Não é difícil perceber o quanto o Quilombo da Diversidade (no bom sentido) destoa diametralmente do ambiente asséptico e protocolar da Assembleia Legislativa de São Paulo – inclusive por ser o primeiro gabinete a ter nome. Fotos, pôsteres e frases nas paredes reafirmam as pautas da deputada Leci Brandão, recém-reeleita. Em que pese o ativismo em seu mandato, é a própria cantora quem clama: está com saudade dos palcos. E do estúdio: prestes a iniciar as gravações do 26.º esforço solo de uma carreira que já caminha para as cinco décadas, a volta à música coincide com o lançamento de A Filha da Dona Lecy: A Trajetória de Leci Brandão (Editora Gota), da escritora Fernanda Kalianny Martins Sousa, obra que repassa a trajetória da artista pela ótica de suas composições.
“Mais de dois anos, né? Até fiz algumas lives, mas, com 77 anos, não queria estar misturada nessa confusão toda (da pandemia). Estou feliz que tudo agora tenha entrado nos eixos. Até porque, como eu sempre digo, estou deputada, mas sou artista.” Sem gravar desde Simples Assim, álbum de inéditas de 2016, a cantora prepara novo material “no seu tempo”. “A política muda toda sua agenda. Estou compondo aos poucos, não fechei repertório ainda. Tenho também muita coisa antiga não gravada. Gosto de entrar em estúdio com tudo pronto, já sabendo o que vai acontecer. Pra mim, funciona mais fácil assim. E como sou saudosista, do tempo que só tinha partido-alto, então será um disco de samba raiz.”
O tempero, ela revela, virá de novas parcerias com rappers, ao estilo de Sou Negrão, hit a duas vozes com Rappin’ Hood. “Será algo na linha samba-rap. Acho o rap fundamental. Me fascina esse raio X do povo que os rappers fazem em suas letras”, afirma. Entre os candidatos da vez, o niteroiense MC Marechal, ex-grupo Quinto Andar. Inegociável mesmo, ela ressalta, é o “recado”, a mensagem, em algumas de suas lavras.
DENSIDADE. Se por um lado a poeira ainda sobe alto ao som de Papai Vadiou, Isso É Fundo de Quintal ou As Coisas Que Mamãe Me Ensinou, brados sociais como Zé do Caroço, Vamos ao Teatro, Deixa, Deixa, transparecem toda a sua densidade poética. E coragem: se alguns de seus escritos da primeira fase da carreira já tocavam no racismo, assunto impermeável na MPB de então, hoje é quase surreal que, em plenos anos de chumbo, Leci se saísse com Ombro Amigo (tema da novela Espelho Mágico), Assumindo, Essa Tal Criatura, a própria Deixa, Deixa, protomanifestos LGBT+ com os quais testava os limites que foram estabelecidos à época pela ainda insepulta censura militar.
“Isso é natural para mim, a arte sempre foi meu instrumento de defesa dos desfavorecidos. Eu senti, eu escrevo. Na época, esses temas eram tabus. Tanto que um termo muito em voga era ‘coluna do meio’, para definir a sexualidade de alguém. Mas eu sempre falei de pessoas, de comportamentos. Sempre tive esse olhar. Posso até gravar canções de amor que não sejam banais, como já gravei. Mas nunca fiz um disco em que não houvesse recados”, define.
BIOGRAFIA. A escritora Fernanda Kalianny Martins Sousa concorda. Ao longo de três anos de entrevistas, seu mestrado (em Antropologia, na USP) abandonou a narrativa linear (a partir da infância da cantora) para focar no simbolismo de sua trajetória – mulher, negra, de origem periférica, de esquerda – pelo viés de algumas de suas letras. “Ela foi a primeira mulher a entrar na ala de compositores da Mangueira. E rompeu contrato com uma gravadora multinacional que achava suas músicas críticas demais. Anos mais tarde, tornou-se a segunda mulher negra a ser deputada estadual de São Paulo”, resume.
Outro ponto interessante, a autora ressalta, é a grande sintonia entre as canções e as pautas políticas da deputada. “Nesse sentido, pode-se dizer que ela tem uma trajetória político-musical. Os tempos dela sempre foram importantes para o momento”, observa Fernanda, que diz identificar-se com o legado de Leci. “Como mulher negra, sou conectada com a vida e obra dela.” Lançado em agosto, o mestrado virou livro, homônimo de um disco da cantora de 2002 em homenagem à matriarca, dona Lecy (com “y”).
DE VOLTA. Em que pesem os “recados”, Leci está pronta para a festa, a volta aos palcos. “Sinto que ninguém esquece meu repertório. Em um show, são muitos os pedidos. Parte de quem vai hoje me ouviu criança, o pai ou a mãe tinham os LPs, que tocavam aos domingos”, afirma. A voz, ela acredita, tem passado no teste do tempo. “Uma vez, nos anos 1980, no camarim de um show em Nova York, tive dicas preciosas da Leny Andrade, que guardo até hoje. Claro, meus tons baixaram. Quando ouço meus discos antigos, fico até surpresa. Mas já tive elogios de Gal, Chico.” Como bem crava Mano Brown, tiete confesso, com quem Leci já dividiu palcos: “Ela nunca se vendeu”.