Mart’nália lança disco de pagode dos anos 90 e diz que gênero ‘era careta e fazia apartheid sexual’


Em ‘Pagode da Mart’nalia’, ela aproxima músicas como ‘Domingo’, ‘Essa tal Liberdade’ e ‘Cheias de Mania’ para o som que se faz em Vila Isabel, onde ela nasceu. Disco tem participações de Caetano Veloso, Martinho da Vila e Luísa Sonza; veja vídeo

Por Danilo Casaletti
Atualização:
Foto: Nil Caniné
Entrevista comMart'náliaCantora e compositora

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Cantora regravou clássicos como 'Essa Tal Liberdade' e 'Domingo' e convidou nomes como Caetano Veloso, Martinho da Vila e Luísa Sonza

“O que é que vou fazer com essa tal liberdade?”, diz a letra de um dos mais famosos pagodes dos anos 1990 - Essa tal Liberdade, de Chico Roque e Paulo Sérgio Valle, sucesso do grupo Só Pra Contrariar. No caso da cantora Mart’nália, a liberdade foi pegar 12 canções bastante representativas desse período e levar, como ela diz em entrevista ao Estadão, para “a Vila (Isabel)”.

Sim, o pagode produzido nos anos 1990, com seus versos exageradamente românticos, dancinhas coreografadas e teclado eletrônico, para se aproximar de uma linguagem mais pop, se afastou bastante do que Mart’nália e outros tantos sambistas entendem como pagode - uma reunião em torno de uma mesa que, uma década antes, serviu para popularizar compositores, abastecer intérpretes, renovar o gênero e inserir o samba de vez no mercado musical brasileiro.

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Mart’nália confessa que não ouvia o pagode 90 - e ainda não ouve. Tinha “grilos”. “Sempre achei careta”, diz, sem titubear. “Não curtia. Estava em outras”, segue. A cantora fala até em “apartheid sexual”, já que o cenário do gênero era dominado por homens.

Mas, então, por que gravar esse repertório? Tudo nasceu de um sonho. Não de Mart’nália. Márcia Alvarez, a Marcinha, sua longeva empresária, sonhou que sua assessorada cantava Recado à Minha Amada, aquela que diz “lua vai, iluminar os pensamentos dela...”, gravada pela grupo Katinguelê.

Mart’nália topou transformá-lo em realidade, desde que pudesse fazer tudo a seu jeito. Nasceu, então, Pagode da Mart’nália (Sony Music), com produção de Marcinha, Marcus Preto e do músico Luiz Otávio, que assina também a direção musical. Entre as canções escolhidas estão clássicos do gênero, como a que apareceu em sonho; Domingo, com participação de Caetano Veloso; O Teu Chamego, com adesão de Martinho da Vila; e Cheia de Manias, em dueto com Luísa Sonza, que virou uma espécie ijexá pop.

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A capa do álbum 'Pagode da Mart'nália' Foto: Sony Music

Bem diferente também está Essa tal Liberdade, em voz e piano. “Para fazer a mesma coisa, era melhor nem fazer’, diz a cantora, que se cercou de músicos que conhece e quem sabem muito bem o que ela quer. “São meus cotas”, diz.

Na entrevista ao Estadão, Mart’nália também falou sobre sexualidade. “Atualmente, os artistas têm que ter alguma coisa. É o artista preto, gay, não sei mais o que...Oi? Não sou fruto disso. E Ney Matogrosso e todo mundo? Alguém ficava perguntando para esses artistas maravilhosos, que são nossas referências, com quem eles dormiam?”.

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Há uma entrevista que ficou famosa em que Jô Soares pergunta ao Zeca Pagodinho qual a diferença entre o samba e o pagode. Zeca enrola e não responde, o que criou um momento hilário. Repito a pergunta a você e acrescento também o pagode 90 nessa...

Não faço ideia. Acho que na época (no caso do pagode 90) era a sonoridade mesmo. Foi uma forma de falar mais diretamente de amor, apesar de muito sofrimento para a época. Os caras não tinham nem idade para ter aquela dor toda. Era algo novo, mas careta. Assim, certinha. Eu não ouvia. E eles também não me ouviam. E está tudo certo (risos). Conhecia o Molejo e o Xande de Pilares. O grupo Revelação (do qual Xande fez parte) sempre ficou ali por Vila Isabel. Esse movimento também ficou mais por São Paulo e Minas Gerais.

Era mais pop também. Isso afastou os sambistas tradicionais dessa vertente? Estava muito longe da essência do samba?

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Era mais pop, sim. Muitos sintetizadores, muitos teclados, fazendo som de vocal, de sopros. Como música, achava um absurdo. Tirava, inclusive, o emprego de muita gente. Eu tinha preconceito também. Mas, na verdade, são braços do samba. Mas eles contribuíram para deixar o samba como algo mais normal. Os caras (pagodeiros) eram muito caretinhas e as famílias, então, deixavam as meninas frequentarem o samba. Saía um pouco daquele negócio de que sambista é bebum e não sei o quê... (risos).

Tem alguma verdade nisso, de que o samba não é ambiente para ‘moças de família’?

Nenhuma verdade (risos). Olha a Dona Ivone Lara, né?

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O pagode dos anos 1990 sofreu o mesmo preconceito que o samba joia, ou sambão, nos anos 1970?

Foi bem por aí (risos). Havia muitas divergências musicais no Brasil. Apesar do Brasil ter muitos gêneros musicais, parecia que cada um tinha que levantar e segurar uma bandeira. Era tudo meio brigado. Sambista não gostava de roqueiro, roqueiro não gostava de sambista. E os pagodeiros só cantavam músicas deles.

Para cantar, então, esse repertório, por qual caminho você foi?

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Fui pelo lado da mistura. O desafio de não ficar em lugar só. Pensei: como eu cantaria? Quis fazer algo diferente mesmo. A forma como conseguimos fazer os arranjos, conseguimos trazer para o meu som, para a minha Vila Isabel. Fiz algo que aprendi com o Djavan. Ele me disse para nunca pensar da mesma forma, para abrir caminhos. Foi uma descoberta. Uma forma de relaxar com essas músicas. Vamos cantar! Minha função sempre foi essa - divertir as pessoas. O que me dava grilo era a caretice desse repertório.

Fiz algo que aprendi com o Djavan. Ele me disse para nunca pensar da mesma forma, para abrir caminhos

Esse repertório vai levar um novo público para seus shows?

Não sei. Meu público é gente da antiga e crianças. Mas, pode trazer, sim. O fato de eu convidar a Luísa Sonza para o disco, por exemplo. Ela não era nem nascida na época (ela é de 1998). Mulher nem cantava pagode. Nem tinha grupo de pagode de meninas. Era quase um apartheid sexual (risos). Quis trazer essa voz dela, meio brega, forte. A Luísa não tem ranço, já que não era nascida. Queria linkar com uma sensualidade, algo mais moderno.

