Análise|Kurt Cobain, 30 anos depois: Agenda do cantor está cada vez mais atual e ecoa na geração Z; entenda


Morte do líder do Nirvana completa 30 anos. Vocalista segue sendo símbolo de movimento no rock que não teve sucessor aparente, mas que - mesmo com o gênero em baixa - influencia uma nova leva de artistas do pop e do hip-hop

Por Pedro Só
Atualização:

Aclamado a contragosto como voz de sua geração e artífice da última “revolução” do rock a ser reconhecida como tal, Kurt Cobain se matou há 30 anos, em 5 de abril de 1994. Sua saída de cena precoce e violenta, aos 27 anos, foi um trauma global. Houve suicídio de fã até na Turquia.

Kurt Cobain durante apresentação no festival Hollywood Rock realizado no estádio do Morumbi, zona sul de São Paulo.  Foto: Masao Goto Filho/Estadão - 16/01/1993
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Ao luto se somou uma sensação de vazio que foi crescendo entre as — para usar um termo que hoje sobrevive na frase meme de Dinho Ouro-Preto sobre o “Norvana” — “tribos” do rock por cinco anos, à medida em que foram escasseando as opções para uma hipotética sucessão ao posto ocupado pelo líder do Nirvana.

Thom Yorke (Radiohead), apontado como candidato natural após o lançamento do álbum The Bends, em 1995, deu seu jeito de fugir da raia. Eddie Vedder (Pearl Jam), Billy Corgan (Smashing Pumpkins), Billie Joe (Green Day), Trent Reznor (Nine Inch Nails), Damon Albarn (Blur), Noel Gallagher (Oasis) e o ex-Nirvana Dave Grohl (Foo Fighters) também seguiram rotas bem diversas.

Entre os líderes das bandas estouradas na virada para os anos 2000 (Strokes, White Stripes, Arctic Monkeys, Queens of the Stone Age), não houve postulantes. Bem menos popular, mas com aura semelhante a de Cobain, o mito indie Elliott Smith (1969-2003) se matou em 2003, aos 34 anos.

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Já em 1996, Patti Smith, voz de outra geração, descreveu poeticamente esse vácuo em About a Boy, dedicada a Kurt Cobain: “De um caos, rico e doce/ Das ruas profundas e sombrias/ Extraiu outro tipo de paz/ Extraiu o grande vazio”.

Em 2024, ninguém espera mais um novo messias do rock, um novo farol, como foi Bob Dylan nos anos 1960 e 1970 (ou, no âmbito brasileiro, alguém com o papel ocupado por Renato Russo, nos anos 1980 e 1990). O culto a Kurt, chama intensa nos primeiros cinco anos após sua morte, foi esmaecendo a partir dos anos 2000. Não deixa de ser irônico, considerando os versos de Neil Young que ele citou em seu bilhete de despedida — “é melhor queimar do que se apagar aos poucos” (“it’s better to burn than to fade away”, da letra de My My, Hey Hey (Out of the Blue)).

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Retrato de Kurt Cobain no saguão de um hotel em São Paulo.  Foto: Jurandir Silveira/Estadão - 15/01/1993

Passadas três décadas, o aniversário da morte do líder do Nirvana parece ser mais lembrado no Reino Unido (onde a banda estourou primeiro) do que nos Estados Unidos. A BBC montou uma grade de homenagens em rádio e TV que inclui a exibição de um documentário inédito de 60 minutos sobre seus últimos dias, Moments That Shook Music: Kurt Cobain.

A produção promete, segundo Jonathan Rothery, chefe da divisão de música popular da emissora, “desmistificar aquele momento contando a história diretamente da cena”. Será a cereja (sangrenta, é verdade) do bolo de uma programação especial que vai ocupar todo o sábado, 9 de abril. Intenções à parte, fica claro que o filme pode atender a um tipo de interesse bem comum entre os contemporâneos: o entretenimento no gênero “true crime”.

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Conteúdos com esse tipo de apelo remontam a 1998, quando o inglês Nick Broomfield lançou o documentário sensacionalista Kurt & Courtney (colocando a viúva de Cobain, Courtney Love, como suspeita de assassinato), e pululam agora no TikTok. Em janeiro, um ex-investigador publicou no X (antigo Twitter) a suposta autópsia do cantor (mantida em sigilo até hoje, por causa das leis locais), revelando a presença de morfina, codeína, diazepam e outras substâncias no sangue do cantor.

Kurt Cobain é empurrado em carrinho de bagagem por sua mulher Courtney Love no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Foto: Márcia Zoet/Estadão - 15/01/1993
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No Reino Unido, reportagem do jornal The Guardian do último domingo, 31 de março, apontou que a obra do Nirvana atinge hoje até a geração Z (pessoas entre 14 e 29 anos). Artistas tão díspares quanto a cantora neozelandesa Lorde, 27, e o rapper americano Lil Nas X, 24 anos, citam Kurt Cobain como ídolo.

Nos Estados Unidos, o rapper Post Malone, nascido 15 meses depois da morte de Cobain, é o fã mais famoso. Ostenta várias tatuagens homenageando o cantor e sua banda. Em 2020, durante a pandemia, ele pediu autorização a Frances Bean Cobain, filha de Kurt, para fazer uma live beneficente tocando o repertório do Nirvana. Em janeiro, a Rolling Stone destacou o supergrupo indie feminino boygenius (formado por Julien Baker, Lucy Dacus e Phoebe Bridgers, idades entre 28 e 29 anos), em imagem que reproduzia uma icônica capa da revista com o grupo de Cobain.

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Em muitos aspectos, o mundo que o líder do Nirvana deixou para trás — e parodiando a piada inventada na década de 2020, para Keith Richards — não existe mais.

De lá pra cá, outra sorte de revoluções, mais abrangentes, proporcionadas pela internet e pela telefonia celular, tem transformado o comportamento humano e muito daquilo que se tinha como legado do cantor e compositor nascido em Aberdeen, cidade portuária no extremo nordeste dos Estados Unidos.

Apesar de ainda gerar muito dinheiro, principalmente em turnês de veteranos e grandes eventos, o rock é cada vez mais visto como uma vertente musical menos relevante. Ele foi suplantado pelo hip hop na representatividade social e, por certo tempo, pelo menos, na contundência do discurso. O golpe maior da concorrência, porém, vem do apelo de astros e divas de um cenário pop que conta com o apoio quase incondicional do fandom e que não precisa mais se preocupar com um eventual hate da crítica. Este pop atual goza de outra grande vantagem sobre o rock: ele abarca melhor a diversidade cultural e se expande globalmente a partir de seu DNA preto/latino e de atualizações tecnológicas antropofágicas.

