Ele tinha 26 anos quando seguia em seu Dodge 1951 pela Rua Manoel da Nóbrega sentido Ibirapuera. Sabe-se que o carro era verde e branco estilo saia e blusa, metade verde e metade branco, e só. Era 1959 e Zuza Homem de Mello passaria a vida sem se lembrar bem de onde vinha nem exatamente para onde ia naquela tarde, antes que a voz de João Gilberto saísse do rádio do Dodge para alvejá-lo com uma força que talvez só Ella Fitzgerald e Duke Ellington possuíssem e o obrigasse a estacionar para respirar. João chegava para não partir mais, instalando-se no interior de Zuza pelos próximos 60 anos. E Zuza deixava-se atropelar para traduzi-lo, desbravando a caixa de ressonância daquele violão até entender todos os seus mistérios.
Zuza e João se foram muito perto de biógrafo e biografado se misturarem nas profundezas de um e de outro com a finalização do projeto biográfico mais aprofundado sobre o cantor e compositor de Juazeiro da Bahia. João partiu antes, em julho de 2019, quando já havia sido um personagem de estudo do pesquisador em um perfil lançado em 2001. Zuza se foi no dia 4 de outubro, quando já havia finalizado um novo livro a partir do primeiro, com mais entrevistas e capítulos revisados e estendidos. Antes de partir, iniciou negociações para lançá-lo pela Editora 34, com a qual havia trabalhado na maioria dos seus livros, mas as conversas não progrediram. Agora, com a viúva Ercília Lobo, sua revisora e preparadora de textos, levando seus desejos à frente, a obra ganhou casa nova, a editora Companhia das Letras, e será lançada no segundo semestre de 2021.
O Estadão teve acesso a um trecho do livro ainda sem o tratamento da editora, ou seja, exatamente da forma como Zuza o escreveu, para publicar com exclusividade (veja abaixo). O autor se coloca com suas memórias e narra o episódio do Dodge 51, a primeira vez em que a voz de João Gilberto chegou a ele. E parte para iluminar fases de muitos contos e poucas comprovações, como sobre a vida de João em Juazeiro da Bahia, de onde saiu aos 18 anos; Porto Alegre, para onde foi depois de passar uma primeira temporada no Rio, pré-bossa nova; e em Diamantina, Minas Gerais.
Ercília agora é a sua voz. Ainda que chorando todos os dias o vazio de um espaço que não se preenche, ela percebeu que não haverá distância e que Zuza não é um homem que se enterra num dia para que a vida siga anestesiando dores com memórias. As roupas elegantes de Zuza, muitas delas de grife e em ótimo estado, serão doadas para a Abramus (Associação Brasileira de Música e Artes) para que beneficiem os músicos que tiveram seus ganhos limitados com a Covid-19. Além do livro que deixou como queria, com cada vírgula estudada e compartilhada com a mulher, seu legado de 10 mil LPs e quatro mil CDs também pode seguir para o destino de seu desejo.
Ercília ainda não sabe como fazer isso, não se restabeleceu para estudar os detalhes, mas pode começar a atender a um desejo muito coerente com a lógica que pautou a vida de seu marido: ele queria que seus discos de música brasileira fossem negociados com uma instituição no exterior e que seus álbuns de jazz europeus e norte-americanos (por volta de 500) ficassem com uma organização no Brasil. “E tudo com o recorte curatorial dele. Mas é preciso que esses lugares democratizem o acesso a esse material e o façam chegar aos jovens, uma das maiores preocupações do Zuza.” Quando for propor o batismo de um logradouro de São Paulo com o seu nome, um vereador bem aventurado deveria pensar em uma ponte. “Era o que ele fazia”, diz Ercília. “Falava de jazz no Brasil e de João Gilberto lá fora.”
Instigado com a obra sobre João, Zuza se referia a ela com brilho. Seu dia de trabalho começava às 4h da manhã, quando acordava e seguia para o escritório. Ercília o abraçava e o chamava para descansar por volta das 7h. “Venha dormir um pouco mais, meu amor.” Mas, antes, ele precisava dividir o que havia feito. “Consegui dar um jeito naquele parágrafo!”. E o lia para saber sua opinião. Ela respondia com um sorriso e o cobria para ele dormir até às 10h. Quando acordava, tomava um belo café da manhã de não menos de uma hora de duração e saía para uma caminhada. Pela tarde, retomava o texto às 15h e seguia até às 20h, quando parava para descansar e tomar uma dose de uísque antes de dormir para acordar às 4h. “Sabe que foi melhor ele ter ido antes?”, disse Ana Paula, uma funcionária da família que trabalhava na casa de Indaiatuba, que agora será vendida. Por quê? “Porque a senhora é ele fora dele.”
