grandeza da segunda geração do gênero por Tom Jobim e Carlos Lyra, autor de Samba de Verão, uma das canções brasileiras mais regravadas no exterior, o que ele recebe de uma plateia em fluxo constante de renovação, que garimpa seus discos nos sebos e nos sites de raridade, tem menos a ver com a própria bossa e mais com um pensamento musical livre para além de um formalismo que poderia tê-lo como refém. Aos 76 anos medidos por alguma régua que não passa pelo tempo, ele chega a Cinzento estabelecendo uma ponte sólida entre gerações.

Cinzento não é um disco instrumentalmente cinza, embora sua ideia seja falar um pouco dos dias gris atuais, tão diferentes do colorido que inspirou boa parte de sua vida. Enquanto produzia com Roberto Menescal um disco de Fernanda Takai na gravadora Deck Disc, O Tom da Takai, o produtor Rafael Ramos jogou a semente: “Por que não fazer um disco seu aqui?”. Um tempo depois, seduzido pela companhia de pianos Rhodes e caixas Leslie do estúdio, Valle, que tinha coincidentemente Previsão do Tempo sendo relançado em vinil, aceitou a proposta. Fazer um álbum que navegasse nas águas de Previsão, apostando em um material de instrumentação menor, com teclado, baixo e bateria ditando o groove. E o que viesse a mais seria luxo.

Valle.Discotem duas parcerias com o rapper Emicida Foto: JORGE BISPO
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As melodias começaram a sair, e vieram logo quatro. As letras seriam pedidas para pessoas que já haviam declarado, de alguma forma, terem influências de Previsão do Tempo em suas carreiras, e aí vieram Moreno Veloso, Bem Gil, Alexandre Kassin, Domenico Lancelotti. De disco ativado, e mais melodias saindo, uma nova foi enviada a Zélia Duncan, que respondeu com uma letra no seguinte. Outro tema em sete por oito, um tempo dos jazzistas, foi parar nas mãos de Jorge Vercillo, que mandou também a letra de Só Penso em Jazz no dia seguinte. Paulo Sérgio Valle, irmão de Marcos, presente em Previsão, entrou com Nada Existe, e Ronaldo Bastos veio com Posto 9, um instrumental do álbum Jet Samba, que ganhou letra. Emicida chegou com força, depois de uma ponte feita pelo produtor Marcus Preto, para letrar a melodia desdobrada que virou Reciclo e uma segunda, forte de discurso e flutuante no clima, chamada Cinzento, a que deu nome a tudo. Entraram ainda duas instrumentais, Sem Palavras, que remete ao medo da censura, ou da autocensura dos tempos sombrios, e a melancolia de Lamento no Rhodes.

Instado a pensar sobre a própria carreira, em paralelo a outros projetos, Marcos faz seu sobrevoo desde 1963, quando sai com Samba Demais depois de formar um trio com Edu Lobo e Dori Caymmi. Ali, nada era mais forte do que a bossa nova. Ao menos, no que se podia ver. “A verdade é que eu vivo música desde antes dos 6 anos de idade. Ouço baião, jazz, marcha, e depois rock e música negra americana. Isso já vinha formando minha cabeça antes.” Quando chegam João Gilberto e Tom Jobim, uma onda se ergue para devastar todas as outras. “Já no primeiro disco, a bossa acaba escondendo as outras influências, que depois eu retomaria.” O segundo álbum, de 1965, aponta, ainda que muito levemente, para um Brasil um pouco maior, do samba e do baião, e traz pelo menos duas joias eternas, Eu Preciso Aprender a Ser Só e ela, Samba de Verão, todas com o irmão Paulo Sérgio.

Valle viaja para os Estados Unidos ainda sob o manto de representante da segunda geração da bossa nova, toca com Sérgio Mendes e grava dois discos por lá, Braziliance! A Música de Marcos Valle e Samba’68. “Eu havia assumido um compromisso com a bossa nova, mas minha música não poderia parar ali, eu estava cheio de coisas na cabeça. E pouco a pouco, comecei a abrir um caminho novo, mesmo sabendo que alguns poderiam se decepcionar com isso.” 

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Em um movimento arriscado, grava em 1969 o álbum Mustang Cor de Sangue e se aproxima da pilantragem de Wilson Simonal, por quem seria gravado, mas também faixas como Azimuth e Dia de Vitória. “Aqui eu abro totalmente. Era o meu lado jovem dizendo que eu deveria vir com tudo.”