Kurt Cobain durante apresentação do Nirvana no Festival Hollywood Rock em São Paulo.  Foto: Masao Goto Filho/Estadão - 16/01/1993

A mídia e suas novas soberanas, as redes sociais, raramente se excitam com o rock produzido por bandas novas saídas das garagens ou de circuitos underground. Boa parte do que é saudado como “nova sensação” do gênero é abertamente retrô ou retrofit, feito por artistas como o quarteto Greta Van Fleet, movidos pela reciclagem de ideias e fórmulas consagradas em outras décadas. As fitas cassete que faziam o rock independente circular nos anos 1990 (Cobain recebeu e levou uma penca delas de sua histórica passagem pelo Brasil, em 1993, para shows no Hollywood Rock) ainda são cultuadas por jovens hipsters, mas pouquíssimos deles possuem um aparelho para tocá-las.

Os sons que viralizam hoje no TikTok e no streaming brotam de celulares e laptops. Reality shows e programas de calouros em versão 2.0 se firmaram como o melhor atalho para um artista estourar e estabelecer-se no mundo da música — ou, mais exatamente, no mundo do entretenimento. E, como nada é simples para os humanos do século 21 — a tecnologia suga cada vez mais tempo das pessoas —, depois de estabelecido, o artista precisa tocar a carreira a partir de postagens e de certa exposição da vida pessoal, de um jeito bem parecido com o que as celebridades fazem desde o final do milênio passado.

Não existe mais a dicotomia entre bandas ou solistas que “se venderam” e talentos “malditos”, indômitos. Há tempos que os artistas independentes, por mais transgressores que sejam, são obrigados a jogar o jogo dos oligopólios que dominam o mundo digital. O conflito que marcou a trajetória de Kurt Cobain soa anacrônico para a maioria dos jovens.

Mas, na matemática global dos serviços de streaming, consta que mais de 25 milhões de pessoas escutam Nirvana todos os meses. Ele pode até estar sendo consumido como classic rock (Kurt Cobain provavelmente odiaria isso), mas sua agenda política e comportamental é cada vez mais atual. Nas letras e nas declarações públicas, Kurt Cobain abraçou de forma visceral o combate ao sexismo e à violência contra a mulher (Polly” e About a Girl são exemplos dessa militância sensível), chegando a cruzar fronteiras chocantes com Rape me (que talvez não fosse entendida em tempos de capacidades cognitivas comprometidas). Ficou famosa sua declaração: “Se você é sexista, racista, homofóbico ou basicamente um babaca, não compre este CD. Não me importo se você gosta de mim, eu te odeio”.

Influenciado pela vivência na cidade universitária de Olympia (a pouco mais de uma hora de Seattle), ele incorporou pautas feministas e anti-homofóbicas; em All Apologies, por exemplo canta “O que mais eu poderia dizer?/ Todo mundo é gay”. Ao mesmo tempo, porém, em uma de suas últimas entrevistas lúcidas, antes de submergir numa espiral de depressão e heroína, Cobain declarou com todas as letras: “Eu nunca gostaria de soar PC (politicamente correto); somos entertainers”.

Kurt Cobain durante show do Nirvana no Hollywood Rock 1993, na Praça da Apoteose, na cidade do Rio de Janeiro.  Foto: Jonas Cunha/Estadão - 23/01/1993

Nirvana no Brasil

Dos quatro shows que testemunhei do Nirvana (em Buenos Aires, em 1992; em São Paulo e no Rio, em 1993, e em Barcelona, em 9 de fevereiro de 1994), apenas o último foi levado a sério como apresentação musical. Nos outros, a galhofa e atitudes de confronto acabaram levando o espetáculo para outro lado, imprevisível, singularmente divertido e com a dose de perigo que sempre se pode esperar no punk rock. Nada disso, nem a situação de confusão mental, halitose e privação de drogas em que encontrei Kurt quando pude conversar com ele, em São Paulo, arranhou minha imensa admiração pelo artista (com um certa dose de identificação também) nascido no mesmo ano em que nasci (e também tendo como ídolo maior no rock Iggy Pop).

Em 1993, ele pichou na parede da casa que alugava, em Seattle, a frase “none of you will ever know my intentions” (“nenhum de vocês jamais conhecerá minhas intenções”). Em 2013, ao visitar o Museum of Pop Culture, em Seattle, repleto de memorabília do Nirvana, havia uma cabine onde era possível gravar mensagens “para o Cobain do futuro” (ou algo que o valha). Olhei para o lado, captei minha filha de nove anos, absorta com os itens da exposição, e registrei, entre outras frases que não lembro direito: “Não importam as intenções. O legado somos nós”.

Aclamado a contragosto como voz de sua geração e artífice da última “revolução” do rock a ser reconhecida como tal, Kurt Cobain se matou há 30 anos, em 5 de abril de 1994. Sua saída de cena precoce e violenta, aos 27 anos, foi um trauma global. Houve suicídio de fã até na Turquia.

Kurt Cobain durante apresentação no festival Hollywood Rock realizado no estádio do Morumbi, zona sul de São Paulo.  Foto: Masao Goto Filho/Estadão - 16/01/1993

Ao luto se somou uma sensação de vazio que foi crescendo entre as — para usar um termo que hoje sobrevive na frase meme de Dinho Ouro-Preto sobre o “Norvana” — “tribos” do rock por cinco anos, à medida em que foram escasseando as opções para uma hipotética sucessão ao posto ocupado pelo líder do Nirvana.

Thom Yorke (Radiohead), apontado como candidato natural após o lançamento do álbum The Bends, em 1995, deu seu jeito de fugir da raia. Eddie Vedder (Pearl Jam), Billy Corgan (Smashing Pumpkins), Billie Joe (Green Day), Trent Reznor (Nine Inch Nails), Damon Albarn (Blur), Noel Gallagher (Oasis) e o ex-Nirvana Dave Grohl (Foo Fighters) também seguiram rotas bem diversas.

Entre os líderes das bandas estouradas na virada para os anos 2000 (Strokes, White Stripes, Arctic Monkeys, Queens of the Stone Age), não houve postulantes. Bem menos popular, mas com aura semelhante a de Cobain, o mito indie Elliott Smith (1969-2003) se matou em 2003, aos 34 anos.

Já em 1996, Patti Smith, voz de outra geração, descreveu poeticamente esse vácuo em About a Boy, dedicada a Kurt Cobain: “De um caos, rico e doce/ Das ruas profundas e sombrias/ Extraiu outro tipo de paz/ Extraiu o grande vazio”.

Em 2024, ninguém espera mais um novo messias do rock, um novo farol, como foi Bob Dylan nos anos 1960 e 1970 (ou, no âmbito brasileiro, alguém com o papel ocupado por Renato Russo, nos anos 1980 e 1990). O culto a Kurt, chama intensa nos primeiros cinco anos após sua morte, foi esmaecendo a partir dos anos 2000. Não deixa de ser irônico, considerando os versos de Neil Young que ele citou em seu bilhete de despedida — “é melhor queimar do que se apagar aos poucos” (“it’s better to burn than to fade away”, da letra de My My, Hey Hey (Out of the Blue)).