De fato, você mudou bastante os arranjos originais...

Para fazer a mesma coisa, era melhor nem fazer. O Luiz Otávio, a Marcinha e o Marcus Preto me mostraram uma lista de músicas e eu fui tirando várias delas, vendo o que ficava melhor para eu cantar. Não queria nada forçado. A mais difícil de eu aceitar foi Que Se Chama Amor. O Luiz Otávio me convenceu no piano. Quando ele me mostrou, eu disse: Vai por aí! Depois fui colocando a percussão, do meu jeito, com os caras (músicos) que são meus cotas. Eles também não transitam no pagode, mas sabem o que eu gosto. Se tinha alguma parte da letra que eu não gostava, eu tirava. Para que cantar o que não gosto?

Liberdade.

Sim. Arte é isso. E como dizia Ferreira (Gullar), a vida é pouca.

Preocupa-se como essas canções serão recebidas com essa nova roupagem?

Não. Porque eu não as ouvia - e não ouço. Não sabia os arranjos. Preferi a novidade, inclusive para mim. Sobre como dividir, como entrar em uma palavra que eu nunca falaria. Porque, como eu já disse, o pagode 90 tinha uma forma muito careta. Quando você não é fã de uma coisa, não tem propriedade sobre ela, você fica meio ali... Mas, eu gosto de me jogar. Foi um trabalho bem gostoso de fazer.

Você chamou alguém do pagode 90 para ouvir, trocar uma ideia?

Não. Nem os conheço. Acho legal não ter influência. Não costumo chamar ninguém para ouvir meus discos. Quem mandou deixar eu gravar? Liberou, agora vai ter que me aturar.

Há três canções do Só Pra Contrariar no disco? Coincidência?

Total. Fui ouvindo. Algumas eu lembrava a melodia, porque nas letras eu nunca me aprofundei. Mas também não quis ouvir muito os arranjos (originais) para não desistir. A partir da lista, ia perguntando em casa para os meus sobrinhos: Se a Tia T’nália cantasse um pagode, qual seria? Eles me indicaram algumas.

O pagode dos anos 1990 está novamente na moda. O pessoal dessa geração está fazendo muitos shows. Espera uma reciprocidade da parte deles?

Não espero nada. Não foi essa a intenção. Na verdade, sou desligada. Nem sabia que está todo mundo cantando um monte de pagode. Não ouço. Depois que fui ver. E quase desisti de fazer o disco. Se está todo mundo fazendo, por que eu vou fazer? Se chamar, tudo bem. Continuo do mesmo jeito. Eu estou pagodeira, não sou pagodeira! Não tenho nada a ver com isso. Nem a minha Vila. Não vou fazer música e nem andar de mão dada (com eles). Segue o baile.

Continuo do mesmo jeito. Eu estou pagodeira, não sou pagodeira!

E Caetano Veloso? Como você o convenceu a participar do disco?

Caetano não é convencido a nada. Ou ele aceita ou não aceita. Escolhemos a música (Domingo), fizemos o arranjo com cordas. Algo com que ele ficasse (à vontade), porque sei que não é a praia dele também. Ele não conhecia a música. Ficava ouvindo a versão antiga e não entendia nem por que eu o tinha chamado para cantá-la (risos). Dissemos: Calma, ouça aqui. Ter Caetano e meu pai foi como se eles abençoassem o projeto, me dessem o aval.

Mart'nália levou o pagode 90 para a Vila Isabel Foto: Nil Caniné

Martinho topou de imediato?

Claro, ele é meu fã. Ele também não conhecia a música (O Teu Chamego). O arranjo ficou como se fosse quase uma música dele. Aliás, até pensei em pegar uma música dele e trazer para o pagode, mas ele topou fazer essa. Em vez de uma música de amor de um casal, ficou de chamego entre pai e filha. Ficou bem gostosinho.

E essa ideia de transformar samba para o pagode (90). Pode virar um projeto futuro?

Não! Dá trabalho. Complicou, eu não quero mais. Doeu e complicou, não quero (risos).

Em ‘Eu e Ela’ você canta tranquilamente, como deve ser, ‘eu e minha namorada’.

Eu não mudo nada. Canto como foi feita. Tem gente que tem necessidade de mudar o masculino para o feminino. Já pensou trocar em uma música do Vinicius (Moraes)? ‘Se você quer ser meu namorado, ó que lindo namorado’ (cantarola Minha Namorada). Acaba com a poesia, não é? Capaz do Vinicius vir lá do céu te dar um tiro. Depois, até brinco.

No final, você faz um troca-troca, ‘ela e minha namorada, eu e o namorado dela’...

Sim, para ficar mais moderno. Essa música eu achava muito engraçada. E careta ao mesmo tempo.

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A cantora afirma que nunca se apresentou como uma mulher homossexual e que quer que prestem atenção em sua música

Partindo do princípio de que cada uma assume o que quer, mesmo porque há muito preconceito no Brasil, foi importante, para você, logo que surgiu, se colocar como uma mulher homossexual?

Nunca me coloquei em lugar nenhum. Nunca confessei, nunca conversei, nunca dei importância. Como o mundo está com essa necessidade, rolou esse lugar. Eu não apareci como isso. Na verdade, foi o que sobrou para eu cantar. E continuei como o meu jeito de ser. Desde pequena sou assim, e continuei sendo assim. Não tem nem como falar. Às vezes, me perguntam se eu não quero conversar, dar uma palestra. Cara, eu não sei falar disso. Eu não tive esses problemas, felizmente e infelizmente. Nasci assim. Todo mundo falava (da família): “Larga essa garota aí. Não quer botar camisa, não bota. Quer jogar bola, joga”. Fui criada livre. Hoje em dia, tem todo um lance de gay e de não sei o quê. Sempre quis que prestassem atenção no que estou cantando. Vem comigo na minha música. Atualmente, os artistas têm que ter alguma coisa. É o artista preto, gay, não sei mais o quê... Oi? Não sou fruto disso. E Ney Matogrosso, e todo mundo? Alguém ficava perguntando para esses artistas maravilhosos, que são nossas referências, com quem eles dormiam? Graças a Deus minha geração era mais livre. Mas, sei da necessidade. Teve um sofrimento, um preconceito horroroso. Com as mulheres também. Estão matando mulheres como nunca mataram antes. Parece que os homens não gostam de mulher mesmo, é isso?

Estão matando mulheres como nunca mataram anes. Parece que os homens não gostam de mulher mesmo, é isso?

Nesse sentido, o ambiente do samba sempre foi acolhedor?