Mais pop, mais jovem, menos cerimonial, Valle quebrava os votos de castidade dos bossa-novistas para dormir com o rock norte-americano e acordar com a soul music que conhecera nos Estados Unidos dos anos 1960, em suas primeiras viagens por lá. Ganhava, assim, uma inserção no universo do groove que garantiria uma vida rejuvenescida não apenas fisicamente. A plateia que verá o show de Cinzento na casa Audio, no dia 14 de fevereiro, com Valle e mais cinco DJs, quer saber pouco das canções esculpidas por ele na bossa nova e mais de seu poder diante de um Rhodes.

Sua manobra lenta, gradual e cautelosa feita nos anos 70, com temas instrumentais considerados pop mas que soavam tão profundos quanto tudo o que havia feito antes, evitou um rompimento com uma turma que também não o abandonou. Ao mesmo tempo que se apresenta com o Azymuth, a banda que batizou nos dias de Previsão do Tempo, ele também está ao lado de Dori e Edu para projetos que lembram seus dias mais seminais no gênero. Sem se vulgarizar, conseguiu uma aproximação de Simonal, criticado por fazer muita música de ocasião na pilantragem criada por Carlos Imperial, sem se distanciar de Tom Jobim, um movimento espetacular que, dos bossa-novistas, apenas ele conseguiu fazer. João Donato conseguiu algo parecido depois de ser absorvido pelos núcleos de música latino-americana nos anos em que tocou nos Estados Unidos com as orquestras de Mongo Santamaria e Tito Puente. Sua longevidade para além da bossa nova se daria via Cuba, um outro caminho.

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As viagens de Marcos Valle aos Estados Unidos podem ter contribuído para a criação de uma linguagem mais livre e forjada no suingue, dessacralizando a brasilidade alimentada por aqueles que ficaram. Assim, sua carreira mais elástica pode ser um dos fatores que o levam a experimentar uma renovação de plateia constante que pares como Edu Lobo, Dori Caymmi, Roberto Menescal e Carlos Lyra, do alto de seus poderes incontestáveis, podem saborear menos.

Foi por pouco que Valle não entrou em algumas das portas que se abriram a seu lado. “Eu não pensei nisso à época, na verdade, mas nunca tive nada contra aos movimentos como Jovem Guarda e Tropicália, gostava da chegada das guitarras, acabaria fazendo músicas com Erasmo Carlos.” E por que não se tornou um deles? “Naquele momento, dentro mim, eu pensava em ter um caminho próprio.”

Álbum conceitual. De volta a Cinzento, o álbum partiu de um conceito comparativo que pode ter sido pensado também em seu projeto visual. Na capa de Previsão do Tempo, Marcos Valle aparece de corpo inteiro debaixo d’água em uma piscina com uma expressão de agonia, uma cena de afogamento, que remete ao sufoco que era em 1973 não poder dizer exatamente o que pensava. Em Cinzento, 47 anos depois, ele aparece saindo de um saco plástico com expressão grave. Os motivos, diz, são os mesmos, ainda que em contextos diferentes.

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Mas o disco não se torna uma artilharia verbal nem nos momentos em que sugeriria algo mais pesado. As letras de Emicida, como são as de seu disco mais recente, AmarElo, em que Valle aparece tocando teclado, contornam o enfrentamento com figuras que suavizam o alvo. “Como testemunha, os cabelos e as unhas / As velhas mumunhas, e a risada dessa alcunha / Com a beleza das folhas do outono se vai / Como o tempo se esvai e eu tô como? / Num bye bye pro ontem, que contém o ônus / Duro aprendizado, que me deu mais tônus / E cada dia aqui é um bônus / Na dança, oxigênio e carbono / Menino, rapaz, com a paz de um bom sono / Jamais escapar da voraz fome de Cronos / Alma livre onde ninguém é colono / Bem guapa, escapa da farpa do abandono / Paciência pra vida não ser mono.”

A volta de ‘Previsão’

Desde que foi relançado em vinil, Previsão do Tempo, o décimo disco de Valle, se tornou uma das frentes de shows de sua carreira. Os próximos serão nos dias 1.º e 2 de fevereiro, no Sesc Belenzinho, com uma gig que deixa os shows à estatura do que faziam José Roberto Bertrami (teclados), Alex Malheiros (baixo) e Ivan Conti Mamão (bateria), o trio Azymuth. No Belenzinho, estarão com Valle Patrícia Alví (vocal), Alberto Continentino (baixo), Renato Massa Calmon (bateria), Paulinho Guitarra (guitarra e violão), Donatinho (teclados) e Jessé Sadoc (trompete).

