Há uma espécie de penumbra de azar que parece perseguir Steven Patrick Morrissey nos últimos anos. Internações às pressas, tratamento contra um câncer, um disco de inéditas deixado de lado pela gravadora. Aos 56 anos, o ex-vocalista do Smiths luta para se manter na música, embora já não saiba mais por quanto tempo permanecerá nos palcos. A turnê que chegará ao Brasil a partir de 17 de novembro, e terá ainda mais três datas (outra em São Paulo, dia 21; no Rio de Janeiro, dia 25; e Brasília, dia 29), pode muito bem ser a última em um bom período de tempo. Em entrevista ao Estado, por e-mail (forma como ele há tempos costuma preferir se comunicar com jornalistas), Moz diz não ver razão para permanecer na estrada se não há novas músicas para apresentar.
World Peace Is None of Your Business, o mais recente disco de inéditas, lançado em julho de 2014, saiu após cinco anos desde Years of Refusal e uma briga intensa de Moz por um contrato com uma gravadora. Ele, ícone de qualquer adolescente que tenha tido o coração partido e encontrado alívio ao mergulhar nos versos dele com o Smiths durante os anos 1980, encontrou dificuldade em chegar a um contrato vantajoso – e se recusava a lançar o álbum de maneira independente.
Encontrou o que desejava com a Harvest, selo indie que integra a major Universal Music, mas a relação com a empresa foi conturbada. Morrissey reclamou que foi deixado de lado. “Abandonaram o álbum depois de uma semana de lançamento”, escreveu ele na entrevista. E foi direto em críticas ao presidente da companhia, Steve Barnett, do melhor jeito Morrissey de ser. “Espero que ele engasgue ao comer uma bisteca”, disse o vegetariano. “Sem novas músicas, não há mais sentido para turnês. Meus shows sempre foram um grande sucesso, mas os grandes selos somente estão interessados em vencedores de reality shows musicais e cantores que não desafiam ninguém.”
Nos últimos dois anos, Morrissey desmarcou outras apresentações por razões diversas. A última turnê pelo Brasil, marcada para 2013, foi cancelada por “motivos pessoais”. O inglês havia sido internado por intoxicação alimentar no Peru. Uma gripe obrigou-o a desistir de shows pela Europa em 2014 e, mais recentemente, ele revelou, em entrevista ao jornal espanhol El Mundo, que passou por várias intervenções cirúrgicas para retirada de tecidos cancerígenos. “Se eu morrer, morri”, brincou, na época.
Morrissey está ferido – e com a cabeleira rala, segundo ele revelou, por causa da medicação contra o câncer –, mas ainda é afiado como sempre: “(Me reunir ao Smiths para o Hall da Fama do Rock) é algo tão inimaginável quanto assumir que eu me juntaria ao Led Zeppelin”. O que, cá entre nós, é um alívio dos grandes.
Você passou por alguns problemas de saúde nos dois últimos anos, ocasionando alguns cancelamentos de turnê. Os fãs ficaram bastante preocupados. Como você está se sentindo agora?
Estou extremamente bem, mas sob o efeito de vários medicamentos. O que, obviamente, causa mais dano do que a própria doença! Mas não é algo que seja preocupante. Perdi muito cabelo por causa da medicação, mas o qual é o problema disso, certo?
Em sua apresentação mais recente antes dessa entrevista, em Cesena, na Itália, no dia 8 de outubro, você escolheu executar seis músicas do disco mais novo, do ano passado. Como essas músicas estão funcionando ao lado das clássicas?
As novas canções são mais populares do que as antigas. Nós tivemos garotos de 14, 15 e 16 anos na plateia. Eles estavam ali por causa de World Peace Is None Of Your Business. E isso é gratificante.
Há um ano, entrevistei Joe Perry, guitarrista do Aerosmith, e, no papo, ele questionava a importância de se lançar um novo disco, com novas canções, para um artista com tanto tempo na indústria e tantos hits, como ele e sua banda. Disse que os fãs só querem os clássicos. Isso foi algo que mantive na cabeça. Para um artista com tempo de estrada e músicas que são sucessos já garantidos, qual é a importância real ainda de compor canções e mostrá-las ao vivo?
Acho que é importante pelo senso de progresso, entende? Porque, de outra forma, se você permanecer com o mesmo material, pode parecer que sua fonte secou. Você vai parecer um esqueleto em uma cadeira de balanço.
Então, para você, até que ponto um artista deve seguir o desejo dos fãs pelas músicas mais clássicas, ou antigas? Há um limite?