Sempre. Uma escola de samba não tem separação. Se o cara era viado, era viado. Se a mina saía com mulher, saía com mulher. Se a mulher quisesse dar para 30, dava. Se o homem quisesse ter três mulheres, tinha. E todo mundo toca junto. Todo mundo brinca. Nunca teve banheiro separado. Ninguém se mete na vida dos outros dessa forma. Liberdade! Uma família. Aceitação de cada um. Tem passista homem, tem mulher. O cara que requebra, que dança mais afeminado. Entendeu? Vem para o samba!

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Cantora regravou clássicos como 'Essa Tal Liberdade' e 'Domingo' e convidou nomes como Caetano Veloso, Martinho da Vila e Luísa Sonza

“O que é que vou fazer com essa tal liberdade?”, diz a letra de um dos mais famosos pagodes dos anos 1990 - Essa tal Liberdade, de Chico Roque e Paulo Sérgio Valle, sucesso do grupo Só Pra Contrariar. No caso da cantora Mart’nália, a liberdade foi pegar 12 canções bastante representativas desse período e levar, como ela diz em entrevista ao Estadão, para “a Vila (Isabel)”.

Sim, o pagode produzido nos anos 1990, com seus versos exageradamente românticos, dancinhas coreografadas e teclado eletrônico, para se aproximar de uma linguagem mais pop, se afastou bastante do que Mart’nália e outros tantos sambistas entendem como pagode - uma reunião em torno de uma mesa que, uma década antes, serviu para popularizar compositores, abastecer intérpretes, renovar o gênero e inserir o samba de vez no mercado musical brasileiro.

Mart’nália confessa que não ouvia o pagode 90 - e ainda não ouve. Tinha “grilos”. “Sempre achei careta”, diz, sem titubear. “Não curtia. Estava em outras”, segue. A cantora fala até em “apartheid sexual”, já que o cenário do gênero era dominado por homens.

Mas, então, por que gravar esse repertório? Tudo nasceu de um sonho. Não de Mart’nália. Márcia Alvarez, a Marcinha, sua longeva empresária, sonhou que sua assessorada cantava Recado à Minha Amada, aquela que diz “lua vai, iluminar os pensamentos dela...”, gravada pela grupo Katinguelê.

Mart’nália topou transformá-lo em realidade, desde que pudesse fazer tudo a seu jeito. Nasceu, então, Pagode da Mart’nália (Sony Music), com produção de Marcinha, Marcus Preto e do músico Luiz Otávio, que assina também a direção musical. Entre as canções escolhidas estão clássicos do gênero, como a que apareceu em sonho; Domingo, com participação de Caetano Veloso; O Teu Chamego, com adesão de Martinho da Vila; e Cheia de Manias, em dueto com Luísa Sonza, que virou uma espécie ijexá pop.

A capa do álbum 'Pagode da Mart'nália' Foto: Sony Music

Bem diferente também está Essa tal Liberdade, em voz e piano. “Para fazer a mesma coisa, era melhor nem fazer’, diz a cantora, que se cercou de músicos que conhece e quem sabem muito bem o que ela quer. “São meus cotas”, diz.

Na entrevista ao Estadão, Mart’nália também falou sobre sexualidade. “Atualmente, os artistas têm que ter alguma coisa. É o artista preto, gay, não sei mais o que...Oi? Não sou fruto disso. E Ney Matogrosso e todo mundo? Alguém ficava perguntando para esses artistas maravilhosos, que são nossas referências, com quem eles dormiam?”.

Há uma entrevista que ficou famosa em que Jô Soares pergunta ao Zeca Pagodinho qual a diferença entre o samba e o pagode. Zeca enrola e não responde, o que criou um momento hilário. Repito a pergunta a você e acrescento também o pagode 90 nessa...

Não faço ideia. Acho que na época (no caso do pagode 90) era a sonoridade mesmo. Foi uma forma de falar mais diretamente de amor, apesar de muito sofrimento para a época. Os caras não tinham nem idade para ter aquela dor toda. Era algo novo, mas careta. Assim, certinha. Eu não ouvia. E eles também não me ouviam. E está tudo certo (risos). Conhecia o Molejo e o Xande de Pilares. O grupo Revelação (do qual Xande fez parte) sempre ficou ali por Vila Isabel. Esse movimento também ficou mais por São Paulo e Minas Gerais.

Era mais pop também. Isso afastou os sambistas tradicionais dessa vertente? Estava muito longe da essência do samba?

Era mais pop, sim. Muitos sintetizadores, muitos teclados, fazendo som de vocal, de sopros. Como música, achava um absurdo. Tirava, inclusive, o emprego de muita gente. Eu tinha preconceito também. Mas, na verdade, são braços do samba. Mas eles contribuíram para deixar o samba como algo mais normal. Os caras (pagodeiros) eram muito caretinhas e as famílias, então, deixavam as meninas frequentarem o samba. Saía um pouco daquele negócio de que sambista é bebum e não sei o quê... (risos).

Tem alguma verdade nisso, de que o samba não é ambiente para ‘moças de família’?

Nenhuma verdade (risos). Olha a Dona Ivone Lara, né?

O pagode dos anos 1990 sofreu o mesmo preconceito que o samba joia, ou sambão, nos anos 1970?

Foi bem por aí (risos). Havia muitas divergências musicais no Brasil. Apesar do Brasil ter muitos gêneros musicais, parecia que cada um tinha que levantar e segurar uma bandeira. Era tudo meio brigado. Sambista não gostava de roqueiro, roqueiro não gostava de sambista. E os pagodeiros só cantavam músicas deles.

Para cantar, então, esse repertório, por qual caminho você foi?

Fui pelo lado da mistura. O desafio de não ficar em lugar só. Pensei: como eu cantaria? Quis fazer algo diferente mesmo. A forma como conseguimos fazer os arranjos, conseguimos trazer para o meu som, para a minha Vila Isabel. Fiz algo que aprendi com o Djavan. Ele me disse para nunca pensar da mesma forma, para abrir caminhos. Foi uma descoberta. Uma forma de relaxar com essas músicas. Vamos cantar! Minha função sempre foi essa - divertir as pessoas. O que me dava grilo era a caretice desse repertório.

Fiz algo que aprendi com o Djavan. Ele me disse para nunca pensar da mesma forma, para abrir caminhos

Esse repertório vai levar um novo público para seus shows?

Não sei. Meu público é gente da antiga e crianças. Mas, pode trazer, sim. O fato de eu convidar a Luísa Sonza para o disco, por exemplo. Ela não era nem nascida na época (ela é de 1998). Mulher nem cantava pagode. Nem tinha grupo de pagode de meninas. Era quase um apartheid sexual (risos). Quis trazer essa voz dela, meio brega, forte. A Luísa não tem ranço, já que não era nascida. Queria linkar com uma sensualidade, algo mais moderno.