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Marcos Valle tem uma mensagem do tempo nas mãos. Um álbum de temas inéditos feito com muitos parceiros letristas de várias frentes, uma inspiração instrumental retirada da aura de seu cultuado LP Previsão do Tempo, que gravou com o Azymuth, em 1973, e uma pertinente reflexão. Adotado como bossa-novista de grandeza da segunda geração do gênero por Tom Jobim e Carlos Lyra, autor de Samba de Verão, uma das canções brasileiras mais regravadas no exterior, o que ele recebe de uma plateia em fluxo constante de renovação, que garimpa seus discos nos sebos e nos sites de raridade, tem menos a ver com a própria bossa e mais com um pensamento musical livre para além de um formalismo que poderia tê-lo como refém. Aos 76 anos medidos por alguma régua que não passa pelo tempo, ele chega a Cinzento estabelecendo uma ponte sólida entre gerações.

Cinzento não é um disco instrumentalmente cinza, embora sua ideia seja falar um pouco dos dias gris atuais, tão diferentes do colorido que inspirou boa parte de sua vida. Enquanto produzia com Roberto Menescal um disco de Fernanda Takai na gravadora Deck Disc, O Tom da Takai, o produtor Rafael Ramos jogou a semente: “Por que não fazer um disco seu aqui?”. Um tempo depois, seduzido pela companhia de pianos Rhodes e caixas Leslie do estúdio, Valle, que tinha coincidentemente Previsão do Tempo sendo relançado em vinil, aceitou a proposta. Fazer um álbum que navegasse nas águas de Previsão, apostando em um material de instrumentação menor, com teclado, baixo e bateria ditando o groove. E o que viesse a mais seria luxo.

Valle.Discotem duas parcerias com o rapper Emicida Foto: JORGE BISPO

As melodias começaram a sair, e vieram logo quatro. As letras seriam pedidas para pessoas que já haviam declarado, de alguma forma, terem influências de Previsão do Tempo em suas carreiras, e aí vieram Moreno Veloso, Bem Gil, Alexandre Kassin, Domenico Lancelotti. De disco ativado, e mais melodias saindo, uma nova foi enviada a Zélia Duncan, que respondeu com uma letra no seguinte. Outro tema em sete por oito, um tempo dos jazzistas, foi parar nas mãos de Jorge Vercillo, que mandou também a letra de Só Penso em Jazz no dia seguinte. Paulo Sérgio Valle, irmão de Marcos, presente em Previsão, entrou com Nada Existe, e Ronaldo Bastos veio com Posto 9, um instrumental do álbum Jet Samba, que ganhou letra. Emicida chegou com força, depois de uma ponte feita pelo produtor Marcus Preto, para letrar a melodia desdobrada que virou Reciclo e uma segunda, forte de discurso e flutuante no clima, chamada Cinzento, a que deu nome a tudo. Entraram ainda duas instrumentais, Sem Palavras, que remete ao medo da censura, ou da autocensura dos tempos sombrios, e a melancolia de Lamento no Rhodes.

Instado a pensar sobre a própria carreira, em paralelo a outros projetos, Marcos faz seu sobrevoo desde 1963, quando sai com Samba Demais depois de formar um trio com Edu Lobo e Dori Caymmi. Ali, nada era mais forte do que a bossa nova. Ao menos, no que se podia ver. “A verdade é que eu vivo música desde antes dos 6 anos de idade. Ouço baião, jazz, marcha, e depois rock e música negra americana. Isso já vinha formando minha cabeça antes.” Quando chegam João Gilberto e Tom Jobim, uma onda se ergue para devastar todas as outras. “Já no primeiro disco, a bossa acaba escondendo as outras influências, que depois eu retomaria.” O segundo álbum, de 1965, aponta, ainda que muito levemente, para um Brasil um pouco maior, do samba e do baião, e traz pelo menos duas joias eternas, Eu Preciso Aprender a Ser Só e ela, Samba de Verão, todas com o irmão Paulo Sérgio.

Valle viaja para os Estados Unidos ainda sob o manto de representante da segunda geração da bossa nova, toca com Sérgio Mendes e grava dois discos por lá, Braziliance! A Música de Marcos Valle e Samba’68. “Eu havia assumido um compromisso com a bossa nova, mas minha música não poderia parar ali, eu estava cheio de coisas na cabeça. E pouco a pouco, comecei a abrir um caminho novo, mesmo sabendo que alguns poderiam se decepcionar com isso.” 

Em um movimento arriscado, grava em 1969 o álbum Mustang Cor de Sangue e se aproxima da pilantragem de Wilson Simonal, por quem seria gravado, mas também faixas como Azimuth e Dia de Vitória. “Aqui eu abro totalmente. Era o meu lado jovem dizendo que eu deveria vir com tudo.”

