Leia texto inédito de Bob Dylan sobre ‘My Generation’, do The Who, que adianta novo livro do cantor


Um dos maiores compositores contemporâneos e vencedor do Nobel de Literatura, Dylan analisa canções e diz que ‘My Generation’ ‘põe em xeque todas as coisas’. Livro ‘A Filosofia da Música Moderna’ sai no Brasil em novembro

Por Redação
Atualização:

Um novo livro de Bob Dylan, A Filosofia da Música Moderna, chega às livrarias brasileiras no dia 24 de novembro. Trata-se do primeiro lançamento inédito do cantor e compositor depois que ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 2016.

No livro, que começou a ser produzido em 2010, Bob Dylan escreve mais de 60 ensaios sobre composições de outros artistas, que dão uma boa amostra do que ele aprendeu sobre música ao longo de sua vida dedicada à arte. Há textos sobre canções de Stephen Foster, Elvis Costello, Hank Williams e Nina Simone, entre outros, e sobre temas que vão desde as relações entre o bluegrass e o heavy metal até reflexões sobre como fugir da armadilha das rimas fáceis.

Bob Dylan lança um novo livro no Brasil em novembro Foto: Ki Price/Reuters
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A obra (leia mais sobre ela aqui), que será lançada pela Companhia das Letras com tradução de Bruna Beber e Julia Debasse, traz ainda mais de 100 imagens e outros textos dispersos.

Leia a seguir o capítulo inédito sobre My Generation, composta por Pete Townshend e lançada pelo The Who em 1965, publicado com exclusividade pelo Estadão. Cada texto é precedido por um comentário breve de Dylan.

My Generation

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  • The Who
  • Lançada originalmente como single (Decca, 1965)
  • Composição de Pete Townshend

“Essa é uma canção que não favorece ninguém e põe em xeque todas as coisas.

Nessa canção, as pessoas tentam dar uns tapas na sua cara e te difamar. Elas são rudes e te agridem com golpes baixos. Não vão com a sua cara porque você se esforça e arrisca tudo para chegar a um determinado fim. Você põe alma e coração em tudo que faz, além de investir tudo o que tem, porque tem disposição, força e propósito. Por ser tão inspirado, as pessoas fazem qualquer coisa para que você tenha azar; elas são alérgicas a você e estão ressentidas. Sua presença por si só as repele. Elas te olham com frieza e já estão fartas — há 1 milhão de pessoas como você no mundo, se multiplicando a cada dia.

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Você faz parte de um clube seleto e está se promovendo. Tagarela sobre as pessoas da sua faixa etária, da qual é um membro do alto escalão. Você não pode esconder seu orgulho, e age com esnobismo e vaidade. Não se esforça para jogar uma grande bomba ou fazer um escândalo, você só está agitando uma bandeira e não quer que ninguém compreenda o que diz, nem mesmo para pensar e aceitar suas ideias. Olha para a sociedade com desprezo, e tudo é em vão. Você espera bater as botas antes que a senilidade chegue de vez. Você não quer ser velho e decrépito. Obrigado, não quero, vou chutar o balde antes disso. Você olha para o mundo envergonhado pela desesperança de tudo isso.

A bem da verdade, você é um homem de oitenta anos que está sendo empurrado em sua cadeira de rodas em um asilo, e as enfermeiras já estão te dando nos nervos. Você diz que tal vocês todos sumirem da minha frente? Você está vivendo sua segunda infância, não consegue dizer uma palavra sem gaguejar ou babar. Não tem nenhuma pretensão de viver no paraíso dos tolos, nem espera por isso, e torce para que isso não aconteça, bate na madeira. Você prefere morrer antes.

Fala sobre sua geração, faz um sermão, dá um discurso.

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Papo reto, olho no olho.”

“Hoje em dia é comum assistir a um filme no celular. Aí, quando você assiste à Gloria Swanson no papel da estrela de cinema decadente Norma Desmond declarar na palma da sua mão: “Eu sou alta, são as fotos que ficaram pequenas”, há nessa frase camadas de ironia que o roteirista e diretor Billy Wilder nunca poderia imaginar. É claro que alguém que está assistindo a um filme no celular prefere assistir a coisas mais curtas e rápidas no TikTok, e não a um filme em preto e branco com duração de 110 minutos.