Retrato de Kurt Cobain no saguão de um hotel em São Paulo.  Foto: Jurandir Silveira/Estadão - 15/01/1993

Passadas três décadas, o aniversário da morte do líder do Nirvana parece ser mais lembrado no Reino Unido (onde a banda estourou primeiro) do que nos Estados Unidos. A BBC montou uma grade de homenagens em rádio e TV que inclui a exibição de um documentário inédito de 60 minutos sobre seus últimos dias, Moments That Shook Music: Kurt Cobain.

A produção promete, segundo Jonathan Rothery, chefe da divisão de música popular da emissora, “desmistificar aquele momento contando a história diretamente da cena”. Será a cereja (sangrenta, é verdade) do bolo de uma programação especial que vai ocupar todo o sábado, 9 de abril. Intenções à parte, fica claro que o filme pode atender a um tipo de interesse bem comum entre os contemporâneos: o entretenimento no gênero “true crime”.

Conteúdos com esse tipo de apelo remontam a 1998, quando o inglês Nick Broomfield lançou o documentário sensacionalista Kurt & Courtney (colocando a viúva de Cobain, Courtney Love, como suspeita de assassinato), e pululam agora no TikTok. Em janeiro, um ex-investigador publicou no X (antigo Twitter) a suposta autópsia do cantor (mantida em sigilo até hoje, por causa das leis locais), revelando a presença de morfina, codeína, diazepam e outras substâncias no sangue do cantor.

Kurt Cobain é empurrado em carrinho de bagagem por sua mulher Courtney Love no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Foto: Márcia Zoet/Estadão - 15/01/1993

No Reino Unido, reportagem do jornal The Guardian do último domingo, 31 de março, apontou que a obra do Nirvana atinge hoje até a geração Z (pessoas entre 14 e 29 anos). Artistas tão díspares quanto a cantora neozelandesa Lorde, 27, e o rapper americano Lil Nas X, 24 anos, citam Kurt Cobain como ídolo.

Nos Estados Unidos, o rapper Post Malone, nascido 15 meses depois da morte de Cobain, é o fã mais famoso. Ostenta várias tatuagens homenageando o cantor e sua banda. Em 2020, durante a pandemia, ele pediu autorização a Frances Bean Cobain, filha de Kurt, para fazer uma live beneficente tocando o repertório do Nirvana. Em janeiro, a Rolling Stone destacou o supergrupo indie feminino boygenius (formado por Julien Baker, Lucy Dacus e Phoebe Bridgers, idades entre 28 e 29 anos), em imagem que reproduzia uma icônica capa da revista com o grupo de Cobain.

Em muitos aspectos, o mundo que o líder do Nirvana deixou para trás — e parodiando a piada inventada na década de 2020, para Keith Richards — não existe mais.

De lá pra cá, outra sorte de revoluções, mais abrangentes, proporcionadas pela internet e pela telefonia celular, tem transformado o comportamento humano e muito daquilo que se tinha como legado do cantor e compositor nascido em Aberdeen, cidade portuária no extremo nordeste dos Estados Unidos.

Apesar de ainda gerar muito dinheiro, principalmente em turnês de veteranos e grandes eventos, o rock é cada vez mais visto como uma vertente musical menos relevante. Ele foi suplantado pelo hip hop na representatividade social e, por certo tempo, pelo menos, na contundência do discurso. O golpe maior da concorrência, porém, vem do apelo de astros e divas de um cenário pop que conta com o apoio quase incondicional do fandom e que não precisa mais se preocupar com um eventual hate da crítica. Este pop atual goza de outra grande vantagem sobre o rock: ele abarca melhor a diversidade cultural e se expande globalmente a partir de seu DNA preto/latino e de atualizações tecnológicas antropofágicas.

Kurt Cobain durante apresentação do Nirvana no Festival Hollywood Rock em São Paulo.  Foto: Masao Goto Filho/Estadão - 16/01/1993

A mídia e suas novas soberanas, as redes sociais, raramente se excitam com o rock produzido por bandas novas saídas das garagens ou de circuitos underground. Boa parte do que é saudado como “nova sensação” do gênero é abertamente retrô ou retrofit, feito por artistas como o quarteto Greta Van Fleet, movidos pela reciclagem de ideias e fórmulas consagradas em outras décadas. As fitas cassete que faziam o rock independente circular nos anos 1990 (Cobain recebeu e levou uma penca delas de sua histórica passagem pelo Brasil, em 1993, para shows no Hollywood Rock) ainda são cultuadas por jovens hipsters, mas pouquíssimos deles possuem um aparelho para tocá-las.

Os sons que viralizam hoje no TikTok e no streaming brotam de celulares e laptops. Reality shows e programas de calouros em versão 2.0 se firmaram como o melhor atalho para um artista estourar e estabelecer-se no mundo da música — ou, mais exatamente, no mundo do entretenimento. E, como nada é simples para os humanos do século 21 — a tecnologia suga cada vez mais tempo das pessoas —, depois de estabelecido, o artista precisa tocar a carreira a partir de postagens e de certa exposição da vida pessoal, de um jeito bem parecido com o que as celebridades fazem desde o final do milênio passado.

Não existe mais a dicotomia entre bandas ou solistas que “se venderam” e talentos “malditos”, indômitos. Há tempos que os artistas independentes, por mais transgressores que sejam, são obrigados a jogar o jogo dos oligopólios que dominam o mundo digital. O conflito que marcou a trajetória de Kurt Cobain soa anacrônico para a maioria dos jovens.

Mas, na matemática global dos serviços de streaming, consta que mais de 25 milhões de pessoas escutam Nirvana todos os meses. Ele pode até estar sendo consumido como classic rock (Kurt Cobain provavelmente odiaria isso), mas sua agenda política e comportamental é cada vez mais atual. Nas letras e nas declarações públicas, Kurt Cobain abraçou de forma visceral o combate ao sexismo e à violência contra a mulher (Polly” e About a Girl são exemplos dessa militância sensível), chegando a cruzar fronteiras chocantes com Rape me (que talvez não fosse entendida em tempos de capacidades cognitivas comprometidas). Ficou famosa sua declaração: “Se você é sexista, racista, homofóbico ou basicamente um babaca, não compre este CD. Não me importo se você gosta de mim, eu te odeio”.

Influenciado pela vivência na cidade universitária de Olympia (a pouco mais de uma hora de Seattle), ele incorporou pautas feministas e anti-homofóbicas; em All Apologies, por exemplo canta “O que mais eu poderia dizer?/ Todo mundo é gay”. Ao mesmo tempo, porém, em uma de suas últimas entrevistas lúcidas, antes de submergir numa espiral de depressão e heroína, Cobain declarou com todas as letras: “Eu nunca gostaria de soar PC (politicamente correto); somos entertainers”.