Mais pop, mais jovem, menos cerimonial, Valle quebrava os votos de castidade dos bossa-novistas para dormir com o rock norte-americano e acordar com a soul music que conhecera nos Estados Unidos dos anos 1960, em suas primeiras viagens por lá. Ganhava, assim, uma inserção no universo do groove que garantiria uma vida rejuvenescida não apenas fisicamente. A plateia que verá o show de Cinzento na casa Audio, no dia 14 de fevereiro, com Valle e mais cinco DJs, quer saber pouco das canções esculpidas por ele na bossa nova e mais de seu poder diante de um Rhodes.

Sua manobra lenta, gradual e cautelosa feita nos anos 70, com temas instrumentais considerados pop mas que soavam tão profundos quanto tudo o que havia feito antes, evitou um rompimento com uma turma que também não o abandonou. Ao mesmo tempo que se apresenta com o Azymuth, a banda que batizou nos dias de Previsão do Tempo, ele também está ao lado de Dori e Edu para projetos que lembram seus dias mais seminais no gênero. Sem se vulgarizar, conseguiu uma aproximação de Simonal, criticado por fazer muita música de ocasião na pilantragem criada por Carlos Imperial, sem se distanciar de Tom Jobim, um movimento espetacular que, dos bossa-novistas, apenas ele conseguiu fazer. João Donato conseguiu algo parecido depois de ser absorvido pelos núcleos de música latino-americana nos anos em que tocou nos Estados Unidos com as orquestras de Mongo Santamaria e Tito Puente. Sua longevidade para além da bossa nova se daria via Cuba, um outro caminho.

As viagens de Marcos Valle aos Estados Unidos podem ter contribuído para a criação de uma linguagem mais livre e forjada no suingue, dessacralizando a brasilidade alimentada por aqueles que ficaram. Assim, sua carreira mais elástica pode ser um dos fatores que o levam a experimentar uma renovação de plateia constante que pares como Edu Lobo, Dori Caymmi, Roberto Menescal e Carlos Lyra, do alto de seus poderes incontestáveis, podem saborear menos.

Foi por pouco que Valle não entrou em algumas das portas que se abriram a seu lado. “Eu não pensei nisso à época, na verdade, mas nunca tive nada contra aos movimentos como Jovem Guarda e Tropicália, gostava da chegada das guitarras, acabaria fazendo músicas com Erasmo Carlos.” E por que não se tornou um deles? “Naquele momento, dentro mim, eu pensava em ter um caminho próprio.”

Álbum conceitual. De volta a Cinzento, o álbum partiu de um conceito comparativo que pode ter sido pensado também em seu projeto visual. Na capa de Previsão do Tempo, Marcos Valle aparece de corpo inteiro debaixo d’água em uma piscina com uma expressão de agonia, uma cena de afogamento, que remete ao sufoco que era em 1973 não poder dizer exatamente o que pensava. Em Cinzento, 47 anos depois, ele aparece saindo de um saco plástico com expressão grave. Os motivos, diz, são os mesmos, ainda que em contextos diferentes.

Mas o disco não se torna uma artilharia verbal nem nos momentos em que sugeriria algo mais pesado. As letras de Emicida, como são as de seu disco mais recente, AmarElo, em que Valle aparece tocando teclado, contornam o enfrentamento com figuras que suavizam o alvo. “Como testemunha, os cabelos e as unhas / As velhas mumunhas, e a risada dessa alcunha / Com a beleza das folhas do outono se vai / Como o tempo se esvai e eu tô como? / Num bye bye pro ontem, que contém o ônus / Duro aprendizado, que me deu mais tônus / E cada dia aqui é um bônus / Na dança, oxigênio e carbono / Menino, rapaz, com a paz de um bom sono / Jamais escapar da voraz fome de Cronos / Alma livre onde ninguém é colono / Bem guapa, escapa da farpa do abandono / Paciência pra vida não ser mono.”

A volta de ‘Previsão’

Desde que foi relançado em vinil, Previsão do Tempo, o décimo disco de Valle, se tornou uma das frentes de shows de sua carreira. Os próximos serão nos dias 1.º e 2 de fevereiro, no Sesc Belenzinho, com uma gig que deixa os shows à estatura do que faziam José Roberto Bertrami (teclados), Alex Malheiros (baixo) e Ivan Conti Mamão (bateria), o trio Azymuth. No Belenzinho, estarão com Valle Patrícia Alví (vocal), Alberto Continentino (baixo), Renato Massa Calmon (bateria), Paulinho Guitarra (guitarra e violão), Donatinho (teclados) e Jessé Sadoc (trompete).