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Cada geração tem o direito de escolher e adotar o que bem entender das gerações anteriores, com a mesma arrogância e presunção ególatras que as gerações anteriores demonstraram ao se apropriar do que julgavam melhor das gerações que vieram antes. Pete Townshend nasceu em 1945, portanto está na vanguarda da geração baby boomer, a que surgiu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A geração que antecedeu Pete e os boomers foi chamada “geração grandiosa” — e não é um termo de autocongratulação.

Pode ser útil fazer uma pausa para definir os termos. O que significa exatamente uma geração? Atualmente, a definição mais comum é o período de tempo no qual, estatisticamente, a maior parcela da população nascida ao longo de trinta anos controla o zeitgeist. Há pouco tempo entramos numa nova fase, na qual todas as pessoas que fizeram 22 anos a partir de 2019 pertencem à geração Z. Enquanto as pessoas fazem piadas sobre os millenials, esse grupo já virou notícia de ontem, está tão obsoleto quanto as gerações anteriores — os baby boomers, a geração X, a dita “geração frágil”, os ditos “intermediários”, os “neutros”, os “confiáveis”, os “inabaláveis”, os do “grande recomeço”.

Marlon Brando, assim como Elvis Presley, Little Richard e a primeira onda de roqueiros, está num limbo entre a geração grandiosa e os baby boomers — jovens demais para lutar contra os nazistas, velhos demais para Woodstock. No entanto, quando Brando respondeu “O que você tem?” para uma garota local que perguntou contra o que ele estava se rebelando no filme O selvagem, criou o cenário perfeito para os anos 1960 e a rebelião contra as comunidades perfeitinhas pré-fabricadas que os rapazes, ao voltarem da guerra, tentavam construir.

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Como tantos boomers, Pete soa ressentido nessa canção, como se tivesse sido tratado injustamente no passado. Mas ele não está 100% confiante, parece desconcertado. De certo modo, está na defensiva, sabe que as pessoas o subestimam porque ele circula por aí. Talvez porque sinta que nunca estará à altura ou por saber que as pessoas se ressentem pelo fato de a geração dele ter tempo abundante de lazer. O que ele gostaria é que essas pessoas sumissem, desaparecessem. Ele espera morrer antes de envelhecer e ser substituído, assim como ele está substituindo outras pessoas. Pete nem consegue se defender, precisa de seu porta-voz, Roger, para lançar a injúria. Esse medo talvez seja a coisa mais honesta dessa canção. Todos nós reclamamos da geração anterior, mas sabemos que é só uma questão de tempo até nos tornarmos as pessoas que nos antecederam. É provável que Pete tenha sido o primeiro a dizer isso. Ele tem um assento de primeira fila na história de sua geração. Sabia ler as placas de protesto contra o ódio e a guerra e, de certa forma, ajudou a pôr fim nisso tudo — agradecemos pelo seu serviço.

Cada geração parece apresentar a arrogância da ignorância, e opta por dispensar o que aconteceu antes em vez de construir algo em cima do passado. Então é inútil para alguém feito Pete oferecer a sabedoria de sua experiência, contar tudo o que aprendeu percorrendo caminhos semelhantes. E, se tivesse tido a audácia de fazê-lo, provavelmente o interlocutor teria olhado para Pete e falado que não conseguia vê-lo, nem ouvi-lo. E isso deu outra ideia a Pete.”

O livro Filosofia da Música Moderna, de Bob Dylan, é o primeiro inédito dele desde o Nobel de 2016 Foto: Reprodução de capa/Companhia das Letras

A Filosofia da Música Moderna

  • Autor: Bob Dylan
  • Tradução: Bruna Beber e Julia Debasse
  • Editora: Companhia das Letras (352 págs.; R$ 259)
  • Lançamento: 24/11

Um novo livro de Bob Dylan, A Filosofia da Música Moderna, chega às livrarias brasileiras no dia 24 de novembro. Trata-se do primeiro lançamento inédito do cantor e compositor depois que ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 2016.

No livro, que começou a ser produzido em 2010, Bob Dylan escreve mais de 60 ensaios sobre composições de outros artistas, que dão uma boa amostra do que ele aprendeu sobre música ao longo de sua vida dedicada à arte. Há textos sobre canções de Stephen Foster, Elvis Costello, Hank Williams e Nina Simone, entre outros, e sobre temas que vão desde as relações entre o bluegrass e o heavy metal até reflexões sobre como fugir da armadilha das rimas fáceis.