Kurt Cobain durante show do Nirvana no Hollywood Rock 1993, na Praça da Apoteose, na cidade do Rio de Janeiro.  Foto: Jonas Cunha/Estadão - 23/01/1993

Nirvana no Brasil

Dos quatro shows que testemunhei do Nirvana (em Buenos Aires, em 1992; em São Paulo e no Rio, em 1993, e em Barcelona, em 9 de fevereiro de 1994), apenas o último foi levado a sério como apresentação musical. Nos outros, a galhofa e atitudes de confronto acabaram levando o espetáculo para outro lado, imprevisível, singularmente divertido e com a dose de perigo que sempre se pode esperar no punk rock. Nada disso, nem a situação de confusão mental, halitose e privação de drogas em que encontrei Kurt quando pude conversar com ele, em São Paulo, arranhou minha imensa admiração pelo artista (com um certa dose de identificação também) nascido no mesmo ano em que nasci (e também tendo como ídolo maior no rock Iggy Pop).

Em 1993, ele pichou na parede da casa que alugava, em Seattle, a frase “none of you will ever know my intentions” (“nenhum de vocês jamais conhecerá minhas intenções”). Em 2013, ao visitar o Museum of Pop Culture, em Seattle, repleto de memorabília do Nirvana, havia uma cabine onde era possível gravar mensagens “para o Cobain do futuro” (ou algo que o valha). Olhei para o lado, captei minha filha de nove anos, absorta com os itens da exposição, e registrei, entre outras frases que não lembro direito: “Não importam as intenções. O legado somos nós”.

Aclamado a contragosto como voz de sua geração e artífice da última “revolução” do rock a ser reconhecida como tal, Kurt Cobain se matou há 30 anos, em 5 de abril de 1994. Sua saída de cena precoce e violenta, aos 27 anos, foi um trauma global. Houve suicídio de fã até na Turquia.

Kurt Cobain durante apresentação no festival Hollywood Rock realizado no estádio do Morumbi, zona sul de São Paulo.  Foto: Masao Goto Filho/Estadão - 16/01/1993

Ao luto se somou uma sensação de vazio que foi crescendo entre as — para usar um termo que hoje sobrevive na frase meme de Dinho Ouro-Preto sobre o “Norvana” — “tribos” do rock por cinco anos, à medida em que foram escasseando as opções para uma hipotética sucessão ao posto ocupado pelo líder do Nirvana.

Thom Yorke (Radiohead), apontado como candidato natural após o lançamento do álbum The Bends, em 1995, deu seu jeito de fugir da raia. Eddie Vedder (Pearl Jam), Billy Corgan (Smashing Pumpkins), Billie Joe (Green Day), Trent Reznor (Nine Inch Nails), Damon Albarn (Blur), Noel Gallagher (Oasis) e o ex-Nirvana Dave Grohl (Foo Fighters) também seguiram rotas bem diversas.

Entre os líderes das bandas estouradas na virada para os anos 2000 (Strokes, White Stripes, Arctic Monkeys, Queens of the Stone Age), não houve postulantes. Bem menos popular, mas com aura semelhante a de Cobain, o mito indie Elliott Smith (1969-2003) se matou em 2003, aos 34 anos.

Já em 1996, Patti Smith, voz de outra geração, descreveu poeticamente esse vácuo em About a Boy, dedicada a Kurt Cobain: “De um caos, rico e doce/ Das ruas profundas e sombrias/ Extraiu outro tipo de paz/ Extraiu o grande vazio”.

Em 2024, ninguém espera mais um novo messias do rock, um novo farol, como foi Bob Dylan nos anos 1960 e 1970 (ou, no âmbito brasileiro, alguém com o papel ocupado por Renato Russo, nos anos 1980 e 1990). O culto a Kurt, chama intensa nos primeiros cinco anos após sua morte, foi esmaecendo a partir dos anos 2000. Não deixa de ser irônico, considerando os versos de Neil Young que ele citou em seu bilhete de despedida — “é melhor queimar do que se apagar aos poucos” (“it’s better to burn than to fade away”, da letra de My My, Hey Hey (Out of the Blue)).

Retrato de Kurt Cobain no saguão de um hotel em São Paulo.  Foto: Jurandir Silveira/Estadão - 15/01/1993

Passadas três décadas, o aniversário da morte do líder do Nirvana parece ser mais lembrado no Reino Unido (onde a banda estourou primeiro) do que nos Estados Unidos. A BBC montou uma grade de homenagens em rádio e TV que inclui a exibição de um documentário inédito de 60 minutos sobre seus últimos dias, Moments That Shook Music: Kurt Cobain.

A produção promete, segundo Jonathan Rothery, chefe da divisão de música popular da emissora, “desmistificar aquele momento contando a história diretamente da cena”. Será a cereja (sangrenta, é verdade) do bolo de uma programação especial que vai ocupar todo o sábado, 9 de abril. Intenções à parte, fica claro que o filme pode atender a um tipo de interesse bem comum entre os contemporâneos: o entretenimento no gênero “true crime”.

Conteúdos com esse tipo de apelo remontam a 1998, quando o inglês Nick Broomfield lançou o documentário sensacionalista Kurt & Courtney (colocando a viúva de Cobain, Courtney Love, como suspeita de assassinato), e pululam agora no TikTok. Em janeiro, um ex-investigador publicou no X (antigo Twitter) a suposta autópsia do cantor (mantida em sigilo até hoje, por causa das leis locais), revelando a presença de morfina, codeína, diazepam e outras substâncias no sangue do cantor.

Kurt Cobain é empurrado em carrinho de bagagem por sua mulher Courtney Love no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Foto: Márcia Zoet/Estadão - 15/01/1993

No Reino Unido, reportagem do jornal The Guardian do último domingo, 31 de março, apontou que a obra do Nirvana atinge hoje até a geração Z (pessoas entre 14 e 29 anos). Artistas tão díspares quanto a cantora neozelandesa Lorde, 27, e o rapper americano Lil Nas X, 24 anos, citam Kurt Cobain como ídolo.

Nos Estados Unidos, o rapper Post Malone, nascido 15 meses depois da morte de Cobain, é o fã mais famoso. Ostenta várias tatuagens homenageando o cantor e sua banda. Em 2020, durante a pandemia, ele pediu autorização a Frances Bean Cobain, filha de Kurt, para fazer uma live beneficente tocando o repertório do Nirvana. Em janeiro, a Rolling Stone destacou o supergrupo indie feminino boygenius (formado por Julien Baker, Lucy Dacus e Phoebe Bridgers, idades entre 28 e 29 anos), em imagem que reproduzia uma icônica capa da revista com o grupo de Cobain.

Em muitos aspectos, o mundo que o líder do Nirvana deixou para trás — e parodiando a piada inventada na década de 2020, para Keith Richards — não existe mais.