Marcos Valle tem uma mensagem do tempo nas mãos. Um álbum de temas inéditos feito com muitos parceiros letristas de várias frentes, uma inspiração instrumental retirada da aura de seu cultuado LP Previsão do Tempo, que gravou com o Azymuth, em 1973, e uma pertinente reflexão. Adotado como bossa-novista de grandeza da segunda geração do gênero por Tom Jobim e Carlos Lyra, autor de Samba de Verão, uma das canções brasileiras mais regravadas no exterior, o que ele recebe de uma plateia em fluxo constante de renovação, que garimpa seus discos nos sebos e nos sites de raridade, tem menos a ver com a própria bossa e mais com um pensamento musical livre para além de um formalismo que poderia tê-lo como refém. Aos 76 anos medidos por alguma régua que não passa pelo tempo, ele chega a Cinzento estabelecendo uma ponte sólida entre gerações.

Cinzento não é um disco instrumentalmente cinza, embora sua ideia seja falar um pouco dos dias gris atuais, tão diferentes do colorido que inspirou boa parte de sua vida. Enquanto produzia com Roberto Menescal um disco de Fernanda Takai na gravadora Deck Disc, O Tom da Takai, o produtor Rafael Ramos jogou a semente: “Por que não fazer um disco seu aqui?”. Um tempo depois, seduzido pela companhia de pianos Rhodes e caixas Leslie do estúdio, Valle, que tinha coincidentemente Previsão do Tempo sendo relançado em vinil, aceitou a proposta. Fazer um álbum que navegasse nas águas de Previsão, apostando em um material de instrumentação menor, com teclado, baixo e bateria ditando o groove. E o que viesse a mais seria luxo.

Valle.Discotem duas parcerias com o rapper Emicida Foto: JORGE BISPO

As melodias começaram a sair, e vieram logo quatro. As letras seriam pedidas para pessoas que já haviam declarado, de alguma forma, terem influências de Previsão do Tempo em suas carreiras, e aí vieram Moreno Veloso, Bem Gil, Alexandre Kassin, Domenico Lancelotti. De disco ativado, e mais melodias saindo, uma nova foi enviada a Zélia Duncan, que respondeu com uma letra no seguinte. Outro tema em sete por oito, um tempo dos jazzistas, foi parar nas mãos de Jorge Vercillo, que mandou também a letra de Só Penso em Jazz no dia seguinte. Paulo Sérgio Valle, irmão de Marcos, presente em Previsão, entrou com Nada Existe, e Ronaldo Bastos veio com Posto 9, um instrumental do álbum Jet Samba, que ganhou letra. Emicida chegou com força, depois de uma ponte feita pelo produtor Marcus Preto, para letrar a melodia desdobrada que virou Reciclo e uma segunda, forte de discurso e flutuante no clima, chamada Cinzento, a que deu nome a tudo. Entraram ainda duas instrumentais, Sem Palavras, que remete ao medo da censura, ou da autocensura dos tempos sombrios, e a melancolia de Lamento no Rhodes.

Instado a pensar sobre a própria carreira, em paralelo a outros projetos, Marcos faz seu sobrevoo desde 1963, quando sai com Samba Demais depois de formar um trio com Edu Lobo e Dori Caymmi. Ali, nada era mais forte do que a bossa nova. Ao menos, no que se podia ver. “A verdade é que eu vivo música desde antes dos 6 anos de idade. Ouço baião, jazz, marcha, e depois rock e música negra americana. Isso já vinha formando minha cabeça antes.” Quando chegam João Gilberto e Tom Jobim, uma onda se ergue para devastar todas as outras. “Já no primeiro disco, a bossa acaba escondendo as outras influências, que depois eu retomaria.” O segundo álbum, de 1965, aponta, ainda que muito levemente, para um Brasil um pouco maior, do samba e do baião, e traz pelo menos duas joias eternas, Eu Preciso Aprender a Ser Só e ela, Samba de Verão, todas com o irmão Paulo Sérgio.

Valle viaja para os Estados Unidos ainda sob o manto de representante da segunda geração da bossa nova, toca com Sérgio Mendes e grava dois discos por lá, Braziliance! A Música de Marcos Valle e Samba’68. “Eu havia assumido um compromisso com a bossa nova, mas minha música não poderia parar ali, eu estava cheio de coisas na cabeça. E pouco a pouco, comecei a abrir um caminho novo, mesmo sabendo que alguns poderiam se decepcionar com isso.” 

Em um movimento arriscado, grava em 1969 o álbum Mustang Cor de Sangue e se aproxima da pilantragem de Wilson Simonal, por quem seria gravado, mas também faixas como Azimuth e Dia de Vitória. “Aqui eu abro totalmente. Era o meu lado jovem dizendo que eu deveria vir com tudo.”