Bob Dylan lança um novo livro no Brasil em novembro Foto: Ki Price/Reuters

A obra (leia mais sobre ela aqui), que será lançada pela Companhia das Letras com tradução de Bruna Beber e Julia Debasse, traz ainda mais de 100 imagens e outros textos dispersos.

Leia a seguir o capítulo inédito sobre My Generation, composta por Pete Townshend e lançada pelo The Who em 1965, publicado com exclusividade pelo Estadão. Cada texto é precedido por um comentário breve de Dylan.

My Generation

  • The Who
  • Lançada originalmente como single (Decca, 1965)
  • Composição de Pete Townshend

“Essa é uma canção que não favorece ninguém e põe em xeque todas as coisas.

Nessa canção, as pessoas tentam dar uns tapas na sua cara e te difamar. Elas são rudes e te agridem com golpes baixos. Não vão com a sua cara porque você se esforça e arrisca tudo para chegar a um determinado fim. Você põe alma e coração em tudo que faz, além de investir tudo o que tem, porque tem disposição, força e propósito. Por ser tão inspirado, as pessoas fazem qualquer coisa para que você tenha azar; elas são alérgicas a você e estão ressentidas. Sua presença por si só as repele. Elas te olham com frieza e já estão fartas — há 1 milhão de pessoas como você no mundo, se multiplicando a cada dia.

Você faz parte de um clube seleto e está se promovendo. Tagarela sobre as pessoas da sua faixa etária, da qual é um membro do alto escalão. Você não pode esconder seu orgulho, e age com esnobismo e vaidade. Não se esforça para jogar uma grande bomba ou fazer um escândalo, você só está agitando uma bandeira e não quer que ninguém compreenda o que diz, nem mesmo para pensar e aceitar suas ideias. Olha para a sociedade com desprezo, e tudo é em vão. Você espera bater as botas antes que a senilidade chegue de vez. Você não quer ser velho e decrépito. Obrigado, não quero, vou chutar o balde antes disso. Você olha para o mundo envergonhado pela desesperança de tudo isso.

A bem da verdade, você é um homem de oitenta anos que está sendo empurrado em sua cadeira de rodas em um asilo, e as enfermeiras já estão te dando nos nervos. Você diz que tal vocês todos sumirem da minha frente? Você está vivendo sua segunda infância, não consegue dizer uma palavra sem gaguejar ou babar. Não tem nenhuma pretensão de viver no paraíso dos tolos, nem espera por isso, e torce para que isso não aconteça, bate na madeira. Você prefere morrer antes.

Fala sobre sua geração, faz um sermão, dá um discurso.

Papo reto, olho no olho.”

“Hoje em dia é comum assistir a um filme no celular. Aí, quando você assiste à Gloria Swanson no papel da estrela de cinema decadente Norma Desmond declarar na palma da sua mão: “Eu sou alta, são as fotos que ficaram pequenas”, há nessa frase camadas de ironia que o roteirista e diretor Billy Wilder nunca poderia imaginar. É claro que alguém que está assistindo a um filme no celular prefere assistir a coisas mais curtas e rápidas no TikTok, e não a um filme em preto e branco com duração de 110 minutos.

Cada geração tem o direito de escolher e adotar o que bem entender das gerações anteriores, com a mesma arrogância e presunção ególatras que as gerações anteriores demonstraram ao se apropriar do que julgavam melhor das gerações que vieram antes. Pete Townshend nasceu em 1945, portanto está na vanguarda da geração baby boomer, a que surgiu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A geração que antecedeu Pete e os boomers foi chamada “geração grandiosa” — e não é um termo de autocongratulação.

Pode ser útil fazer uma pausa para definir os termos. O que significa exatamente uma geração? Atualmente, a definição mais comum é o período de tempo no qual, estatisticamente, a maior parcela da população nascida ao longo de trinta anos controla o zeitgeist. Há pouco tempo entramos numa nova fase, na qual todas as pessoas que fizeram 22 anos a partir de 2019 pertencem à geração Z. Enquanto as pessoas fazem piadas sobre os millenials, esse grupo já virou notícia de ontem, está tão obsoleto quanto as gerações anteriores — os baby boomers, a geração X, a dita “geração frágil”, os ditos “intermediários”, os “neutros”, os “confiáveis”, os “inabaláveis”, os do “grande recomeço”.