De lá pra cá, outra sorte de revoluções, mais abrangentes, proporcionadas pela internet e pela telefonia celular, tem transformado o comportamento humano e muito daquilo que se tinha como legado do cantor e compositor nascido em Aberdeen, cidade portuária no extremo nordeste dos Estados Unidos.

Apesar de ainda gerar muito dinheiro, principalmente em turnês de veteranos e grandes eventos, o rock é cada vez mais visto como uma vertente musical menos relevante. Ele foi suplantado pelo hip hop na representatividade social e, por certo tempo, pelo menos, na contundência do discurso. O golpe maior da concorrência, porém, vem do apelo de astros e divas de um cenário pop que conta com o apoio quase incondicional do fandom e que não precisa mais se preocupar com um eventual hate da crítica. Este pop atual goza de outra grande vantagem sobre o rock: ele abarca melhor a diversidade cultural e se expande globalmente a partir de seu DNA preto/latino e de atualizações tecnológicas antropofágicas.

Kurt Cobain durante apresentação do Nirvana no Festival Hollywood Rock em São Paulo.  Foto: Masao Goto Filho/Estadão - 16/01/1993

A mídia e suas novas soberanas, as redes sociais, raramente se excitam com o rock produzido por bandas novas saídas das garagens ou de circuitos underground. Boa parte do que é saudado como “nova sensação” do gênero é abertamente retrô ou retrofit, feito por artistas como o quarteto Greta Van Fleet, movidos pela reciclagem de ideias e fórmulas consagradas em outras décadas. As fitas cassete que faziam o rock independente circular nos anos 1990 (Cobain recebeu e levou uma penca delas de sua histórica passagem pelo Brasil, em 1993, para shows no Hollywood Rock) ainda são cultuadas por jovens hipsters, mas pouquíssimos deles possuem um aparelho para tocá-las.

Os sons que viralizam hoje no TikTok e no streaming brotam de celulares e laptops. Reality shows e programas de calouros em versão 2.0 se firmaram como o melhor atalho para um artista estourar e estabelecer-se no mundo da música — ou, mais exatamente, no mundo do entretenimento. E, como nada é simples para os humanos do século 21 — a tecnologia suga cada vez mais tempo das pessoas —, depois de estabelecido, o artista precisa tocar a carreira a partir de postagens e de certa exposição da vida pessoal, de um jeito bem parecido com o que as celebridades fazem desde o final do milênio passado.

Não existe mais a dicotomia entre bandas ou solistas que “se venderam” e talentos “malditos”, indômitos. Há tempos que os artistas independentes, por mais transgressores que sejam, são obrigados a jogar o jogo dos oligopólios que dominam o mundo digital. O conflito que marcou a trajetória de Kurt Cobain soa anacrônico para a maioria dos jovens.

Mas, na matemática global dos serviços de streaming, consta que mais de 25 milhões de pessoas escutam Nirvana todos os meses. Ele pode até estar sendo consumido como classic rock (Kurt Cobain provavelmente odiaria isso), mas sua agenda política e comportamental é cada vez mais atual. Nas letras e nas declarações públicas, Kurt Cobain abraçou de forma visceral o combate ao sexismo e à violência contra a mulher (Polly” e About a Girl são exemplos dessa militância sensível), chegando a cruzar fronteiras chocantes com Rape me (que talvez não fosse entendida em tempos de capacidades cognitivas comprometidas). Ficou famosa sua declaração: “Se você é sexista, racista, homofóbico ou basicamente um babaca, não compre este CD. Não me importo se você gosta de mim, eu te odeio”.

Influenciado pela vivência na cidade universitária de Olympia (a pouco mais de uma hora de Seattle), ele incorporou pautas feministas e anti-homofóbicas; em All Apologies, por exemplo canta “O que mais eu poderia dizer?/ Todo mundo é gay”. Ao mesmo tempo, porém, em uma de suas últimas entrevistas lúcidas, antes de submergir numa espiral de depressão e heroína, Cobain declarou com todas as letras: “Eu nunca gostaria de soar PC (politicamente correto); somos entertainers”.

Kurt Cobain durante show do Nirvana no Hollywood Rock 1993, na Praça da Apoteose, na cidade do Rio de Janeiro.  Foto: Jonas Cunha/Estadão - 23/01/1993

Nirvana no Brasil

Dos quatro shows que testemunhei do Nirvana (em Buenos Aires, em 1992; em São Paulo e no Rio, em 1993, e em Barcelona, em 9 de fevereiro de 1994), apenas o último foi levado a sério como apresentação musical. Nos outros, a galhofa e atitudes de confronto acabaram levando o espetáculo para outro lado, imprevisível, singularmente divertido e com a dose de perigo que sempre se pode esperar no punk rock. Nada disso, nem a situação de confusão mental, halitose e privação de drogas em que encontrei Kurt quando pude conversar com ele, em São Paulo, arranhou minha imensa admiração pelo artista (com um certa dose de identificação também) nascido no mesmo ano em que nasci (e também tendo como ídolo maior no rock Iggy Pop).

Em 1993, ele pichou na parede da casa que alugava, em Seattle, a frase “none of you will ever know my intentions” (“nenhum de vocês jamais conhecerá minhas intenções”). Em 2013, ao visitar o Museum of Pop Culture, em Seattle, repleto de memorabília do Nirvana, havia uma cabine onde era possível gravar mensagens “para o Cobain do futuro” (ou algo que o valha). Olhei para o lado, captei minha filha de nove anos, absorta com os itens da exposição, e registrei, entre outras frases que não lembro direito: “Não importam as intenções. O legado somos nós”.

Aclamado a contragosto como voz de sua geração e artífice da última “revolução” do rock a ser reconhecida como tal, Kurt Cobain se matou há 30 anos, em 5 de abril de 1994. Sua saída de cena precoce e violenta, aos 27 anos, foi um trauma global. Houve suicídio de fã até na Turquia.

Kurt Cobain durante apresentação no festival Hollywood Rock realizado no estádio do Morumbi, zona sul de São Paulo.  Foto: Masao Goto Filho/Estadão - 16/01/1993

Ao luto se somou uma sensação de vazio que foi crescendo entre as — para usar um termo que hoje sobrevive na frase meme de Dinho Ouro-Preto sobre o “Norvana” — “tribos” do rock por cinco anos, à medida em que foram escasseando as opções para uma hipotética sucessão ao posto ocupado pelo líder do Nirvana.

Thom Yorke (Radiohead), apontado como candidato natural após o lançamento do álbum The Bends, em 1995, deu seu jeito de fugir da raia. Eddie Vedder (Pearl Jam), Billy Corgan (Smashing Pumpkins), Billie Joe (Green Day), Trent Reznor (Nine Inch Nails), Damon Albarn (Blur), Noel Gallagher (Oasis) e o ex-Nirvana Dave Grohl (Foo Fighters) também seguiram rotas bem diversas.

