Há uma magia qualquer que impede Kylie Minogue de se tornar refém de uma era, de um som, de uma imagem. Ela tem 55 anos, 1,52 de altura, é australiana de Melbourne e tem ficha corrida o suficiente, com seus 15 discos lançados até aqui, para ser vista, assim como Madonna tristemente se tornou, um produto passado no pop industrial. Mas a tal magia faz com que vejamos Kylie sempre como algo que acabou de acontecer, e seu novo álbum, Tension, acaba de acontecer.
Há um certo espírito review, um revisão de si mesma, na coleção de músicas do disco. Cada uma delas parece remeter a uma fase de sua carreira, e a própria cantora, em entrevista ao Estadão, concorda com isso. “Sim, está certo. Vieram as referências dos anos 80, por exemplo, na música Things We Do For Love e em You Still Get Me High. Eu posso dizer que Padam Padam é bem anos 2000... Há algumas influências ‘espaciais’ e então vem alguma coisa de 2010, como na música Baby, One More Time.”
Padam Padam, primeiro single do álbum, foi explosiva, o anúncio perfeito de um retorno triunfal. Mas o disco, com suas quebras de linearidade nem sempre assertivas, não segura essa onda o tempo todo. Não importa. Padam Padam não só reaqueceu as turbinas de um avião construído nos anos 80 como venceu a barreira do vento e colocou a cantora no TikTok.
Ela conta: “Eu estava em Los Angeles conhecendo um monte de jornalistas e executivos do streaming quando três pessoas do TikTok me procuraram. Elas falaram: ‘Olá, muito prazer em te conhecer’. Depois que fizemos as fotos e estávamos indo embora, eu disse: ‘Ah, eu acho que não sirvo para entrar no TikTok, não’. E uma das pessoas reafirmou: ‘Sim, eu entendo, isso não é algo em que todos conseguem entrar ou entender.’
Justamente quando eu estava pensando que não cabia nesse mundo, está acontecendo. E eu posso afirmar honestamente agora: ‘Eu sei! Eu estou dentro disso agora. Eu não sabia como acessar isso antes, mas Padam Padam mudou tudo.’
E expôs também uma voz extremamente afinada, metalizada e robotizada: três sintomas claros do uso do Autotune, um programa de computador criado para afinar pessoas com gosto por acertar traves. Usado no limite, ele produz uma espécie de voz de androide que se tornou uma marca dos anos 2020, e o negócio é tão sério que tem de rapper a artista sertanejo no Brasil aprendendo a cantar como se estivesse usando um Autotune. Seria bom saber da própria fonte, então, o que ela acha do Autotune. Ele não transformaria todas as vozes em uma só?
Kylie reage dizendo que não usa Autotune: “Eu canto tudo valendo, com a voz real. Eu não consigo cantar com o Autotune. Meu cérebro não entende, porque eu comecei a cantar muito antes de existir esse tipo de recurso. Então, existem várias músicas com alguns efeitos, mas eu tenho que discordar quando você diz que eu uso muito Autotune, porque eu aprendi a cantar dessa maneira. Eu sei fazer a técnica, eu sei imitar o som do Autotune.” Ela delata: “Eu já estive em várias sessões de gravação onde vi pessoas cantando fora do tom usando o Autotune e também pessoas se surpreendendo ao me verem gravar afinadamente usando meu recurso vocal como se isso não fosse possível sem o Autotune. Eu acho isso muito louco.”
Havia uma determinação aos jornalistas credenciados para a entrevista com a cantora, repassada pela produção de Kylie: “Ela não fala de etarismo nem de câncer de mama”. Uma forma de tentá-la proteger de abordagens temáticas sobre dois assuntos que já foram centrais em sua vida. Há quase 20 anos, ela detectou um câncer no seio, tratado com quimioterapia e devidamente zerado. Com relação às perguntas sobre seus 55 anos vividos em um lugar em que a vida parece acabar aos 25, as curiosidades só crescem. “Sim, a conexão com as novas gerações é hoje completamente diferente, mas agora há muito mais possibilidades. Acho esse desafio brilhante.”
E então, passados mais de 40 anos desde o início de sua carreira, como ser você mesma em um mundo que tem, de um lado, o Spotify impondo novos modelos de composição e, de outro, milhares de fãs esperando por algo ligado a seus passados afetivos. “É difícil, e eu tenho uma audiência tão grande... E os fãs gostam de coisas diferentes. Uns querem batidas eletrônicas, outros músicas emotivas e, alguns, baladas. O ditado está certo quando diz que não se pode agradar a todos o tempo todo. Eu tento fazer o meu melhor, faço o meu melhor. Mas eu só posso ser eu mesma quando penso que quanto mais fãs puderem ter o entendimento total sobre meu trabalho, melhor será”.