De fato, você mudou bastante os arranjos originais...

Para fazer a mesma coisa, era melhor nem fazer. O Luiz Otávio, a Marcinha e o Marcus Preto me mostraram uma lista de músicas e eu fui tirando várias delas, vendo o que ficava melhor para eu cantar. Não queria nada forçado. A mais difícil de eu aceitar foi Que Se Chama Amor. O Luiz Otávio me convenceu no piano. Quando ele me mostrou, eu disse: Vai por aí! Depois fui colocando a percussão, do meu jeito, com os caras (músicos) que são meus cotas. Eles também não transitam no pagode, mas sabem o que eu gosto. Se tinha alguma parte da letra que eu não gostava, eu tirava. Para que cantar o que não gosto?

Liberdade.

Sim. Arte é isso. E como dizia Ferreira (Gullar), a vida é pouca.

Preocupa-se como essas canções serão recebidas com essa nova roupagem?

Não. Porque eu não as ouvia - e não ouço. Não sabia os arranjos. Preferi a novidade, inclusive para mim. Sobre como dividir, como entrar em uma palavra que eu nunca falaria. Porque, como eu já disse, o pagode 90 tinha uma forma muito careta. Quando você não é fã de uma coisa, não tem propriedade sobre ela, você fica meio ali... Mas, eu gosto de me jogar. Foi um trabalho bem gostoso de fazer.

Você chamou alguém do pagode 90 para ouvir, trocar uma ideia?

Não. Nem os conheço. Acho legal não ter influência. Não costumo chamar ninguém para ouvir meus discos. Quem mandou deixar eu gravar? Liberou, agora vai ter que me aturar.

Há três canções do Só Pra Contrariar no disco? Coincidência?

Total. Fui ouvindo. Algumas eu lembrava a melodia, porque nas letras eu nunca me aprofundei. Mas também não quis ouvir muito os arranjos (originais) para não desistir. A partir da lista, ia perguntando em casa para os meus sobrinhos: Se a Tia T’nália cantasse um pagode, qual seria? Eles me indicaram algumas.

O pagode dos anos 1990 está novamente na moda. O pessoal dessa geração está fazendo muitos shows. Espera uma reciprocidade da parte deles?

Não espero nada. Não foi essa a intenção. Na verdade, sou desligada. Nem sabia que está todo mundo cantando um monte de pagode. Não ouço. Depois que fui ver. E quase desisti de fazer o disco. Se está todo mundo fazendo, por que eu vou fazer? Se chamar, tudo bem. Continuo do mesmo jeito. Eu estou pagodeira, não sou pagodeira! Não tenho nada a ver com isso. Nem a minha Vila. Não vou fazer música e nem andar de mão dada (com eles). Segue o baile.

Continuo do mesmo jeito. Eu estou pagodeira, não sou pagodeira!

E Caetano Veloso? Como você o convenceu a participar do disco?

Caetano não é convencido a nada. Ou ele aceita ou não aceita. Escolhemos a música (Domingo), fizemos o arranjo com cordas. Algo com que ele ficasse (à vontade), porque sei que não é a praia dele também. Ele não conhecia a música. Ficava ouvindo a versão antiga e não entendia nem por que eu o tinha chamado para cantá-la (risos). Dissemos: Calma, ouça aqui. Ter Caetano e meu pai foi como se eles abençoassem o projeto, me dessem o aval.

Mart'nália levou o pagode 90 para a Vila Isabel Foto: Nil Caniné

Martinho topou de imediato?

Claro, ele é meu fã. Ele também não conhecia a música (O Teu Chamego). O arranjo ficou como se fosse quase uma música dele. Aliás, até pensei em pegar uma música dele e trazer para o pagode, mas ele topou fazer essa. Em vez de uma música de amor de um casal, ficou de chamego entre pai e filha. Ficou bem gostosinho.

E essa ideia de transformar samba para o pagode (90). Pode virar um projeto futuro?

Não! Dá trabalho. Complicou, eu não quero mais. Doeu e complicou, não quero (risos).

Em ‘Eu e Ela’ você canta tranquilamente, como deve ser, ‘eu e minha namorada’.

Eu não mudo nada. Canto como foi feita. Tem gente que tem necessidade de mudar o masculino para o feminino. Já pensou trocar em uma música do Vinicius (Moraes)? ‘Se você quer ser meu namorado, ó que lindo namorado’ (cantarola Minha Namorada). Acaba com a poesia, não é? Capaz do Vinicius vir lá do céu te dar um tiro. Depois, até brinco.

No final, você faz um troca-troca, ‘ela e minha namorada, eu e o namorado dela’...

Sim, para ficar mais moderno. Essa música eu achava muito engraçada. E careta ao mesmo tempo.

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A cantora afirma que nunca se apresentou como uma mulher homossexual e que quer que prestem atenção em sua música

Partindo do princípio de que cada uma assume o que quer, mesmo porque há muito preconceito no Brasil, foi importante, para você, logo que surgiu, se colocar como uma mulher homossexual?

Nunca me coloquei em lugar nenhum. Nunca confessei, nunca conversei, nunca dei importância. Como o mundo está com essa necessidade, rolou esse lugar. Eu não apareci como isso. Na verdade, foi o que sobrou para eu cantar. E continuei como o meu jeito de ser. Desde pequena sou assim, e continuei sendo assim. Não tem nem como falar. Às vezes, me perguntam se eu não quero conversar, dar uma palestra. Cara, eu não sei falar disso. Eu não tive esses problemas, felizmente e infelizmente. Nasci assim. Todo mundo falava (da família): “Larga essa garota aí. Não quer botar camisa, não bota. Quer jogar bola, joga”. Fui criada livre. Hoje em dia, tem todo um lance de gay e de não sei o quê. Sempre quis que prestassem atenção no que estou cantando. Vem comigo na minha música. Atualmente, os artistas têm que ter alguma coisa. É o artista preto, gay, não sei mais o quê... Oi? Não sou fruto disso. E Ney Matogrosso, e todo mundo? Alguém ficava perguntando para esses artistas maravilhosos, que são nossas referências, com quem eles dormiam? Graças a Deus minha geração era mais livre. Mas, sei da necessidade. Teve um sofrimento, um preconceito horroroso. Com as mulheres também. Estão matando mulheres como nunca mataram antes. Parece que os homens não gostam de mulher mesmo, é isso?

Estão matando mulheres como nunca mataram anes. Parece que os homens não gostam de mulher mesmo, é isso?

Nesse sentido, o ambiente do samba sempre foi acolhedor?