Entre os líderes das bandas estouradas na virada para os anos 2000 (Strokes, White Stripes, Arctic Monkeys, Queens of the Stone Age), não houve postulantes. Bem menos popular, mas com aura semelhante a de Cobain, o mito indie Elliott Smith (1969-2003) se matou em 2003, aos 34 anos.

Já em 1996, Patti Smith, voz de outra geração, descreveu poeticamente esse vácuo em About a Boy, dedicada a Kurt Cobain: “De um caos, rico e doce/ Das ruas profundas e sombrias/ Extraiu outro tipo de paz/ Extraiu o grande vazio”.

Em 2024, ninguém espera mais um novo messias do rock, um novo farol, como foi Bob Dylan nos anos 1960 e 1970 (ou, no âmbito brasileiro, alguém com o papel ocupado por Renato Russo, nos anos 1980 e 1990). O culto a Kurt, chama intensa nos primeiros cinco anos após sua morte, foi esmaecendo a partir dos anos 2000. Não deixa de ser irônico, considerando os versos de Neil Young que ele citou em seu bilhete de despedida — “é melhor queimar do que se apagar aos poucos” (“it’s better to burn than to fade away”, da letra de My My, Hey Hey (Out of the Blue)).

Retrato de Kurt Cobain no saguão de um hotel em São Paulo.  Foto: Jurandir Silveira/Estadão - 15/01/1993

Passadas três décadas, o aniversário da morte do líder do Nirvana parece ser mais lembrado no Reino Unido (onde a banda estourou primeiro) do que nos Estados Unidos. A BBC montou uma grade de homenagens em rádio e TV que inclui a exibição de um documentário inédito de 60 minutos sobre seus últimos dias, Moments That Shook Music: Kurt Cobain.

A produção promete, segundo Jonathan Rothery, chefe da divisão de música popular da emissora, “desmistificar aquele momento contando a história diretamente da cena”. Será a cereja (sangrenta, é verdade) do bolo de uma programação especial que vai ocupar todo o sábado, 9 de abril. Intenções à parte, fica claro que o filme pode atender a um tipo de interesse bem comum entre os contemporâneos: o entretenimento no gênero “true crime”.

Conteúdos com esse tipo de apelo remontam a 1998, quando o inglês Nick Broomfield lançou o documentário sensacionalista Kurt & Courtney (colocando a viúva de Cobain, Courtney Love, como suspeita de assassinato), e pululam agora no TikTok. Em janeiro, um ex-investigador publicou no X (antigo Twitter) a suposta autópsia do cantor (mantida em sigilo até hoje, por causa das leis locais), revelando a presença de morfina, codeína, diazepam e outras substâncias no sangue do cantor.

Kurt Cobain é empurrado em carrinho de bagagem por sua mulher Courtney Love no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Foto: Márcia Zoet/Estadão - 15/01/1993

No Reino Unido, reportagem do jornal The Guardian do último domingo, 31 de março, apontou que a obra do Nirvana atinge hoje até a geração Z (pessoas entre 14 e 29 anos). Artistas tão díspares quanto a cantora neozelandesa Lorde, 27, e o rapper americano Lil Nas X, 24 anos, citam Kurt Cobain como ídolo.

Nos Estados Unidos, o rapper Post Malone, nascido 15 meses depois da morte de Cobain, é o fã mais famoso. Ostenta várias tatuagens homenageando o cantor e sua banda. Em 2020, durante a pandemia, ele pediu autorização a Frances Bean Cobain, filha de Kurt, para fazer uma live beneficente tocando o repertório do Nirvana. Em janeiro, a Rolling Stone destacou o supergrupo indie feminino boygenius (formado por Julien Baker, Lucy Dacus e Phoebe Bridgers, idades entre 28 e 29 anos), em imagem que reproduzia uma icônica capa da revista com o grupo de Cobain.

Em muitos aspectos, o mundo que o líder do Nirvana deixou para trás — e parodiando a piada inventada na década de 2020, para Keith Richards — não existe mais.

De lá pra cá, outra sorte de revoluções, mais abrangentes, proporcionadas pela internet e pela telefonia celular, tem transformado o comportamento humano e muito daquilo que se tinha como legado do cantor e compositor nascido em Aberdeen, cidade portuária no extremo nordeste dos Estados Unidos.

Apesar de ainda gerar muito dinheiro, principalmente em turnês de veteranos e grandes eventos, o rock é cada vez mais visto como uma vertente musical menos relevante. Ele foi suplantado pelo hip hop na representatividade social e, por certo tempo, pelo menos, na contundência do discurso. O golpe maior da concorrência, porém, vem do apelo de astros e divas de um cenário pop que conta com o apoio quase incondicional do fandom e que não precisa mais se preocupar com um eventual hate da crítica. Este pop atual goza de outra grande vantagem sobre o rock: ele abarca melhor a diversidade cultural e se expande globalmente a partir de seu DNA preto/latino e de atualizações tecnológicas antropofágicas.

Kurt Cobain durante apresentação do Nirvana no Festival Hollywood Rock em São Paulo.  Foto: Masao Goto Filho/Estadão - 16/01/1993

A mídia e suas novas soberanas, as redes sociais, raramente se excitam com o rock produzido por bandas novas saídas das garagens ou de circuitos underground. Boa parte do que é saudado como “nova sensação” do gênero é abertamente retrô ou retrofit, feito por artistas como o quarteto Greta Van Fleet, movidos pela reciclagem de ideias e fórmulas consagradas em outras décadas. As fitas cassete que faziam o rock independente circular nos anos 1990 (Cobain recebeu e levou uma penca delas de sua histórica passagem pelo Brasil, em 1993, para shows no Hollywood Rock) ainda são cultuadas por jovens hipsters, mas pouquíssimos deles possuem um aparelho para tocá-las.

Os sons que viralizam hoje no TikTok e no streaming brotam de celulares e laptops. Reality shows e programas de calouros em versão 2.0 se firmaram como o melhor atalho para um artista estourar e estabelecer-se no mundo da música — ou, mais exatamente, no mundo do entretenimento. E, como nada é simples para os humanos do século 21 — a tecnologia suga cada vez mais tempo das pessoas —, depois de estabelecido, o artista precisa tocar a carreira a partir de postagens e de certa exposição da vida pessoal, de um jeito bem parecido com o que as celebridades fazem desde o final do milênio passado.

Não existe mais a dicotomia entre bandas ou solistas que “se venderam” e talentos “malditos”, indômitos. Há tempos que os artistas independentes, por mais transgressores que sejam, são obrigados a jogar o jogo dos oligopólios que dominam o mundo digital. O conflito que marcou a trajetória de Kurt Cobain soa anacrônico para a maioria dos jovens.