Sim, existe um limite! Se você se deixar ser levado pelo público, você não passa de um fantoche de pano. Existe um equilíbrio muito sensível aí.
Vamos falar sobre o processo criativo de World Peace Is None of Your Business? Cinco anos depois de Years of Refusal, qual foi o ponto de partida, o primeiro conceito para esse disco?
Acredito ter sido o que se tornou conhecido como a Primavera Árabe. A palavra ‘primavera’ foi usada para determinar um novo começo, e a revolta do povo egípcio deu início a uma fascinante ebulição de eventos muito positivos ao redor do globo. As pessoas não precisam mais de um governo hostil para falar por elas. Continua ocorrendo na Síria, onde as pessoas buscam ver além do governo corrupto. A maior parte das coisas que sentimos não se reflete nos governantes que, supostamente, deveriam representar nossas vontades. Eles foram eleitos com a promessa de nos ajudar.
Pelo o que eu me lembro, você não ficou satisfeito com a forma que a gravadora Harvest trabalhou no seu disco. Li que você estava desapontado com a maneira como eles promoveram o álbum inédito. Como o marketing na indústria fonográfica mudou com o passar desses anos? Acha que cantores pop atuais seriam capazes de atingirem o mesmo sucesso nos anos 1980?
A gravadora simplesmente abandonou o disco depois da primeira semana de vendas! Eles não o promoveram e, mesmo assim, o álbum chegou ao segundo lugar das paradas no Reino Unido e no 14.º nos Estados Unidos. Ainda assim, eles não ajudaram. O selo tinha medo porque o disco era muito forte, muito combativo. E é uma grande tragédia, porque o álbum é muito poderoso. Mesmo que o chefe do selo, Seve Barnett, tenha dito que o disco era uma obra-prima, foi evidente que ele não sabia o que fazer com ele. O selo só sabe lidar e trabalhar com músicas que são sem graça. Hoje, o marketing é que dita as regras na música. Sucesso é comprado e, consequentemente, a música mundial está nesse estado moribundo graças a pessoas como Steve Barnett.
World Peace Is None of Your Business é um álbum poderoso nesse caráter combativo. Acredita que ele conseguiria ir mais longe se a gravadora tivesse trabalhado nele? O quão longe estamos falando?
Acho que não há dúvidas de que o disco explodiria em todas as partes do mundo, porque ele dialoga com absolutamente tudo o que ocorreu entre 2014 e 2015. E o faz de uma forma que ninguém mais fez. Estou surpreso pelo fato de Steve Barnett não ter sido demitido. Ele sempre será lembrado por ter enterrado World Peace is None of Your Business. E espero que ele engasgue ao comer uma bisteca.
Li no site True To You, que é uma espécie de site oficial seu, que não haverá mais shows no Reino Unido, já que não há planos para novos lançamentos musicais. Essa ideia ainda está de pé? E ela se estende para o resto do mundo? Seria essa a última turnê até o próximo acordo com uma gravadora e o lançamento de um novo disco?
Nós já fizemos muitos shows, especialmente no Reino Unido, mas sem novas músicas, não há mais sentido para isso. As turnês sempre foram um grande sucesso, mas os grandes selos somente estão interessados em vencedores de reality shows musicais e cantores que não desafiam a mente de ninguém. A maior evidência disso é a parada musical desta semana (até quinta-feira, 22, a parada era liderada por ‘What Do You Mean’, do astro teen Justin Bieber).
Seus dois livros, uma autobiografia e o recente List of the Lost, tiveram bons números de venda. Você se considera um escritor?
Eu sou quem eu sou por causa da música. E isso se mantém dessa maneira mesmo que eu apenas cante no banho, e não mais para milhares de pessoas. Cantar é a realização mais pessoal que já experimentei.
No começo deste mês, o Smiths foi novamente indicado como um dos nomes possíveis para entrar no Hall da Fama do Rock and Roll. Você já pensou sobre o que vai acontecer se a banda foi indicada? Quero dizer, você se incomodaria em subir ao palco com o restante dos integrantes da banda para um discurso de agradecimento ou mesmo uma histórica apresentação ao vivo?
Eu enfim tenho uma boa vida. Digo, hoje eu tenho uma vida melhor e mais bem-sucedida do que dos tempos que estive com o Smiths. Então, eu não entendo porque poderia haver alguma razão para eu ser sugado de volta para aquilo. É algo tão inimaginável quanto assumir que eu me juntaria ao Led Zeppelin.