Mais pop, mais jovem, menos cerimonial, Valle quebrava os votos de castidade dos bossa-novistas para dormir com o rock norte-americano e acordar com a soul music que conhecera nos Estados Unidos dos anos 1960, em suas primeiras viagens por lá. Ganhava, assim, uma inserção no universo do groove que garantiria uma vida rejuvenescida não apenas fisicamente. A plateia que verá o show de Cinzento na casa Audio, no dia 14 de fevereiro, com Valle e mais cinco DJs, quer saber pouco das canções esculpidas por ele na bossa nova e mais de seu poder diante de um Rhodes.

Sua manobra lenta, gradual e cautelosa feita nos anos 70, com temas instrumentais considerados pop mas que soavam tão profundos quanto tudo o que havia feito antes, evitou um rompimento com uma turma que também não o abandonou. Ao mesmo tempo que se apresenta com o Azymuth, a banda que batizou nos dias de Previsão do Tempo, ele também está ao lado de Dori e Edu para projetos que lembram seus dias mais seminais no gênero. Sem se vulgarizar, conseguiu uma aproximação de Simonal, criticado por fazer muita música de ocasião na pilantragem criada por Carlos Imperial, sem se distanciar de Tom Jobim, um movimento espetacular que, dos bossa-novistas, apenas ele conseguiu fazer. João Donato conseguiu algo parecido depois de ser absorvido pelos núcleos de música latino-americana nos anos em que tocou nos Estados Unidos com as orquestras de Mongo Santamaria e Tito Puente. Sua longevidade para além da bossa nova se daria via Cuba, um outro caminho.

As viagens de Marcos Valle aos Estados Unidos podem ter contribuído para a criação de uma linguagem mais livre e forjada no suingue, dessacralizando a brasilidade alimentada por aqueles que ficaram. Assim, sua carreira mais elástica pode ser um dos fatores que o levam a experimentar uma renovação de plateia constante que pares como Edu Lobo, Dori Caymmi, Roberto Menescal e Carlos Lyra, do alto de seus poderes incontestáveis, podem saborear menos.

Foi por pouco que Valle não entrou em algumas das portas que se abriram a seu lado. “Eu não pensei nisso à época, na verdade, mas nunca tive nada contra aos movimentos como Jovem Guarda e Tropicália, gostava da chegada das guitarras, acabaria fazendo músicas com Erasmo Carlos.” E por que não se tornou um deles? “Naquele momento, dentro mim, eu pensava em ter um caminho próprio.”

Álbum conceitual. De volta a Cinzento, o álbum partiu de um conceito comparativo que pode ter sido pensado também em seu projeto visual. Na capa de Previsão do Tempo, Marcos Valle aparece de corpo inteiro debaixo d’água em uma piscina com uma expressão de agonia, uma cena de afogamento, que remete ao sufoco que era em 1973 não poder dizer exatamente o que pensava. Em Cinzento, 47 anos depois, ele aparece saindo de um saco plástico com expressão grave. Os motivos, diz, são os mesmos, ainda que em contextos diferentes.

Mas o disco não se torna uma artilharia verbal nem nos momentos em que sugeriria algo mais pesado. As letras de Emicida, como são as de seu disco mais recente, AmarElo, em que Valle aparece tocando teclado, contornam o enfrentamento com figuras que suavizam o alvo. “Como testemunha, os cabelos e as unhas / As velhas mumunhas, e a risada dessa alcunha / Com a beleza das folhas do outono se vai / Como o tempo se esvai e eu tô como? / Num bye bye pro ontem, que contém o ônus / Duro aprendizado, que me deu mais tônus / E cada dia aqui é um bônus / Na dança, oxigênio e carbono / Menino, rapaz, com a paz de um bom sono / Jamais escapar da voraz fome de Cronos / Alma livre onde ninguém é colono / Bem guapa, escapa da farpa do abandono / Paciência pra vida não ser mono.”

A volta de ‘Previsão’

Desde que foi relançado em vinil, Previsão do Tempo, o décimo disco de Valle, se tornou uma das frentes de shows de sua carreira. Os próximos serão nos dias 1.º e 2 de fevereiro, no Sesc Belenzinho, com uma gig que deixa os shows à estatura do que faziam José Roberto Bertrami (teclados), Alex Malheiros (baixo) e Ivan Conti Mamão (bateria), o trio Azymuth. No Belenzinho, estarão com Valle Patrícia Alví (vocal), Alberto Continentino (baixo), Renato Massa Calmon (bateria), Paulinho Guitarra (guitarra e violão), Donatinho (teclados) e Jessé Sadoc (trompete).