Mas, na matemática global dos serviços de streaming, consta que mais de 25 milhões de pessoas escutam Nirvana todos os meses. Ele pode até estar sendo consumido como classic rock (Kurt Cobain provavelmente odiaria isso), mas sua agenda política e comportamental é cada vez mais atual. Nas letras e nas declarações públicas, Kurt Cobain abraçou de forma visceral o combate ao sexismo e à violência contra a mulher (Polly” e About a Girl são exemplos dessa militância sensível), chegando a cruzar fronteiras chocantes com Rape me (que talvez não fosse entendida em tempos de capacidades cognitivas comprometidas). Ficou famosa sua declaração: “Se você é sexista, racista, homofóbico ou basicamente um babaca, não compre este CD. Não me importo se você gosta de mim, eu te odeio”.

Influenciado pela vivência na cidade universitária de Olympia (a pouco mais de uma hora de Seattle), ele incorporou pautas feministas e anti-homofóbicas; em All Apologies, por exemplo canta “O que mais eu poderia dizer?/ Todo mundo é gay”. Ao mesmo tempo, porém, em uma de suas últimas entrevistas lúcidas, antes de submergir numa espiral de depressão e heroína, Cobain declarou com todas as letras: “Eu nunca gostaria de soar PC (politicamente correto); somos entertainers”.

Kurt Cobain durante show do Nirvana no Hollywood Rock 1993, na Praça da Apoteose, na cidade do Rio de Janeiro.  Foto: Jonas Cunha/Estadão - 23/01/1993

Nirvana no Brasil

Dos quatro shows que testemunhei do Nirvana (em Buenos Aires, em 1992; em São Paulo e no Rio, em 1993, e em Barcelona, em 9 de fevereiro de 1994), apenas o último foi levado a sério como apresentação musical. Nos outros, a galhofa e atitudes de confronto acabaram levando o espetáculo para outro lado, imprevisível, singularmente divertido e com a dose de perigo que sempre se pode esperar no punk rock. Nada disso, nem a situação de confusão mental, halitose e privação de drogas em que encontrei Kurt quando pude conversar com ele, em São Paulo, arranhou minha imensa admiração pelo artista (com um certa dose de identificação também) nascido no mesmo ano em que nasci (e também tendo como ídolo maior no rock Iggy Pop).

Em 1993, ele pichou na parede da casa que alugava, em Seattle, a frase “none of you will ever know my intentions” (“nenhum de vocês jamais conhecerá minhas intenções”). Em 2013, ao visitar o Museum of Pop Culture, em Seattle, repleto de memorabília do Nirvana, havia uma cabine onde era possível gravar mensagens “para o Cobain do futuro” (ou algo que o valha). Olhei para o lado, captei minha filha de nove anos, absorta com os itens da exposição, e registrei, entre outras frases que não lembro direito: “Não importam as intenções. O legado somos nós”.

Aclamado a contragosto como voz de sua geração e artífice da última “revolução” do rock a ser reconhecida como tal, Kurt Cobain se matou há 30 anos, em 5 de abril de 1994. Sua saída de cena precoce e violenta, aos 27 anos, foi um trauma global. Houve suicídio de fã até na Turquia.

Kurt Cobain durante apresentação no festival Hollywood Rock realizado no estádio do Morumbi, zona sul de São Paulo.  Foto: Masao Goto Filho/Estadão - 16/01/1993

Ao luto se somou uma sensação de vazio que foi crescendo entre as — para usar um termo que hoje sobrevive na frase meme de Dinho Ouro-Preto sobre o “Norvana” — “tribos” do rock por cinco anos, à medida em que foram escasseando as opções para uma hipotética sucessão ao posto ocupado pelo líder do Nirvana.

Thom Yorke (Radiohead), apontado como candidato natural após o lançamento do álbum The Bends, em 1995, deu seu jeito de fugir da raia. Eddie Vedder (Pearl Jam), Billy Corgan (Smashing Pumpkins), Billie Joe (Green Day), Trent Reznor (Nine Inch Nails), Damon Albarn (Blur), Noel Gallagher (Oasis) e o ex-Nirvana Dave Grohl (Foo Fighters) também seguiram rotas bem diversas.

Entre os líderes das bandas estouradas na virada para os anos 2000 (Strokes, White Stripes, Arctic Monkeys, Queens of the Stone Age), não houve postulantes. Bem menos popular, mas com aura semelhante a de Cobain, o mito indie Elliott Smith (1969-2003) se matou em 2003, aos 34 anos.

Já em 1996, Patti Smith, voz de outra geração, descreveu poeticamente esse vácuo em About a Boy, dedicada a Kurt Cobain: “De um caos, rico e doce/ Das ruas profundas e sombrias/ Extraiu outro tipo de paz/ Extraiu o grande vazio”.

Em 2024, ninguém espera mais um novo messias do rock, um novo farol, como foi Bob Dylan nos anos 1960 e 1970 (ou, no âmbito brasileiro, alguém com o papel ocupado por Renato Russo, nos anos 1980 e 1990). O culto a Kurt, chama intensa nos primeiros cinco anos após sua morte, foi esmaecendo a partir dos anos 2000. Não deixa de ser irônico, considerando os versos de Neil Young que ele citou em seu bilhete de despedida — “é melhor queimar do que se apagar aos poucos” (“it’s better to burn than to fade away”, da letra de My My, Hey Hey (Out of the Blue)).

Retrato de Kurt Cobain no saguão de um hotel em São Paulo.  Foto: Jurandir Silveira/Estadão - 15/01/1993

Passadas três décadas, o aniversário da morte do líder do Nirvana parece ser mais lembrado no Reino Unido (onde a banda estourou primeiro) do que nos Estados Unidos. A BBC montou uma grade de homenagens em rádio e TV que inclui a exibição de um documentário inédito de 60 minutos sobre seus últimos dias, Moments That Shook Music: Kurt Cobain.

A produção promete, segundo Jonathan Rothery, chefe da divisão de música popular da emissora, “desmistificar aquele momento contando a história diretamente da cena”. Será a cereja (sangrenta, é verdade) do bolo de uma programação especial que vai ocupar todo o sábado, 9 de abril. Intenções à parte, fica claro que o filme pode atender a um tipo de interesse bem comum entre os contemporâneos: o entretenimento no gênero “true crime”.

Conteúdos com esse tipo de apelo remontam a 1998, quando o inglês Nick Broomfield lançou o documentário sensacionalista Kurt & Courtney (colocando a viúva de Cobain, Courtney Love, como suspeita de assassinato), e pululam agora no TikTok. Em janeiro, um ex-investigador publicou no X (antigo Twitter) a suposta autópsia do cantor (mantida em sigilo até hoje, por causa das leis locais), revelando a presença de morfina, codeína, diazepam e outras substâncias no sangue do cantor.

