Ao norte da Espanha há uma cidade portuária de 35 quilômetros quadrados com pouco mais de 180 mil habitantes de nome Santander. Sua música típica sai das mesmas mãos ciganas que falam pelo país inteiro. O flamenco, uma instituição de origens sobretudo árabes, é algo sério naquelas fronteiras. E uma garota que cresceu ali, de pai e avô cantores, resolveu que sua vida seria cantando samba.
Irene Atienza, de 33 anos, está no Brasil há dois entocada em um ninho de cobras, sambistas que estarão a seu lado hoje, na casa Traço de União, em Pinheiros. Uma espanhola no samba. Há seis anos, Irene conheceu, ainda na Espanha, um grupo formado por brasileiros chamado Saravacalé e, com eles, passou a pesquisar os pontos em comum entre as culturas. Demorou bem pouco para entender o quanto o samba tinha a ver com o canto espanhol - algo que ninguém, ou quase ninguém, havia percebido.
A força de Irene, já sem os amigos do Saravacalé, está no encontro de dois rios, em que as águas se misturam sutilmente mantendo suas propriedades. Ela canta sambas em português com sotaque naturalmente espanhol, mas não tenta fazer deles cantos flamencos. Apenas deixa que a dor que aprendeu a sentir em sua terra de bolerías flua como parece que deve fluir em letras de Noel Rosa, Paulo Cesar Pinheiro, Cartola e Mauro Duarte. Sua voz bem acomodada nas regiões graves potencializa o drama de uma frase de Noel como: “Nosso amor que eu não esqueço e que teve seu começo, numa festa de São João / Morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete, sem luar, sem violão.” Os vibratos são mais generosos, a empostação é espaçosa e menos naturalista e a verdade do samba de morro ganha uma outra versão.
Irene ainda não tem discos lançados, mas eles estão chegando. Um de seus projetos é apresentado no modelo voz e violão de sete cordas, com o parceiro Douglas Lora. Outro, que deve render seu primeiro disco, de nome provisório 'Parcerias', entra em outros territórios além do samba, como boleros e baiões (outra linguagem que carece de estudo tamanha sua capacidade de receber os espanholismos de Irene com naturalidade). Este disco, gravado de forma independente, terá o bandolim de Dudu Maia, a flauta de Fabio Luna e o clarinete da nova-iorquina Anat Cohen. “E agora pretendo fazer o processo inverso, gravando letra e músicas de minha autoria”, diz Irene. Uma terceira frente para palcos, chamada 'Con Alma', é mantida ao lado da bailarina brasileira de flamenco, Alê Kalafi. “Uma dançarina de flamenco brasileira ao lado de uma cantora de sambas espanhola”, ela aponta.
Mesmo sob a suspeição de falar na condição de um de seus acompanhantes, o percussionista Toinho Melodia, 50 anos de sambas de roda e de quadra por escolas de São Paulo, parece não conter o que quer que o repórter saiba logo: “A divisão do samba, para quem não é brasileiro, é sempre o mais difícil. E ela faz essa divisão com perfeição”.
Já existem pequenas pegadas da carreira incipiente de Irene. Jayme Monjardim, diretor de novelas da Globo, chegou a ela depois de ver alguns de seus vídeos na internet e resolver ligar para convidá-la a participar da produção Flor do Caribe de 2013. Só não contava com o fato de Irene, recém-chegada ao País em 2013, não ter ideia de quem era Jaime Monjardim. “Quando a secretária me disse ao telefone que o senhor Jayme Monjardim gostaria de falar comigo, eu não tinha noção de quem poderia ser.”
O samba, como o flamenco, sofreu perseguições e fez da dor sua angústia e sua festa. Mesmo que erguidos por povos distintos - árabes lá e negros aqui -, fazem na voz de Irene um encontro raro e bonito de se ver.