RIO - Trinta e três anos de carreira, 30 discos lançados, mais de duas dúzias de sucessos incontestes, Lulu Santos não tem se sentido instigado a compor. Prefere rever a própria obra ou se aventurar pela alheia. Em 2013, passeou pelo repertório de Roberto Carlos e Erasmo Carlos. No começo do ano, depois de ler a autobiografia de Rita Lee, decidiu recuperar as canções da amiga que primeiro lhe vieram à memória e ao coração. Nascia seu Baby Baby!, CD que reúne versões irresistíveis de hits dos anos 1970 e 1980, como Baila comigo, Desculpe o auê, Ovelha negra, Agora só falta você, Alô! Alô! Marciano e Nem luxo, nem lixo.
“Eu tenho feito muito pouca música. É um automático tamanho que outro dia, para criar um jingle de fim de ano de um minuto para uma loja, levei sete minutos. Virei um compositor desses de repente, de ‘diga aí!’. É muito corriqueiro para ser uma descoberta excitante. Estou criterioso não é nem com a composição, mas com o impulso da composição”, conta Lulu, que acredita ter muito “material reciclável” de discos anteriores que poderão ser aproveitadas futuramente – músicas que ficaram à sombra das que ganharam as rádios.
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“Fiz 30 álbuns. Os Beatles fizeram nove. Vi uma entrevista com o Rod Stewart em que ele disse que o artista consagrado interessa a uma ou a duas gerações, mas depois de um certo tempo o trabalho novo começa a perder voltagem. O interesse que ele suscita jamais será igual. Sir Paul McCartney e Sir Elton John lançaram discos de inéditas que não foram a lugar algum. Já Rod fez quatro de standards da música norte-americanas, todos million sellers... Chega uma hora em que você tem que variar a sua oferta. E uma forma de fazer isso é habitando a pele do outro. Pegar uma obra e fazer do seu jeito. É como ganhar um guarda-roupa inteiro e novo de uma vez.”
No caso de Rita, o despe-veste começa com a solar Disco Voador, do LP Babilônia, que Rita lançou em 1978 com o Tutti Frutti: “Da minha janela vejo uma luz/ Brilhando no céu da terra/ É azul, é azul/ Não é avião, não é estrela/ Aquela é a luz de um disco voador”. “Não é um grande sucesso da Rita, mas é uma das melodias e harmonias de que mais gosto, e acidentalmente ou incidentalmente é a mais parecida com o tipo de coisa que eu comecei fazendo. Junta as duas linguagens, e explica o disco da primeira faixa em diante com clareza. Hoje, no Brasil, você tem que ser muito claro, para não correr o risco de ser mal interpretado.”
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Além desta, há outras duas faixas menos conhecidas, uma pré e outra pós-Roberto de Carvalho: Fuga n.º II, dos Mutantes (1969), a mais antiga do conjunto de canções, e Paradise Brasil, do último trabalho de Rita, Reza (2012), que fecha o CD. Fuga é a preferida atual de Lulu. “Foi a última a entrar, uma iluminação. Cabe nesse momento que a gente está passando no Brasil”, diz. “Hoje eu vou fugir de casa/ Vou levar a mala cheia de ilusão/ Vou deixar alguma coisa velha/ Esparramada toda pelo chão”, anuncia a letra, que depois indaga “para onde vou?”
Com letra em inglês, Paradise Brasil mistura programação (DJ Memê) com percussão de escola de samba (Pretinho da Serrinha) para debochar das eternas contradições brasileiras: “You dress to die and strip to kill/ But nature lies in a ditch/ Oh, ain’t life a bitch?” .
É o autor de Tempos modernos e Toda forma de amor falando do desencanto com o “avanço do retrocesso” brasileiro, simbolizado pelo boicote a manifestações artísticas e anacronismos, como a volta do debate sobre a “cura gay”. “É difícil a missão da vida do brasileiro. Eu não consigo entrar nessa discussão mais, é o não debate. Não achei que fosse preciso voltar a isso. Claro que estou do lado da arte, para quem quiser. Há quem não queira.”
Entre rascunhos e demos, Baby Baby! vem sendo preparado desde fevereiro – a “gestação” durou nove meses, “como convém”, ele brinca. Rita e Roberto foram parceiros de primeira hora. Lulu mandava versões brutas para eles por WhatsApp, e o casal avalizava carinhosamente. “Eu queria a onda de eles gostarem”, revela o cantor, que trouxe cada música para seu idioma pop, descolando-as dos arranjos consagrados: Ovelha Negra foi para o reggae, Agora só falta você ganhou batida do funk carioca, Caso sério virou um “tambolero” (o tambor do funk com bolero).
O CD vai virar show no ano que vem. Já a autobiografia de Lulu ainda está sendo desenhada. Não terá revelações da vida particular, como a de Rita. “Serei eu e a música.”