Uma vez por mês, Maria João Pires pegava o trem em Munique para encontrar-se com o lendário pianista alemão Wilhelm Kempff. Ela se mudara de Portugal para a Alemanha para completar seus estudos. “Kempff não era meu professor, mas eu tocava para ele, eram momentos importantes, foram fundamentais em minha carreira.”
Se a conversa chegou a Kempff é porque começou um pouco antes em Beethoven. Maria João Pires é uma das maiores pianistas do mundo – e sua visão sobre a obra do compositor é um dos motivos para a fama atingida em 70 anos de carreira (se contarmos como marco inicial o primeiro recital público, dados aos 5 anos de idade).
“Beethoven ganhou a importância que teve em minha vida depois da mudança para a Alemanha. E a base do aprendizado foi o conhecimento profundo que Kempff tinha de sua obra. Naqueles encontros, eu comecei de fato a entender, respeitar, saber como decifrar uma partitura do compositor, a sua história”, ela explica.
Maria João Pires chegou nesta segunda, 7, ao Brasil, onde fará uma série de recitais. Nesta terça, dia 8, faz recital na Sala São Paulo em prol da reconstrução do Teatro Cultura Artística; no dia 9, toca na série da Dell’Arte no Theatro Municipal do Rio de Janeiro; segue, então, para o Instituto Baía dos Vermelhos, na Ilhabela, para uma semana de residência artística; e, no dia 26, toca no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Beethoven a acompanha durante a viagem. Dele, vai tocar as sonatas nº 8 e nº 13 – e o programa se completa com Chopin, de quem interpreta uma seleção de noturnos.
Assim como Beethoven, Chopin é um companheiro de longo tempo na carreira de Maria João Pires. Os dois têm importância indiscutível em sua discografia, em uma lista à qual se somam Mozart, Schumann e Schubert. Com os cinco, ela fez maravilhas.
Comentando sua leitura do Concerto nº 2 de Beethoven, um crítico do jornal The Guardian falou em uma maneira de tocar “intimista e repleta de nuances”. Intimismo é, de fato, uma palavra chave em suas leituras – seu CD com o violoncelista Antonio Meneses é um testemunho bem-acabado do que a música de câmara tem a oferecer.
Ao mesmo tempo, ela é sempre capaz de surpreender. No New York Times, o crítico Allan Kozinn conta ter ido ouvir um recital com noturnos de Chopin à espera justamente de delicadeza e ter saído do teatro espantado com as “tempestades” que saíam do piano, oferecendo uma leitura repleta de contrastes de obras célebres.
Há muitas críticas e adjetivos. Mas, nas últimas décadas, Maria João Pires cansou-se do palco. Ao longo da carreira, suas raras entrevistas falam do desconforto em estar no palco. E, mais recentemente, ela resolveu fazer algo a respeito. Toca, mas cada vez menos. E prefere se dedicar ao ensino – e a uma nova proposta de relação com a música.
De volta à Europa, focou sua trajetória no ensino, formando turmas das quais saem artistas notáveis, entre eles alguns brasileiros, como Sylvia Thereza e Leonardo Hilsdorf. E, nos últimos dois anos, reviveu o projeto do Centro de Música de Belgais, em Portugal, onde a convivência entre artistas e o campo é o ponto de partida para uma percepção diferente da arte e da música, compartilhada com o público.
É esse espírito que ela pretende reproduzir na Ilhabela, no complexo criado há cinco anos para apresentações e também para residências artísticas. E, se não gosta particularmente de dar entrevistas, sobre o contato com jovens ela não poupa palavras.
“Transmitir o conhecimento é o melhor que há na vida. Mas não se trata do professor que ensina o aluno. O que busco é abrir um espaço natural para que o diálogo aconteça. Todo mundo aprende. Não é uma aula, é um encontro, em que todos são livres.”
Para a pianista, o aluno muitas vezes é tomado por medos. Medo do piano, medo do estudo, medo da carreira, medo do futuro. “Com medo, no entanto, não há processo criativo. E, sem processo criativo, não há arte”, ela explica.
O objetivo, então, é criar um espaço no qual “não há pensamento feliz ou infeliz”, um espaço “vazio, que possa ser preenchido com nossa verdadeira criatividade, por meio da convivência e da aceitação e contato de cada um com sua própria capacidade”. “Não há hierarquias, não há ambição, há apenas a tentativa de entrar em contato com o aspecto misterioso da arte, de estabelecer um outro tipo de contato com o nosso universo.”
“Não foi de propósito, mas tocar a oitava e a última sonatas no recital mostra exatamente isso”, ela afirma. Em seguida, perguntada sobre o que a fascina no compositor, ela faz uma pausa. “É tão difícil colocar em palavras. Beethoven é quem liga a matéria ao espírito. É quem nos mostra que podemos viver uma vida material e, ao mesmo tempo, viver ideais muito fortes. Há nisso uma visão profunda do nosso universo, que não se explica. Mas se sente. É aí que entra o gênio.”