Sua mão esquerda assumia o protagonismo com a mesma intensidade que a direita saía ligeira para as regiões mais agudas do piano. A harmonia fazia a mesma melodia atingir o estado de levitação sem nunca ser a mesma e seu suingue chegava com força para arrastar três homens ou uma orquestra inteira. Se não fosse nada disso também seria bom, porque a música de Luiz Eça tinha menos a ver com as aulas da escola clássica de Viena e mais com um impulso incontrolável que lhe saía de um canto obscuro da alma.
Luizinho Eça foi assim desenhando sua parte da história que fez a música brasileira sair do status exótico aos olhos do mundo para se tornar a superpotência a partir da segunda metade dos anos 1950. A força de uma natureza que nem ele mesmo parecia conhecer levava dois segundos para se impor em um arroubo que transbordava e ganhava vida própria à revelia de sua própria existência. “Alguém o definiu muito bem ao dizer que Luiz Eça era tão completo que nem ele mesmo conhecia as possibilidades que tinha”, diz o jornalista e pesquisador Zuza Homem de Mello.
A parte do revisionismo cabe agora a uma espécie de quarteto fantástico que se forma para homenagear um dos poucos homens que eles chamam de professor. Morto aos 56 anos, em 1992, Eça será lembrado pelos compositores Dori Caymmi, Edu Lobo, Toninho Horta e pelo cantor Zé Renato no projeto chamado Em Casa Com Luiz Eça, produzido por seu filho, Igor Eça. O disco será mostrado com uma apresentação nesta terça (25), no Theatro Net Rio. O show, em breve, será lançado em DVD.
Há um cuidado no repertório e no roteiro. “Eles todos que tocam no projeto foram mesmo, em algum momento, à casa do meu pai, no Leblon”, diz Igor. Tamba, a música gravada pelo Tamba Trio (ou Trio Tamba) em seu primeiro disco, de 1962, será cantada pelos quatro. Zé Renato mostra Quase Um Adeus, que seria a única parceria entre Eça e Vinicius não fosse a displicência do poeta em dar a folha com os versos escritos ao amigo pianista para que ele enrolasse um cigarro. Quem fez os versos recentemente, então, foi Paulo Cesar Pinheiro. Edu Lobo canta Imagem, o samba de ouro de Eça, e Imagem 2, um interlúdio inédito composto por Igor com a aprovação do pai. O fusion interplanetário The Dolphin, gravado por Bill Evans duas vezes (ele quis corrigir a tonalidade errada que havia registrado na primeira vez) é assunto para o guitarrista Toninho Horta.
Criador do Tamba Trio, em 1962, depois de ter o futuro organista Ed Lincoln tocando baixo em seu trio e Milton Banana conduzindo a bateria em seu conjunto, Eça aparece nas memórias sobretudo em duas frentes: um harmonizador e um arranjador inesgotável. “Era uma espécie de professor, sem o lado chato do professor. Ele poderia ter composto mais 500 músicas, acabou criando um centésimo disso”, diz Edu Lobo. “Ele nunca resolvia a música da mesma maneira e tinha um suingue impressionante. Acabei usando muito de sua maneira de fazer transposições harmônicas”, lembra o guitarrista Toninho Horta. “Eça foi o pioneiro na regência orquestral da música brasileira, algo que não existe mais”, fala Dori Caymmi. “Não esqueço da vez em que o vi com o Tamba Trio em ação”, recorda Zé Renato.
Dori, que se vê como um descendente direto do pensamento musical de Eça nos quesitos orquestral e harmônico, faz uma distinção entre o piano do músico e o de Tom Jobim. “Ele é completamente oposto a Jobim, que não tinha técnica de piano. Eça tinha uma pegada mais europeia, sem muita ligação com o jazz.” Zuza Homem de Mello também faz diferenças. “Temos que lembrar que Tom começou como pianista, mas Eça era mesmo mais instrumentista. Era assombroso ao instrumento e tinha uma mão esquerda impressionante.”
A pianista Silvia Góes, que se apresentou ao lado de Luiz Eça nos anos 80, define o músico como alguém de “sensibilidade harmônica fora do normal”. “Há dois tipos de músico: o técnico, que pode tocar milhões de notas bonitas e tal, e o harmônico, algo que ele só consegue atingir se tiver sentimento para isso. Luizinho Eça era desses.”
O dia em que o pianista resolveu ‘reaparecer’ na TV CulturaPrograma ‘Jazz Brasil’, de 1990, apresentado por Zuza Homem de Mello, recebeu Eça em noite mais que inspirada
Um dia memorável. É a frase com a qual Zuza Homem de Mello define a vez em que recebeu Luiz Eça em um de seus programas Jazz Brasil, apresentado na TV Cultura nos anos de 1989 e 1990. “Ele vinha de problemas de saúde, estava afastado, mas chegou lá para fazer um dos mais espetaculares programas que já fiz. Batemos um papo como se fôssemos velhos amigos.”
Eça estava mesmo em uma noite inspirada. As recordações de Zuza podem ser vistas em vídeos na internet, preservados pela Cultura. Eça estava acompanhado pela baterista Lilian Carmona e pelo baixista Luiz Alves. Samba de Uma Nota Só foi um arraso, mas veio em um andamento tão ligeiro que lhe pregou uma peça. Depois de fazer a mão esquerda movimentar os baixos de forma inebriante na primeira parte, ele salta para a segunda precisando manter o fogo alto que acendeu desde o início, mas as notas se atropelam. Esperto, não deixa a segunda parte criada por Jobim, com letra de Newton Mendonça, retornar e termina a música como uma vinheta. Mais suave, O Barquinho, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, vai trazer a face do suingue de Eça, algo que remete aos anos de Tamba Trio e das blue notes que entremeavam suas frases.
Luiz Eça, descendente distante do escritor português Eça de Queirós, tem sua carreira iniciada na década de 1950, quando começou a ouvir o piano de outro homem, de outros traços musicais, que ajudaria a desenhar a bossa nova que viria logo mais: Johnny Alf. Eça chegaria a substituí-lo em apresentações na Boate Plaza. Uma das formações de seu grupo teria João Donato no acordeom (seu primeiro instrumento antes do piano), Milton Banana na bateria e a cantora Claudette Soares. Antes de fazer parte da primeira fase da Bossa Nova com o Tamba Trio, Eça formou o trio Penumbra, com Candinho ao violão e Jambeiro no contrabaixo, para apresentações na Rádio Mayrink Veiga.