Marcos Valle tem uma mensagem do tempo nas mãos. Um álbum de temas inéditos feito com muitos parceiros letristas de várias frentes, uma inspiração instrumental retirada da aura de seu cultuado LP Previsão do Tempo, que gravou com o Azymuth, em 1973, e uma pertinente reflexão. Adotado como bossa-novista de grandeza da segunda geração do gênero por Tom Jobim e Carlos Lyra, autor de Samba de Verão, uma das canções brasileiras mais regravadas no exterior, o que ele recebe de uma plateia em fluxo constante de renovação, que garimpa seus discos nos sebos e nos sites de raridade, tem menos a ver com a própria bossa e mais com um pensamento musical livre para além de um formalismo que poderia tê-lo como refém. Aos 76 anos medidos por alguma régua que não passa pelo tempo, ele chega a Cinzento estabelecendo uma ponte sólida entre gerações.

Cinzento não é um disco instrumentalmente cinza, embora sua ideia seja falar um pouco dos dias gris atuais, tão diferentes do colorido que inspirou boa parte de sua vida. Enquanto produzia com Roberto Menescal um disco de Fernanda Takai na gravadora Deck Disc, O Tom da Takai, o produtor Rafael Ramos jogou a semente: “Por que não fazer um disco seu aqui?”. Um tempo depois, seduzido pela companhia de pianos Rhodes e caixas Leslie do estúdio, Valle, que tinha coincidentemente Previsão do Tempo sendo relançado em vinil, aceitou a proposta. Fazer um álbum que navegasse nas águas de Previsão, apostando em um material de instrumentação menor, com teclado, baixo e bateria ditando o groove. E o que viesse a mais seria luxo.

Valle.Discotem duas parcerias com o rapper Emicida Foto: JORGE BISPO

As melodias começaram a sair, e vieram logo quatro. As letras seriam pedidas para pessoas que já haviam declarado, de alguma forma, terem influências de Previsão do Tempo em suas carreiras, e aí vieram Moreno Veloso, Bem Gil, Alexandre Kassin, Domenico Lancelotti. De disco ativado, e mais melodias saindo, uma nova foi enviada a Zélia Duncan, que respondeu com uma letra no seguinte. Outro tema em sete por oito, um tempo dos jazzistas, foi parar nas mãos de Jorge Vercillo, que mandou também a letra de Só Penso em Jazz no dia seguinte. Paulo Sérgio Valle, irmão de Marcos, presente em Previsão, entrou com Nada Existe, e Ronaldo Bastos veio com Posto 9, um instrumental do álbum Jet Samba, que ganhou letra. Emicida chegou com força, depois de uma ponte feita pelo produtor Marcus Preto, para letrar a melodia desdobrada que virou Reciclo e uma segunda, forte de discurso e flutuante no clima, chamada Cinzento, a que deu nome a tudo. Entraram ainda duas instrumentais, Sem Palavras, que remete ao medo da censura, ou da autocensura dos tempos sombrios, e a melancolia de Lamento no Rhodes.

Instado a pensar sobre a própria carreira, em paralelo a outros projetos, Marcos faz seu sobrevoo desde 1963, quando sai com Samba Demais depois de formar um trio com Edu Lobo e Dori Caymmi. Ali, nada era mais forte do que a bossa nova. Ao menos, no que se podia ver. “A verdade é que eu vivo música desde antes dos 6 anos de idade. Ouço baião, jazz, marcha, e depois rock e música negra americana. Isso já vinha formando minha cabeça antes.” Quando chegam João Gilberto e Tom Jobim, uma onda se ergue para devastar todas as outras. “Já no primeiro disco, a bossa acaba escondendo as outras influências, que depois eu retomaria.” O segundo álbum, de 1965, aponta, ainda que muito levemente, para um Brasil um pouco maior, do samba e do baião, e traz pelo menos duas joias eternas, Eu Preciso Aprender a Ser Só e ela, Samba de Verão, todas com o irmão Paulo Sérgio.

Valle viaja para os Estados Unidos ainda sob o manto de representante da segunda geração da bossa nova, toca com Sérgio Mendes e grava dois discos por lá, Braziliance! A Música de Marcos Valle e Samba’68. “Eu havia assumido um compromisso com a bossa nova, mas minha música não poderia parar ali, eu estava cheio de coisas na cabeça. E pouco a pouco, comecei a abrir um caminho novo, mesmo sabendo que alguns poderiam se decepcionar com isso.” 

Em um movimento arriscado, grava em 1969 o álbum Mustang Cor de Sangue e se aproxima da pilantragem de Wilson Simonal, por quem seria gravado, mas também faixas como Azimuth e Dia de Vitória. “Aqui eu abro totalmente. Era o meu lado jovem dizendo que eu deveria vir com tudo.”