Marlon Brando, assim como Elvis Presley, Little Richard e a primeira onda de roqueiros, está num limbo entre a geração grandiosa e os baby boomers — jovens demais para lutar contra os nazistas, velhos demais para Woodstock. No entanto, quando Brando respondeu “O que você tem?” para uma garota local que perguntou contra o que ele estava se rebelando no filme O selvagem, criou o cenário perfeito para os anos 1960 e a rebelião contra as comunidades perfeitinhas pré-fabricadas que os rapazes, ao voltarem da guerra, tentavam construir.

Como tantos boomers, Pete soa ressentido nessa canção, como se tivesse sido tratado injustamente no passado. Mas ele não está 100% confiante, parece desconcertado. De certo modo, está na defensiva, sabe que as pessoas o subestimam porque ele circula por aí. Talvez porque sinta que nunca estará à altura ou por saber que as pessoas se ressentem pelo fato de a geração dele ter tempo abundante de lazer. O que ele gostaria é que essas pessoas sumissem, desaparecessem. Ele espera morrer antes de envelhecer e ser substituído, assim como ele está substituindo outras pessoas. Pete nem consegue se defender, precisa de seu porta-voz, Roger, para lançar a injúria. Esse medo talvez seja a coisa mais honesta dessa canção. Todos nós reclamamos da geração anterior, mas sabemos que é só uma questão de tempo até nos tornarmos as pessoas que nos antecederam. É provável que Pete tenha sido o primeiro a dizer isso. Ele tem um assento de primeira fila na história de sua geração. Sabia ler as placas de protesto contra o ódio e a guerra e, de certa forma, ajudou a pôr fim nisso tudo — agradecemos pelo seu serviço.

Cada geração parece apresentar a arrogância da ignorância, e opta por dispensar o que aconteceu antes em vez de construir algo em cima do passado. Então é inútil para alguém feito Pete oferecer a sabedoria de sua experiência, contar tudo o que aprendeu percorrendo caminhos semelhantes. E, se tivesse tido a audácia de fazê-lo, provavelmente o interlocutor teria olhado para Pete e falado que não conseguia vê-lo, nem ouvi-lo. E isso deu outra ideia a Pete.”

O livro Filosofia da Música Moderna, de Bob Dylan, é o primeiro inédito dele desde o Nobel de 2016 Foto: Reprodução de capa/Companhia das Letras

A Filosofia da Música Moderna

  • Autor: Bob Dylan
  • Tradução: Bruna Beber e Julia Debasse
  • Editora: Companhia das Letras (352 págs.; R$ 259)
  • Lançamento: 24/11

Um novo livro de Bob Dylan, A Filosofia da Música Moderna, chega às livrarias brasileiras no dia 24 de novembro. Trata-se do primeiro lançamento inédito do cantor e compositor depois que ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 2016.

No livro, que começou a ser produzido em 2010, Bob Dylan escreve mais de 60 ensaios sobre composições de outros artistas, que dão uma boa amostra do que ele aprendeu sobre música ao longo de sua vida dedicada à arte. Há textos sobre canções de Stephen Foster, Elvis Costello, Hank Williams e Nina Simone, entre outros, e sobre temas que vão desde as relações entre o bluegrass e o heavy metal até reflexões sobre como fugir da armadilha das rimas fáceis.

Bob Dylan lança um novo livro no Brasil em novembro Foto: Ki Price/Reuters

A obra (leia mais sobre ela aqui), que será lançada pela Companhia das Letras com tradução de Bruna Beber e Julia Debasse, traz ainda mais de 100 imagens e outros textos dispersos.

Leia a seguir o capítulo inédito sobre My Generation, composta por Pete Townshend e lançada pelo The Who em 1965, publicado com exclusividade pelo Estadão. Cada texto é precedido por um comentário breve de Dylan.

My Generation

  • The Who
  • Lançada originalmente como single (Decca, 1965)
  • Composição de Pete Townshend

“Essa é uma canção que não favorece ninguém e põe em xeque todas as coisas.

Nessa canção, as pessoas tentam dar uns tapas na sua cara e te difamar. Elas são rudes e te agridem com golpes baixos. Não vão com a sua cara porque você se esforça e arrisca tudo para chegar a um determinado fim. Você põe alma e coração em tudo que faz, além de investir tudo o que tem, porque tem disposição, força e propósito. Por ser tão inspirado, as pessoas fazem qualquer coisa para que você tenha azar; elas são alérgicas a você e estão ressentidas. Sua presença por si só as repele. Elas te olham com frieza e já estão fartas — há 1 milhão de pessoas como você no mundo, se multiplicando a cada dia.