Sempre. Uma escola de samba não tem separação. Se o cara era viado, era viado. Se a mina saía com mulher, saía com mulher. Se a mulher quisesse dar para 30, dava. Se o homem quisesse ter três mulheres, tinha. E todo mundo toca junto. Todo mundo brinca. Nunca teve banheiro separado. Ninguém se mete na vida dos outros dessa forma. Liberdade! Uma família. Aceitação de cada um. Tem passista homem, tem mulher. O cara que requebra, que dança mais afeminado. Entendeu? Vem para o samba!

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Cantora regravou clássicos como 'Essa Tal Liberdade' e 'Domingo' e convidou nomes como Caetano Veloso, Martinho da Vila e Luísa Sonza

“O que é que vou fazer com essa tal liberdade?”, diz a letra de um dos mais famosos pagodes dos anos 1990 - Essa tal Liberdade, de Chico Roque e Paulo Sérgio Valle, sucesso do grupo Só Pra Contrariar. No caso da cantora Mart’nália, a liberdade foi pegar 12 canções bastante representativas desse período e levar, como ela diz em entrevista ao Estadão, para “a Vila (Isabel)”.

Sim, o pagode produzido nos anos 1990, com seus versos exageradamente românticos, dancinhas coreografadas e teclado eletrônico, para se aproximar de uma linguagem mais pop, se afastou bastante do que Mart’nália e outros tantos sambistas entendem como pagode - uma reunião em torno de uma mesa que, uma década antes, serviu para popularizar compositores, abastecer intérpretes, renovar o gênero e inserir o samba de vez no mercado musical brasileiro.

Mart’nália confessa que não ouvia o pagode 90 - e ainda não ouve. Tinha “grilos”. “Sempre achei careta”, diz, sem titubear. “Não curtia. Estava em outras”, segue. A cantora fala até em “apartheid sexual”, já que o cenário do gênero era dominado por homens.

Mas, então, por que gravar esse repertório? Tudo nasceu de um sonho. Não de Mart’nália. Márcia Alvarez, a Marcinha, sua longeva empresária, sonhou que sua assessorada cantava Recado à Minha Amada, aquela que diz “lua vai, iluminar os pensamentos dela...”, gravada pela grupo Katinguelê.

Mart’nália topou transformá-lo em realidade, desde que pudesse fazer tudo a seu jeito. Nasceu, então, Pagode da Mart’nália (Sony Music), com produção de Marcinha, Marcus Preto e do músico Luiz Otávio, que assina também a direção musical. Entre as canções escolhidas estão clássicos do gênero, como a que apareceu em sonho; Domingo, com participação de Caetano Veloso; O Teu Chamego, com adesão de Martinho da Vila; e Cheia de Manias, em dueto com Luísa Sonza, que virou uma espécie ijexá pop.

A capa do álbum 'Pagode da Mart'nália' Foto: Sony Music

Bem diferente também está Essa tal Liberdade, em voz e piano. “Para fazer a mesma coisa, era melhor nem fazer’, diz a cantora, que se cercou de músicos que conhece e quem sabem muito bem o que ela quer. “São meus cotas”, diz.

Na entrevista ao Estadão, Mart’nália também falou sobre sexualidade. “Atualmente, os artistas têm que ter alguma coisa. É o artista preto, gay, não sei mais o que...Oi? Não sou fruto disso. E Ney Matogrosso e todo mundo? Alguém ficava perguntando para esses artistas maravilhosos, que são nossas referências, com quem eles dormiam?”.

Há uma entrevista que ficou famosa em que Jô Soares pergunta ao Zeca Pagodinho qual a diferença entre o samba e o pagode. Zeca enrola e não responde, o que criou um momento hilário. Repito a pergunta a você e acrescento também o pagode 90 nessa...

Não faço ideia. Acho que na época (no caso do pagode 90) era a sonoridade mesmo. Foi uma forma de falar mais diretamente de amor, apesar de muito sofrimento para a época. Os caras não tinham nem idade para ter aquela dor toda. Era algo novo, mas careta. Assim, certinha. Eu não ouvia. E eles também não me ouviam. E está tudo certo (risos). Conhecia o Molejo e o Xande de Pilares. O grupo Revelação (do qual Xande fez parte) sempre ficou ali por Vila Isabel. Esse movimento também ficou mais por São Paulo e Minas Gerais.

Era mais pop também. Isso afastou os sambistas tradicionais dessa vertente? Estava muito longe da essência do samba?

Era mais pop, sim. Muitos sintetizadores, muitos teclados, fazendo som de vocal, de sopros. Como música, achava um absurdo. Tirava, inclusive, o emprego de muita gente. Eu tinha preconceito também. Mas, na verdade, são braços do samba. Mas eles contribuíram para deixar o samba como algo mais normal. Os caras (pagodeiros) eram muito caretinhas e as famílias, então, deixavam as meninas frequentarem o samba. Saía um pouco daquele negócio de que sambista é bebum e não sei o quê... (risos).

Tem alguma verdade nisso, de que o samba não é ambiente para ‘moças de família’?

Nenhuma verdade (risos). Olha a Dona Ivone Lara, né?

O pagode dos anos 1990 sofreu o mesmo preconceito que o samba joia, ou sambão, nos anos 1970?

Foi bem por aí (risos). Havia muitas divergências musicais no Brasil. Apesar do Brasil ter muitos gêneros musicais, parecia que cada um tinha que levantar e segurar uma bandeira. Era tudo meio brigado. Sambista não gostava de roqueiro, roqueiro não gostava de sambista. E os pagodeiros só cantavam músicas deles.

Para cantar, então, esse repertório, por qual caminho você foi?

Fui pelo lado da mistura. O desafio de não ficar em lugar só. Pensei: como eu cantaria? Quis fazer algo diferente mesmo. A forma como conseguimos fazer os arranjos, conseguimos trazer para o meu som, para a minha Vila Isabel. Fiz algo que aprendi com o Djavan. Ele me disse para nunca pensar da mesma forma, para abrir caminhos. Foi uma descoberta. Uma forma de relaxar com essas músicas. Vamos cantar! Minha função sempre foi essa - divertir as pessoas. O que me dava grilo era a caretice desse repertório.

Fiz algo que aprendi com o Djavan. Ele me disse para nunca pensar da mesma forma, para abrir caminhos

Esse repertório vai levar um novo público para seus shows?

Não sei. Meu público é gente da antiga e crianças. Mas, pode trazer, sim. O fato de eu convidar a Luísa Sonza para o disco, por exemplo. Ela não era nem nascida na época (ela é de 1998). Mulher nem cantava pagode. Nem tinha grupo de pagode de meninas. Era quase um apartheid sexual (risos). Quis trazer essa voz dela, meio brega, forte. A Luísa não tem ranço, já que não era nascida. Queria linkar com uma sensualidade, algo mais moderno.

De fato, você mudou bastante os arranjos originais...