Mais pop, mais jovem, menos cerimonial, Valle quebrava os votos de castidade dos bossa-novistas para dormir com o rock norte-americano e acordar com a soul music que conhecera nos Estados Unidos dos anos 1960, em suas primeiras viagens por lá. Ganhava, assim, uma inserção no universo do groove que garantiria uma vida rejuvenescida não apenas fisicamente. A plateia que verá o show de Cinzento na casa Audio, no dia 14 de fevereiro, com Valle e mais cinco DJs, quer saber pouco das canções esculpidas por ele na bossa nova e mais de seu poder diante de um Rhodes.

Sua manobra lenta, gradual e cautelosa feita nos anos 70, com temas instrumentais considerados pop mas que soavam tão profundos quanto tudo o que havia feito antes, evitou um rompimento com uma turma que também não o abandonou. Ao mesmo tempo que se apresenta com o Azymuth, a banda que batizou nos dias de Previsão do Tempo, ele também está ao lado de Dori e Edu para projetos que lembram seus dias mais seminais no gênero. Sem se vulgarizar, conseguiu uma aproximação de Simonal, criticado por fazer muita música de ocasião na pilantragem criada por Carlos Imperial, sem se distanciar de Tom Jobim, um movimento espetacular que, dos bossa-novistas, apenas ele conseguiu fazer. João Donato conseguiu algo parecido depois de ser absorvido pelos núcleos de música latino-americana nos anos em que tocou nos Estados Unidos com as orquestras de Mongo Santamaria e Tito Puente. Sua longevidade para além da bossa nova se daria via Cuba, um outro caminho.

As viagens de Marcos Valle aos Estados Unidos podem ter contribuído para a criação de uma linguagem mais livre e forjada no suingue, dessacralizando a brasilidade alimentada por aqueles que ficaram. Assim, sua carreira mais elástica pode ser um dos fatores que o levam a experimentar uma renovação de plateia constante que pares como Edu Lobo, Dori Caymmi, Roberto Menescal e Carlos Lyra, do alto de seus poderes incontestáveis, podem saborear menos.

Foi por pouco que Valle não entrou em algumas das portas que se abriram a seu lado. “Eu não pensei nisso à época, na verdade, mas nunca tive nada contra aos movimentos como Jovem Guarda e Tropicália, gostava da chegada das guitarras, acabaria fazendo músicas com Erasmo Carlos.” E por que não se tornou um deles? “Naquele momento, dentro mim, eu pensava em ter um caminho próprio.”

Álbum conceitual. De volta a Cinzento, o álbum partiu de um conceito comparativo que pode ter sido pensado também em seu projeto visual. Na capa de Previsão do Tempo, Marcos Valle aparece de corpo inteiro debaixo d’água em uma piscina com uma expressão de agonia, uma cena de afogamento, que remete ao sufoco que era em 1973 não poder dizer exatamente o que pensava. Em Cinzento, 47 anos depois, ele aparece saindo de um saco plástico com expressão grave. Os motivos, diz, são os mesmos, ainda que em contextos diferentes.

Mas o disco não se torna uma artilharia verbal nem nos momentos em que sugeriria algo mais pesado. As letras de Emicida, como são as de seu disco mais recente, AmarElo, em que Valle aparece tocando teclado, contornam o enfrentamento com figuras que suavizam o alvo. “Como testemunha, os cabelos e as unhas / As velhas mumunhas, e a risada dessa alcunha / Com a beleza das folhas do outono se vai / Como o tempo se esvai e eu tô como? / Num bye bye pro ontem, que contém o ônus / Duro aprendizado, que me deu mais tônus / E cada dia aqui é um bônus / Na dança, oxigênio e carbono / Menino, rapaz, com a paz de um bom sono / Jamais escapar da voraz fome de Cronos / Alma livre onde ninguém é colono / Bem guapa, escapa da farpa do abandono / Paciência pra vida não ser mono.”

A volta de ‘Previsão’

Desde que foi relançado em vinil, Previsão do Tempo, o décimo disco de Valle, se tornou uma das frentes de shows de sua carreira. Os próximos serão nos dias 1.º e 2 de fevereiro, no Sesc Belenzinho, com uma gig que deixa os shows à estatura do que faziam José Roberto Bertrami (teclados), Alex Malheiros (baixo) e Ivan Conti Mamão (bateria), o trio Azymuth. No Belenzinho, estarão com Valle Patrícia Alví (vocal), Alberto Continentino (baixo), Renato Massa Calmon (bateria), Paulinho Guitarra (guitarra e violão), Donatinho (teclados) e Jessé Sadoc (trompete).

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