Você faz parte de um clube seleto e está se promovendo. Tagarela sobre as pessoas da sua faixa etária, da qual é um membro do alto escalão. Você não pode esconder seu orgulho, e age com esnobismo e vaidade. Não se esforça para jogar uma grande bomba ou fazer um escândalo, você só está agitando uma bandeira e não quer que ninguém compreenda o que diz, nem mesmo para pensar e aceitar suas ideias. Olha para a sociedade com desprezo, e tudo é em vão. Você espera bater as botas antes que a senilidade chegue de vez. Você não quer ser velho e decrépito. Obrigado, não quero, vou chutar o balde antes disso. Você olha para o mundo envergonhado pela desesperança de tudo isso.

A bem da verdade, você é um homem de oitenta anos que está sendo empurrado em sua cadeira de rodas em um asilo, e as enfermeiras já estão te dando nos nervos. Você diz que tal vocês todos sumirem da minha frente? Você está vivendo sua segunda infância, não consegue dizer uma palavra sem gaguejar ou babar. Não tem nenhuma pretensão de viver no paraíso dos tolos, nem espera por isso, e torce para que isso não aconteça, bate na madeira. Você prefere morrer antes.

Fala sobre sua geração, faz um sermão, dá um discurso.

Papo reto, olho no olho.”

“Hoje em dia é comum assistir a um filme no celular. Aí, quando você assiste à Gloria Swanson no papel da estrela de cinema decadente Norma Desmond declarar na palma da sua mão: “Eu sou alta, são as fotos que ficaram pequenas”, há nessa frase camadas de ironia que o roteirista e diretor Billy Wilder nunca poderia imaginar. É claro que alguém que está assistindo a um filme no celular prefere assistir a coisas mais curtas e rápidas no TikTok, e não a um filme em preto e branco com duração de 110 minutos.

Cada geração tem o direito de escolher e adotar o que bem entender das gerações anteriores, com a mesma arrogância e presunção ególatras que as gerações anteriores demonstraram ao se apropriar do que julgavam melhor das gerações que vieram antes. Pete Townshend nasceu em 1945, portanto está na vanguarda da geração baby boomer, a que surgiu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A geração que antecedeu Pete e os boomers foi chamada “geração grandiosa” — e não é um termo de autocongratulação.

Pode ser útil fazer uma pausa para definir os termos. O que significa exatamente uma geração? Atualmente, a definição mais comum é o período de tempo no qual, estatisticamente, a maior parcela da população nascida ao longo de trinta anos controla o zeitgeist. Há pouco tempo entramos numa nova fase, na qual todas as pessoas que fizeram 22 anos a partir de 2019 pertencem à geração Z. Enquanto as pessoas fazem piadas sobre os millenials, esse grupo já virou notícia de ontem, está tão obsoleto quanto as gerações anteriores — os baby boomers, a geração X, a dita “geração frágil”, os ditos “intermediários”, os “neutros”, os “confiáveis”, os “inabaláveis”, os do “grande recomeço”.

Marlon Brando, assim como Elvis Presley, Little Richard e a primeira onda de roqueiros, está num limbo entre a geração grandiosa e os baby boomers — jovens demais para lutar contra os nazistas, velhos demais para Woodstock. No entanto, quando Brando respondeu “O que você tem?” para uma garota local que perguntou contra o que ele estava se rebelando no filme O selvagem, criou o cenário perfeito para os anos 1960 e a rebelião contra as comunidades perfeitinhas pré-fabricadas que os rapazes, ao voltarem da guerra, tentavam construir.

Como tantos boomers, Pete soa ressentido nessa canção, como se tivesse sido tratado injustamente no passado. Mas ele não está 100% confiante, parece desconcertado. De certo modo, está na defensiva, sabe que as pessoas o subestimam porque ele circula por aí. Talvez porque sinta que nunca estará à altura ou por saber que as pessoas se ressentem pelo fato de a geração dele ter tempo abundante de lazer. O que ele gostaria é que essas pessoas sumissem, desaparecessem. Ele espera morrer antes de envelhecer e ser substituído, assim como ele está substituindo outras pessoas. Pete nem consegue se defender, precisa de seu porta-voz, Roger, para lançar a injúria. Esse medo talvez seja a coisa mais honesta dessa canção. Todos nós reclamamos da geração anterior, mas sabemos que é só uma questão de tempo até nos tornarmos as pessoas que nos antecederam. É provável que Pete tenha sido o primeiro a dizer isso. Ele tem um assento de primeira fila na história de sua geração. Sabia ler as placas de protesto contra o ódio e a guerra e, de certa forma, ajudou a pôr fim nisso tudo — agradecemos pelo seu serviço.