Para fazer a mesma coisa, era melhor nem fazer. O Luiz Otávio, a Marcinha e o Marcus Preto me mostraram uma lista de músicas e eu fui tirando várias delas, vendo o que ficava melhor para eu cantar. Não queria nada forçado. A mais difícil de eu aceitar foi Que Se Chama Amor. O Luiz Otávio me convenceu no piano. Quando ele me mostrou, eu disse: Vai por aí! Depois fui colocando a percussão, do meu jeito, com os caras (músicos) que são meus cotas. Eles também não transitam no pagode, mas sabem o que eu gosto. Se tinha alguma parte da letra que eu não gostava, eu tirava. Para que cantar o que não gosto?

Liberdade.

Sim. Arte é isso. E como dizia Ferreira (Gullar), a vida é pouca.

Preocupa-se como essas canções serão recebidas com essa nova roupagem?

Não. Porque eu não as ouvia - e não ouço. Não sabia os arranjos. Preferi a novidade, inclusive para mim. Sobre como dividir, como entrar em uma palavra que eu nunca falaria. Porque, como eu já disse, o pagode 90 tinha uma forma muito careta. Quando você não é fã de uma coisa, não tem propriedade sobre ela, você fica meio ali... Mas, eu gosto de me jogar. Foi um trabalho bem gostoso de fazer.

Você chamou alguém do pagode 90 para ouvir, trocar uma ideia?

Não. Nem os conheço. Acho legal não ter influência. Não costumo chamar ninguém para ouvir meus discos. Quem mandou deixar eu gravar? Liberou, agora vai ter que me aturar.

Há três canções do Só Pra Contrariar no disco? Coincidência?

Total. Fui ouvindo. Algumas eu lembrava a melodia, porque nas letras eu nunca me aprofundei. Mas também não quis ouvir muito os arranjos (originais) para não desistir. A partir da lista, ia perguntando em casa para os meus sobrinhos: Se a Tia T’nália cantasse um pagode, qual seria? Eles me indicaram algumas.

O pagode dos anos 1990 está novamente na moda. O pessoal dessa geração está fazendo muitos shows. Espera uma reciprocidade da parte deles?

Não espero nada. Não foi essa a intenção. Na verdade, sou desligada. Nem sabia que está todo mundo cantando um monte de pagode. Não ouço. Depois que fui ver. E quase desisti de fazer o disco. Se está todo mundo fazendo, por que eu vou fazer? Se chamar, tudo bem. Continuo do mesmo jeito. Eu estou pagodeira, não sou pagodeira! Não tenho nada a ver com isso. Nem a minha Vila. Não vou fazer música e nem andar de mão dada (com eles). Segue o baile.

Continuo do mesmo jeito. Eu estou pagodeira, não sou pagodeira!

E Caetano Veloso? Como você o convenceu a participar do disco?

Caetano não é convencido a nada. Ou ele aceita ou não aceita. Escolhemos a música (Domingo), fizemos o arranjo com cordas. Algo com que ele ficasse (à vontade), porque sei que não é a praia dele também. Ele não conhecia a música. Ficava ouvindo a versão antiga e não entendia nem por que eu o tinha chamado para cantá-la (risos). Dissemos: Calma, ouça aqui. Ter Caetano e meu pai foi como se eles abençoassem o projeto, me dessem o aval.

Mart'nália levou o pagode 90 para a Vila Isabel Foto: Nil Caniné

Martinho topou de imediato?

Claro, ele é meu fã. Ele também não conhecia a música (O Teu Chamego). O arranjo ficou como se fosse quase uma música dele. Aliás, até pensei em pegar uma música dele e trazer para o pagode, mas ele topou fazer essa. Em vez de uma música de amor de um casal, ficou de chamego entre pai e filha. Ficou bem gostosinho.

E essa ideia de transformar samba para o pagode (90). Pode virar um projeto futuro?

Não! Dá trabalho. Complicou, eu não quero mais. Doeu e complicou, não quero (risos).

Em ‘Eu e Ela’ você canta tranquilamente, como deve ser, ‘eu e minha namorada’.

Eu não mudo nada. Canto como foi feita. Tem gente que tem necessidade de mudar o masculino para o feminino. Já pensou trocar em uma música do Vinicius (Moraes)? ‘Se você quer ser meu namorado, ó que lindo namorado’ (cantarola Minha Namorada). Acaba com a poesia, não é? Capaz do Vinicius vir lá do céu te dar um tiro. Depois, até brinco.

No final, você faz um troca-troca, ‘ela e minha namorada, eu e o namorado dela’...

Sim, para ficar mais moderno. Essa música eu achava muito engraçada. E careta ao mesmo tempo.

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A cantora afirma que nunca se apresentou como uma mulher homossexual e que quer que prestem atenção em sua música

Partindo do princípio de que cada uma assume o que quer, mesmo porque há muito preconceito no Brasil, foi importante, para você, logo que surgiu, se colocar como uma mulher homossexual?

Nunca me coloquei em lugar nenhum. Nunca confessei, nunca conversei, nunca dei importância. Como o mundo está com essa necessidade, rolou esse lugar. Eu não apareci como isso. Na verdade, foi o que sobrou para eu cantar. E continuei como o meu jeito de ser. Desde pequena sou assim, e continuei sendo assim. Não tem nem como falar. Às vezes, me perguntam se eu não quero conversar, dar uma palestra. Cara, eu não sei falar disso. Eu não tive esses problemas, felizmente e infelizmente. Nasci assim. Todo mundo falava (da família): “Larga essa garota aí. Não quer botar camisa, não bota. Quer jogar bola, joga”. Fui criada livre. Hoje em dia, tem todo um lance de gay e de não sei o quê. Sempre quis que prestassem atenção no que estou cantando. Vem comigo na minha música. Atualmente, os artistas têm que ter alguma coisa. É o artista preto, gay, não sei mais o quê... Oi? Não sou fruto disso. E Ney Matogrosso, e todo mundo? Alguém ficava perguntando para esses artistas maravilhosos, que são nossas referências, com quem eles dormiam? Graças a Deus minha geração era mais livre. Mas, sei da necessidade. Teve um sofrimento, um preconceito horroroso. Com as mulheres também. Estão matando mulheres como nunca mataram antes. Parece que os homens não gostam de mulher mesmo, é isso?

Estão matando mulheres como nunca mataram anes. Parece que os homens não gostam de mulher mesmo, é isso?

Nesse sentido, o ambiente do samba sempre foi acolhedor?

Sempre. Uma escola de samba não tem separação. Se o cara era viado, era viado. Se a mina saía com mulher, saía com mulher. Se a mulher quisesse dar para 30, dava. Se o homem quisesse ter três mulheres, tinha. E todo mundo toca junto. Todo mundo brinca. Nunca teve banheiro separado. Ninguém se mete na vida dos outros dessa forma. Liberdade! Uma família. Aceitação de cada um. Tem passista homem, tem mulher. O cara que requebra, que dança mais afeminado. Entendeu? Vem para o samba!