Kurt Cobain é empurrado em carrinho de bagagem por sua mulher Courtney Love no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Foto: Márcia Zoet/Estadão - 15/01/1993

No Reino Unido, reportagem do jornal The Guardian do último domingo, 31 de março, apontou que a obra do Nirvana atinge hoje até a geração Z (pessoas entre 14 e 29 anos). Artistas tão díspares quanto a cantora neozelandesa Lorde, 27, e o rapper americano Lil Nas X, 24 anos, citam Kurt Cobain como ídolo.

Nos Estados Unidos, o rapper Post Malone, nascido 15 meses depois da morte de Cobain, é o fã mais famoso. Ostenta várias tatuagens homenageando o cantor e sua banda. Em 2020, durante a pandemia, ele pediu autorização a Frances Bean Cobain, filha de Kurt, para fazer uma live beneficente tocando o repertório do Nirvana. Em janeiro, a Rolling Stone destacou o supergrupo indie feminino boygenius (formado por Julien Baker, Lucy Dacus e Phoebe Bridgers, idades entre 28 e 29 anos), em imagem que reproduzia uma icônica capa da revista com o grupo de Cobain.

Em muitos aspectos, o mundo que o líder do Nirvana deixou para trás — e parodiando a piada inventada na década de 2020, para Keith Richards — não existe mais.

De lá pra cá, outra sorte de revoluções, mais abrangentes, proporcionadas pela internet e pela telefonia celular, tem transformado o comportamento humano e muito daquilo que se tinha como legado do cantor e compositor nascido em Aberdeen, cidade portuária no extremo nordeste dos Estados Unidos.

Apesar de ainda gerar muito dinheiro, principalmente em turnês de veteranos e grandes eventos, o rock é cada vez mais visto como uma vertente musical menos relevante. Ele foi suplantado pelo hip hop na representatividade social e, por certo tempo, pelo menos, na contundência do discurso. O golpe maior da concorrência, porém, vem do apelo de astros e divas de um cenário pop que conta com o apoio quase incondicional do fandom e que não precisa mais se preocupar com um eventual hate da crítica. Este pop atual goza de outra grande vantagem sobre o rock: ele abarca melhor a diversidade cultural e se expande globalmente a partir de seu DNA preto/latino e de atualizações tecnológicas antropofágicas.

Kurt Cobain durante apresentação do Nirvana no Festival Hollywood Rock em São Paulo.  Foto: Masao Goto Filho/Estadão - 16/01/1993

A mídia e suas novas soberanas, as redes sociais, raramente se excitam com o rock produzido por bandas novas saídas das garagens ou de circuitos underground. Boa parte do que é saudado como “nova sensação” do gênero é abertamente retrô ou retrofit, feito por artistas como o quarteto Greta Van Fleet, movidos pela reciclagem de ideias e fórmulas consagradas em outras décadas. As fitas cassete que faziam o rock independente circular nos anos 1990 (Cobain recebeu e levou uma penca delas de sua histórica passagem pelo Brasil, em 1993, para shows no Hollywood Rock) ainda são cultuadas por jovens hipsters, mas pouquíssimos deles possuem um aparelho para tocá-las.

Os sons que viralizam hoje no TikTok e no streaming brotam de celulares e laptops. Reality shows e programas de calouros em versão 2.0 se firmaram como o melhor atalho para um artista estourar e estabelecer-se no mundo da música — ou, mais exatamente, no mundo do entretenimento. E, como nada é simples para os humanos do século 21 — a tecnologia suga cada vez mais tempo das pessoas —, depois de estabelecido, o artista precisa tocar a carreira a partir de postagens e de certa exposição da vida pessoal, de um jeito bem parecido com o que as celebridades fazem desde o final do milênio passado.

Não existe mais a dicotomia entre bandas ou solistas que “se venderam” e talentos “malditos”, indômitos. Há tempos que os artistas independentes, por mais transgressores que sejam, são obrigados a jogar o jogo dos oligopólios que dominam o mundo digital. O conflito que marcou a trajetória de Kurt Cobain soa anacrônico para a maioria dos jovens.

Mas, na matemática global dos serviços de streaming, consta que mais de 25 milhões de pessoas escutam Nirvana todos os meses. Ele pode até estar sendo consumido como classic rock (Kurt Cobain provavelmente odiaria isso), mas sua agenda política e comportamental é cada vez mais atual. Nas letras e nas declarações públicas, Kurt Cobain abraçou de forma visceral o combate ao sexismo e à violência contra a mulher (Polly” e About a Girl são exemplos dessa militância sensível), chegando a cruzar fronteiras chocantes com Rape me (que talvez não fosse entendida em tempos de capacidades cognitivas comprometidas). Ficou famosa sua declaração: “Se você é sexista, racista, homofóbico ou basicamente um babaca, não compre este CD. Não me importo se você gosta de mim, eu te odeio”.

Influenciado pela vivência na cidade universitária de Olympia (a pouco mais de uma hora de Seattle), ele incorporou pautas feministas e anti-homofóbicas; em All Apologies, por exemplo canta “O que mais eu poderia dizer?/ Todo mundo é gay”. Ao mesmo tempo, porém, em uma de suas últimas entrevistas lúcidas, antes de submergir numa espiral de depressão e heroína, Cobain declarou com todas as letras: “Eu nunca gostaria de soar PC (politicamente correto); somos entertainers”.

Kurt Cobain durante show do Nirvana no Hollywood Rock 1993, na Praça da Apoteose, na cidade do Rio de Janeiro.  Foto: Jonas Cunha/Estadão - 23/01/1993

Nirvana no Brasil

Dos quatro shows que testemunhei do Nirvana (em Buenos Aires, em 1992; em São Paulo e no Rio, em 1993, e em Barcelona, em 9 de fevereiro de 1994), apenas o último foi levado a sério como apresentação musical. Nos outros, a galhofa e atitudes de confronto acabaram levando o espetáculo para outro lado, imprevisível, singularmente divertido e com a dose de perigo que sempre se pode esperar no punk rock. Nada disso, nem a situação de confusão mental, halitose e privação de drogas em que encontrei Kurt quando pude conversar com ele, em São Paulo, arranhou minha imensa admiração pelo artista (com um certa dose de identificação também) nascido no mesmo ano em que nasci (e também tendo como ídolo maior no rock Iggy Pop).

Em 1993, ele pichou na parede da casa que alugava, em Seattle, a frase “none of you will ever know my intentions” (“nenhum de vocês jamais conhecerá minhas intenções”). Em 2013, ao visitar o Museum of Pop Culture, em Seattle, repleto de memorabília do Nirvana, havia uma cabine onde era possível gravar mensagens “para o Cobain do futuro” (ou algo que o valha). Olhei para o lado, captei minha filha de nove anos, absorta com os itens da exposição, e registrei, entre outras frases que não lembro direito: “Não importam as intenções. O legado somos nós”.

Análise por Pedro Só

Jornalista especializado em música

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