Cada geração parece apresentar a arrogância da ignorância, e opta por dispensar o que aconteceu antes em vez de construir algo em cima do passado. Então é inútil para alguém feito Pete oferecer a sabedoria de sua experiência, contar tudo o que aprendeu percorrendo caminhos semelhantes. E, se tivesse tido a audácia de fazê-lo, provavelmente o interlocutor teria olhado para Pete e falado que não conseguia vê-lo, nem ouvi-lo. E isso deu outra ideia a Pete.”

O livro Filosofia da Música Moderna, de Bob Dylan, é o primeiro inédito dele desde o Nobel de 2016 Foto: Reprodução de capa/Companhia das Letras

A Filosofia da Música Moderna

  • Autor: Bob Dylan
  • Tradução: Bruna Beber e Julia Debasse
  • Editora: Companhia das Letras (352 págs.; R$ 259)
  • Lançamento: 24/11

Um novo livro de Bob Dylan, A Filosofia da Música Moderna, chega às livrarias brasileiras no dia 24 de novembro. Trata-se do primeiro lançamento inédito do cantor e compositor depois que ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 2016.

No livro, que começou a ser produzido em 2010, Bob Dylan escreve mais de 60 ensaios sobre composições de outros artistas, que dão uma boa amostra do que ele aprendeu sobre música ao longo de sua vida dedicada à arte. Há textos sobre canções de Stephen Foster, Elvis Costello, Hank Williams e Nina Simone, entre outros, e sobre temas que vão desde as relações entre o bluegrass e o heavy metal até reflexões sobre como fugir da armadilha das rimas fáceis.

Bob Dylan lança um novo livro no Brasil em novembro Foto: Ki Price/Reuters

A obra (leia mais sobre ela aqui), que será lançada pela Companhia das Letras com tradução de Bruna Beber e Julia Debasse, traz ainda mais de 100 imagens e outros textos dispersos.

Leia a seguir o capítulo inédito sobre My Generation, composta por Pete Townshend e lançada pelo The Who em 1965, publicado com exclusividade pelo Estadão. Cada texto é precedido por um comentário breve de Dylan.

My Generation

  • The Who
  • Lançada originalmente como single (Decca, 1965)
  • Composição de Pete Townshend

“Essa é uma canção que não favorece ninguém e põe em xeque todas as coisas.

Nessa canção, as pessoas tentam dar uns tapas na sua cara e te difamar. Elas são rudes e te agridem com golpes baixos. Não vão com a sua cara porque você se esforça e arrisca tudo para chegar a um determinado fim. Você põe alma e coração em tudo que faz, além de investir tudo o que tem, porque tem disposição, força e propósito. Por ser tão inspirado, as pessoas fazem qualquer coisa para que você tenha azar; elas são alérgicas a você e estão ressentidas. Sua presença por si só as repele. Elas te olham com frieza e já estão fartas — há 1 milhão de pessoas como você no mundo, se multiplicando a cada dia.

Você faz parte de um clube seleto e está se promovendo. Tagarela sobre as pessoas da sua faixa etária, da qual é um membro do alto escalão. Você não pode esconder seu orgulho, e age com esnobismo e vaidade. Não se esforça para jogar uma grande bomba ou fazer um escândalo, você só está agitando uma bandeira e não quer que ninguém compreenda o que diz, nem mesmo para pensar e aceitar suas ideias. Olha para a sociedade com desprezo, e tudo é em vão. Você espera bater as botas antes que a senilidade chegue de vez. Você não quer ser velho e decrépito. Obrigado, não quero, vou chutar o balde antes disso. Você olha para o mundo envergonhado pela desesperança de tudo isso.

A bem da verdade, você é um homem de oitenta anos que está sendo empurrado em sua cadeira de rodas em um asilo, e as enfermeiras já estão te dando nos nervos. Você diz que tal vocês todos sumirem da minha frente? Você está vivendo sua segunda infância, não consegue dizer uma palavra sem gaguejar ou babar. Não tem nenhuma pretensão de viver no paraíso dos tolos, nem espera por isso, e torce para que isso não aconteça, bate na madeira. Você prefere morrer antes.