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Cantora regravou clássicos como 'Essa Tal Liberdade' e 'Domingo' e convidou nomes como Caetano Veloso, Martinho da Vila e Luísa Sonza

“O que é que vou fazer com essa tal liberdade?”, diz a letra de um dos mais famosos pagodes dos anos 1990 - Essa tal Liberdade, de Chico Roque e Paulo Sérgio Valle, sucesso do grupo Só Pra Contrariar. No caso da cantora Mart’nália, a liberdade foi pegar 12 canções bastante representativas desse período e levar, como ela diz em entrevista ao Estadão, para “a Vila (Isabel)”.

Sim, o pagode produzido nos anos 1990, com seus versos exageradamente românticos, dancinhas coreografadas e teclado eletrônico, para se aproximar de uma linguagem mais pop, se afastou bastante do que Mart’nália e outros tantos sambistas entendem como pagode - uma reunião em torno de uma mesa que, uma década antes, serviu para popularizar compositores, abastecer intérpretes, renovar o gênero e inserir o samba de vez no mercado musical brasileiro.

Mart’nália confessa que não ouvia o pagode 90 - e ainda não ouve. Tinha “grilos”. “Sempre achei careta”, diz, sem titubear. “Não curtia. Estava em outras”, segue. A cantora fala até em “apartheid sexual”, já que o cenário do gênero era dominado por homens.

Mas, então, por que gravar esse repertório? Tudo nasceu de um sonho. Não de Mart’nália. Márcia Alvarez, a Marcinha, sua longeva empresária, sonhou que sua assessorada cantava Recado à Minha Amada, aquela que diz “lua vai, iluminar os pensamentos dela...”, gravada pela grupo Katinguelê.

Mart’nália topou transformá-lo em realidade, desde que pudesse fazer tudo a seu jeito. Nasceu, então, Pagode da Mart’nália (Sony Music), com produção de Marcinha, Marcus Preto e do músico Luiz Otávio, que assina também a direção musical. Entre as canções escolhidas estão clássicos do gênero, como a que apareceu em sonho; Domingo, com participação de Caetano Veloso; O Teu Chamego, com adesão de Martinho da Vila; e Cheia de Manias, em dueto com Luísa Sonza, que virou uma espécie ijexá pop.

A capa do álbum 'Pagode da Mart'nália' Foto: Sony Music

Bem diferente também está Essa tal Liberdade, em voz e piano. “Para fazer a mesma coisa, era melhor nem fazer’, diz a cantora, que se cercou de músicos que conhece e quem sabem muito bem o que ela quer. “São meus cotas”, diz.

Na entrevista ao Estadão, Mart’nália também falou sobre sexualidade. “Atualmente, os artistas têm que ter alguma coisa. É o artista preto, gay, não sei mais o que...Oi? Não sou fruto disso. E Ney Matogrosso e todo mundo? Alguém ficava perguntando para esses artistas maravilhosos, que são nossas referências, com quem eles dormiam?”.

Há uma entrevista que ficou famosa em que Jô Soares pergunta ao Zeca Pagodinho qual a diferença entre o samba e o pagode. Zeca enrola e não responde, o que criou um momento hilário. Repito a pergunta a você e acrescento também o pagode 90 nessa...

Não faço ideia. Acho que na época (no caso do pagode 90) era a sonoridade mesmo. Foi uma forma de falar mais diretamente de amor, apesar de muito sofrimento para a época. Os caras não tinham nem idade para ter aquela dor toda. Era algo novo, mas careta. Assim, certinha. Eu não ouvia. E eles também não me ouviam. E está tudo certo (risos). Conhecia o Molejo e o Xande de Pilares. O grupo Revelação (do qual Xande fez parte) sempre ficou ali por Vila Isabel. Esse movimento também ficou mais por São Paulo e Minas Gerais.

Era mais pop também. Isso afastou os sambistas tradicionais dessa vertente? Estava muito longe da essência do samba?

Era mais pop, sim. Muitos sintetizadores, muitos teclados, fazendo som de vocal, de sopros. Como música, achava um absurdo. Tirava, inclusive, o emprego de muita gente. Eu tinha preconceito também. Mas, na verdade, são braços do samba. Mas eles contribuíram para deixar o samba como algo mais normal. Os caras (pagodeiros) eram muito caretinhas e as famílias, então, deixavam as meninas frequentarem o samba. Saía um pouco daquele negócio de que sambista é bebum e não sei o quê... (risos).

Tem alguma verdade nisso, de que o samba não é ambiente para ‘moças de família’?

Nenhuma verdade (risos). Olha a Dona Ivone Lara, né?

O pagode dos anos 1990 sofreu o mesmo preconceito que o samba joia, ou sambão, nos anos 1970?

Foi bem por aí (risos). Havia muitas divergências musicais no Brasil. Apesar do Brasil ter muitos gêneros musicais, parecia que cada um tinha que levantar e segurar uma bandeira. Era tudo meio brigado. Sambista não gostava de roqueiro, roqueiro não gostava de sambista. E os pagodeiros só cantavam músicas deles.

Para cantar, então, esse repertório, por qual caminho você foi?

Fui pelo lado da mistura. O desafio de não ficar em lugar só. Pensei: como eu cantaria? Quis fazer algo diferente mesmo. A forma como conseguimos fazer os arranjos, conseguimos trazer para o meu som, para a minha Vila Isabel. Fiz algo que aprendi com o Djavan. Ele me disse para nunca pensar da mesma forma, para abrir caminhos. Foi uma descoberta. Uma forma de relaxar com essas músicas. Vamos cantar! Minha função sempre foi essa - divertir as pessoas. O que me dava grilo era a caretice desse repertório.

Fiz algo que aprendi com o Djavan. Ele me disse para nunca pensar da mesma forma, para abrir caminhos

Esse repertório vai levar um novo público para seus shows?

Não sei. Meu público é gente da antiga e crianças. Mas, pode trazer, sim. O fato de eu convidar a Luísa Sonza para o disco, por exemplo. Ela não era nem nascida na época (ela é de 1998). Mulher nem cantava pagode. Nem tinha grupo de pagode de meninas. Era quase um apartheid sexual (risos). Quis trazer essa voz dela, meio brega, forte. A Luísa não tem ranço, já que não era nascida. Queria linkar com uma sensualidade, algo mais moderno.

De fato, você mudou bastante os arranjos originais...