Trecho inédito:Leia um trecho que deve estar na abertura do livro escrito por Zuza Homem de Mello
“Também me recordo nitidamente quando ouvi pela primeira vez. Descia a Rua Manoel da Nóbrega na perua Dodge 51, verde com capota branca, modelo “saia e blusa”. Estava chegando ao Monumento das Bandeiras do Brecheret quando ouvi no rádio. Não acreditei, fiquei estático, no duro mesmo. Encostei o carro na guia para escutar direito até o fim, sem perder nada. Estava ouvindo João Gilberto pela primeira vez. A cena se passa na minha memória até hoje. Fiquei sabendo que os grandes, Chico, Caetano, Gil, Milton, Edu, Marcos, Elis, Dori, os dessa geração, também se lembram desse seu momento.
Corta para dois meses depois, começo de 59: estava ali, à minha frente no estúdio da TV Record perto do Aeroporto de Congonhas. Ajeitava o violão aprontando-se para cantar no programa Astros do Disco, um hit parade semanal de televisão apresentado por Randal Juliano e Idalina de Oliveira, garota propaganda como se dizia à época. Numa banqueta alta, a poucos passos, era só chegar e falar com o homem. Que coisa poderia dizer? Faltou coragem. Fui plugar mais um microfone, minha função, plugar quando ouvia a ordem do Rogerio Gauss, canal cinco! Agora já não dava mais. Voltei e assisti de pertinho, bem ao lado da câmara. Bom, pelo menos tinha visto o homem.
Com violão e tudo. Eu vi João Gilberto. Uma vez por ano a TV Record premiava os destaques do Astros do Disco com o Troféu Chico Viola em show de gala do Teatro Record da Consolação onde então eu era o técnico de som dos programas musicais de grande audiência. João Gilberto foi um dos premiados em 1959. Dessa vez ia conhecer o homem sem ficar com medo. Só que ele não apareceu para ensaiar à tarde. Da cabine da mesa de som pude ver de longe João receber o prêmio. Não deu para falar com João Gilberto. De novo. Seus discos iam saindo e não sei dizer quantas vezes ouvi os três LPs da Odeon em envelope de sobrecapa plástica, comprados na loja Brenno Rossi no fundo de uma galeria na Rua Barão de Itapetininga.
Em 1965 ele veio dos Estados Unidos como convidado especial do programa O Fino da Bossa de Elis Regina. O empresário Marcos Lázaro é quem fechou o contrato. De novo não apareceu para o sound check, a passagem de som. À noite, Elis anunciou inflamada: Joããão Gilbeeerto! Aplaudido freneticamente, entrou tímido e cantou três músicas. Descontente com o retorno que ainda não existia, desistiu. Parou de vez e saiu de mansinho pela coxia. Visivelmente atrapalhada, Elis correu para retomar o programa enquanto João já estava longe. Tenho a fita com as três músicas bem gravadas. Pela terceira vez perdi a chance de falar com ele.
Em dezembro de 1967 é que de fato vim a conhecer João em Weehawken, New Jersey, onde morava com Miúcha, sua mulher, e a filhinha Bebel, que ele chamava de Isabelzinha. Miúcha me dera o telefone. Cheguei à tarde pela rua sossegada com o chão forrado da neve de inverno, abracei João pela primeira vez e fui ficando. Conversava falando baixo, com delicadeza, não se perdia um sibilado, nem um erre do que dizia. Encantado com sua nova filmadora João quis filmar umas cenas lá fora, no frio. Fiz uma foto, depois fiz mais fotos dos três dentro de casa. Passamos a noite ouvindo música, tomamos chocolate gelado batido no liquidificador, indo de um lado para outro no andar térreo da casa enorme para três pessoas, que fora mobiliada para receber o crítico literário Antonio Cândido, amigo do pai de Miúcha. Quando dei por mim estava amanhecendo. Despedi-me pouco antes e voltei de trem para New York. Foi o começo da amizade que já estava no ar.”