Fala sobre sua geração, faz um sermão, dá um discurso.

Papo reto, olho no olho.”

“Hoje em dia é comum assistir a um filme no celular. Aí, quando você assiste à Gloria Swanson no papel da estrela de cinema decadente Norma Desmond declarar na palma da sua mão: “Eu sou alta, são as fotos que ficaram pequenas”, há nessa frase camadas de ironia que o roteirista e diretor Billy Wilder nunca poderia imaginar. É claro que alguém que está assistindo a um filme no celular prefere assistir a coisas mais curtas e rápidas no TikTok, e não a um filme em preto e branco com duração de 110 minutos.

Cada geração tem o direito de escolher e adotar o que bem entender das gerações anteriores, com a mesma arrogância e presunção ególatras que as gerações anteriores demonstraram ao se apropriar do que julgavam melhor das gerações que vieram antes. Pete Townshend nasceu em 1945, portanto está na vanguarda da geração baby boomer, a que surgiu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. A geração que antecedeu Pete e os boomers foi chamada “geração grandiosa” — e não é um termo de autocongratulação.

Pode ser útil fazer uma pausa para definir os termos. O que significa exatamente uma geração? Atualmente, a definição mais comum é o período de tempo no qual, estatisticamente, a maior parcela da população nascida ao longo de trinta anos controla o zeitgeist. Há pouco tempo entramos numa nova fase, na qual todas as pessoas que fizeram 22 anos a partir de 2019 pertencem à geração Z. Enquanto as pessoas fazem piadas sobre os millenials, esse grupo já virou notícia de ontem, está tão obsoleto quanto as gerações anteriores — os baby boomers, a geração X, a dita “geração frágil”, os ditos “intermediários”, os “neutros”, os “confiáveis”, os “inabaláveis”, os do “grande recomeço”.

Marlon Brando, assim como Elvis Presley, Little Richard e a primeira onda de roqueiros, está num limbo entre a geração grandiosa e os baby boomers — jovens demais para lutar contra os nazistas, velhos demais para Woodstock. No entanto, quando Brando respondeu “O que você tem?” para uma garota local que perguntou contra o que ele estava se rebelando no filme O selvagem, criou o cenário perfeito para os anos 1960 e a rebelião contra as comunidades perfeitinhas pré-fabricadas que os rapazes, ao voltarem da guerra, tentavam construir.

Como tantos boomers, Pete soa ressentido nessa canção, como se tivesse sido tratado injustamente no passado. Mas ele não está 100% confiante, parece desconcertado. De certo modo, está na defensiva, sabe que as pessoas o subestimam porque ele circula por aí. Talvez porque sinta que nunca estará à altura ou por saber que as pessoas se ressentem pelo fato de a geração dele ter tempo abundante de lazer. O que ele gostaria é que essas pessoas sumissem, desaparecessem. Ele espera morrer antes de envelhecer e ser substituído, assim como ele está substituindo outras pessoas. Pete nem consegue se defender, precisa de seu porta-voz, Roger, para lançar a injúria. Esse medo talvez seja a coisa mais honesta dessa canção. Todos nós reclamamos da geração anterior, mas sabemos que é só uma questão de tempo até nos tornarmos as pessoas que nos antecederam. É provável que Pete tenha sido o primeiro a dizer isso. Ele tem um assento de primeira fila na história de sua geração. Sabia ler as placas de protesto contra o ódio e a guerra e, de certa forma, ajudou a pôr fim nisso tudo — agradecemos pelo seu serviço.

Cada geração parece apresentar a arrogância da ignorância, e opta por dispensar o que aconteceu antes em vez de construir algo em cima do passado. Então é inútil para alguém feito Pete oferecer a sabedoria de sua experiência, contar tudo o que aprendeu percorrendo caminhos semelhantes. E, se tivesse tido a audácia de fazê-lo, provavelmente o interlocutor teria olhado para Pete e falado que não conseguia vê-lo, nem ouvi-lo. E isso deu outra ideia a Pete.”

O livro Filosofia da Música Moderna, de Bob Dylan, é o primeiro inédito dele desde o Nobel de 2016 Foto: Reprodução de capa/Companhia das Letras

A Filosofia da Música Moderna

  • Autor: Bob Dylan
  • Tradução: Bruna Beber e Julia Debasse
  • Editora: Companhia das Letras (352 págs.; R$ 259)
  • Lançamento: 24/11

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