Para fazer a mesma coisa, era melhor nem fazer. O Luiz Otávio, a Marcinha e o Marcus Preto me mostraram uma lista de músicas e eu fui tirando várias delas, vendo o que ficava melhor para eu cantar. Não queria nada forçado. A mais difícil de eu aceitar foi Que Se Chama Amor. O Luiz Otávio me convenceu no piano. Quando ele me mostrou, eu disse: Vai por aí! Depois fui colocando a percussão, do meu jeito, com os caras (músicos) que são meus cotas. Eles também não transitam no pagode, mas sabem o que eu gosto. Se tinha alguma parte da letra que eu não gostava, eu tirava. Para que cantar o que não gosto?

Liberdade.

Sim. Arte é isso. E como dizia Ferreira (Gullar), a vida é pouca.

Preocupa-se como essas canções serão recebidas com essa nova roupagem?

Não. Porque eu não as ouvia - e não ouço. Não sabia os arranjos. Preferi a novidade, inclusive para mim. Sobre como dividir, como entrar em uma palavra que eu nunca falaria. Porque, como eu já disse, o pagode 90 tinha uma forma muito careta. Quando você não é fã de uma coisa, não tem propriedade sobre ela, você fica meio ali... Mas, eu gosto de me jogar. Foi um trabalho bem gostoso de fazer.

Você chamou alguém do pagode 90 para ouvir, trocar uma ideia?

Não. Nem os conheço. Acho legal não ter influência. Não costumo chamar ninguém para ouvir meus discos. Quem mandou deixar eu gravar? Liberou, agora vai ter que me aturar.

Há três canções do Só Pra Contrariar no disco? Coincidência?

Total. Fui ouvindo. Algumas eu lembrava a melodia, porque nas letras eu nunca me aprofundei. Mas também não quis ouvir muito os arranjos (originais) para não desistir. A partir da lista, ia perguntando em casa para os meus sobrinhos: Se a Tia T’nália cantasse um pagode, qual seria? Eles me indicaram algumas.

O pagode dos anos 1990 está novamente na moda. O pessoal dessa geração está fazendo muitos shows. Espera uma reciprocidade da parte deles?

Não espero nada. Não foi essa a intenção. Na verdade, sou desligada. Nem sabia que está todo mundo cantando um monte de pagode. Não ouço. Depois que fui ver. E quase desisti de fazer o disco. Se está todo mundo fazendo, por que eu vou fazer? Se chamar, tudo bem. Continuo do mesmo jeito. Eu estou pagodeira, não sou pagodeira! Não tenho nada a ver com isso. Nem a minha Vila. Não vou fazer música e nem andar de mão dada (com eles). Segue o baile.

Continuo do mesmo jeito. Eu estou pagodeira, não sou pagodeira!

E Caetano Veloso? Como você o convenceu a participar do disco?

Caetano não é convencido a nada. Ou ele aceita ou não aceita. Escolhemos a música (Domingo), fizemos o arranjo com cordas. Algo com que ele ficasse (à vontade), porque sei que não é a praia dele também. Ele não conhecia a música. Ficava ouvindo a versão antiga e não entendia nem por que eu o tinha chamado para cantá-la (risos). Dissemos: Calma, ouça aqui. Ter Caetano e meu pai foi como se eles abençoassem o projeto, me dessem o aval.

Mart'nália levou o pagode 90 para a Vila Isabel Foto: Nil Caniné

Martinho topou de imediato?

Claro, ele é meu fã. Ele também não conhecia a música (O Teu Chamego). O arranjo ficou como se fosse quase uma música dele. Aliás, até pensei em pegar uma música dele e trazer para o pagode, mas ele topou fazer essa. Em vez de uma música de amor de um casal, ficou de chamego entre pai e filha. Ficou bem gostosinho.

E essa ideia de transformar samba para o pagode (90). Pode virar um projeto futuro?

Não! Dá trabalho. Complicou, eu não quero mais. Doeu e complicou, não quero (risos).

Em ‘Eu e Ela’ você canta tranquilamente, como deve ser, ‘eu e minha namorada’.

Eu não mudo nada. Canto como foi feita. Tem gente que tem necessidade de mudar o masculino para o feminino. Já pensou trocar em uma música do Vinicius (Moraes)? ‘Se você quer ser meu namorado, ó que lindo namorado’ (cantarola Minha Namorada). Acaba com a poesia, não é? Capaz do Vinicius vir lá do céu te dar um tiro. Depois, até brinco.

No final, você faz um troca-troca, ‘ela e minha namorada, eu e o namorado dela’...

Sim, para ficar mais moderno. Essa música eu achava muito engraçada. E careta ao mesmo tempo.

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A cantora afirma que nunca se apresentou como uma mulher homossexual e que quer que prestem atenção em sua música

Partindo do princípio de que cada uma assume o que quer, mesmo porque há muito preconceito no Brasil, foi importante, para você, logo que surgiu, se colocar como uma mulher homossexual?

Nunca me coloquei em lugar nenhum. Nunca confessei, nunca conversei, nunca dei importância. Como o mundo está com essa necessidade, rolou esse lugar. Eu não apareci como isso. Na verdade, foi o que sobrou para eu cantar. E continuei como o meu jeito de ser. Desde pequena sou assim, e continuei sendo assim. Não tem nem como falar. Às vezes, me perguntam se eu não quero conversar, dar uma palestra. Cara, eu não sei falar disso. Eu não tive esses problemas, felizmente e infelizmente. Nasci assim. Todo mundo falava (da família): “Larga essa garota aí. Não quer botar camisa, não bota. Quer jogar bola, joga”. Fui criada livre. Hoje em dia, tem todo um lance de gay e de não sei o quê. Sempre quis que prestassem atenção no que estou cantando. Vem comigo na minha música. Atualmente, os artistas têm que ter alguma coisa. É o artista preto, gay, não sei mais o quê... Oi? Não sou fruto disso. E Ney Matogrosso, e todo mundo? Alguém ficava perguntando para esses artistas maravilhosos, que são nossas referências, com quem eles dormiam? Graças a Deus minha geração era mais livre. Mas, sei da necessidade. Teve um sofrimento, um preconceito horroroso. Com as mulheres também. Estão matando mulheres como nunca mataram antes. Parece que os homens não gostam de mulher mesmo, é isso?

Estão matando mulheres como nunca mataram anes. Parece que os homens não gostam de mulher mesmo, é isso?

Nesse sentido, o ambiente do samba sempre foi acolhedor?

Sempre. Uma escola de samba não tem separação. Se o cara era viado, era viado. Se a mina saía com mulher, saía com mulher. Se a mulher quisesse dar para 30, dava. Se o homem quisesse ter três mulheres, tinha. E todo mundo toca junto. Todo mundo brinca. Nunca teve banheiro separado. Ninguém se mete na vida dos outros dessa forma. Liberdade! Uma família. Aceitação de cada um. Tem passista homem, tem mulher. O cara que requebra, que dança mais afeminado. Entendeu? Vem para o samba!

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