Quem procurar por ‘Ney Matogrosso no Rock In Rio’ no Youtube vai, de certo, cair em um vídeo em que o cantor, de tanga e uma pena de gavião-real na cabeça, olha fixamente para uma plateia de mais de 100 mil pessoas - formada em sua maioria por metaleiros que esperavam pelo show da banda inglesa Iron Maiden - enquanto canta América do Sul, de Paulo Machado.
Tudo era novo naquele ano de 1985. O País assistia aos últimos dias da ditadura militar. O Rock in Rio, criação do empresário Roberto Medina, tirava do concreto frio e incômodo dos estádios de futebol os parcos festivais que existiam no Brasil - eles eram, essencialmente, de MPB - e colocava em uma tal de Cidade do Rock, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Todo mundo junto na plateia, na grama - ou na lama. Os grandes astros internacionais, enfim, colocavam o Brasil em seus roteiros.
Coube a Ney, então, dar as boas vindas a tudo isso. Fazer o chamado ‘show de abertura’. “Deus salve a América do Sul/ Desperta, ó claro e amado sol”, cantou Ney ainda com o dia claro. O cantor, à época com 43 anos, já tinha ligação com o rock desde os tempos do Secos & Molhados. Dois anos antes do Rock in Rio, gravou Pro Dia Nascer Feliz, de Cazuza e Frejat, antecipando a explosão do BRock, ou do pop rock brasileiro. Não fez feio. Entrou para a história.
Para o jornalista e pesquisador musical Luiz Felipe Carneiro, autor do livro Rock in Rio - A história do maior festival de música do mundo (Ed. Globo), Ney foi uma escolha confortável para Medina naquele momento. Mais velho e experiente do que as recém-formadas bandas brasileiras Kid Abelha ou Barão Vermelho, por exemplo, saberia o que fazer caso algo de anormal ocorresse no palco.
“Muita gente tentou surfar na onda onda do momento, com Caetano Veloso e o Gilberto Gil. Mas o Ney sempre foi pop, rock’n’roll. Gravava Rita Lee, por exemplo. O Ney mereceu muito ter feito essa abertura”, diz.
Neste ano de 2023, a primeira edição do The Town, festival criado também por Medina, que começa neste sábado, 2, em São Paulo, terá como show de abertura a jovem dupla de rappers Tasha & Tracie. Como convidada das duas, a também rapper Karol Conká. Todas mulheres e negras. O rap/hip hop, juntamente com o trap, é o som urbano do momento. Não há censura institucional, mas ainda há a moral ou a do mainstream.
“O mundo do rap e do trap ainda é muito dominado por homens. Empoderar e trazer mulheres como Tasha & Tracie é quase uma obrigação”, diz Zé Ricardo, vice-presidente artístico do The Town. Para ele, Karol é a grande representante do gênero. “Ela tem uma importância muito grande na linguagem feminina no rap. Essa junção é simbólica, em um dia dedicado à música urbana. Elas precisam estar cada vez mais nos festivais e nos palcos brasileiros’, diz.
Para Carneiro, Medina é um cara do marketing. Se em 1985 ele pode experimentado ao chamar Ney, agora, ele sabe muito bem como criar seu line-up com base em pesquisas de mercado. “Nada é à toa, nem no Rock in Rio e nem no The Town. O rap e o trap é o gênero musical que atrai a garotada, muito mais do que uma banda de rock que está surgindo agora. E São Paulo tem uma ligação mais forte com o hip hop”, analisa.
Ney Matogrosso e Karol Conká: muito em comum
A convite da reportagem do Estadão, Ney, 82 anos, e Karol Conká, 37, se reuniram em uma chamada de vídeo para trocar, sob o ponto de vista de diferentes gerações, experiências a respeito da responsabilidade do ‘show de abertura’. Ney falou sobre suas memórias sem pudor. Karol, mais na defensiva, revelou suas expectativas.
“Sou filha de festivais. Estar com Tasha & Tracie vai ser um grande momento para o rap nacional. São duas potências de nomes femininos. Sou grata por ser lembrada como uma pessoa que contribui para a cultura brasileira”, diz Karol.
A cantora avisa: além de celebração e das batidas graves do rap/trap, haverá conscientização por meio da música. “Por meio das letras, a gente protesta sobre vários assuntos. Queremos que o público vibre bastante, faça muitos stories, compartilhe nas redes sociais”, pede Karol.
Quando Ney abriu o Rock in Rio, em 1985, não havia celular. Tampouco redes sociais. Talvez, por isso, alguns poucos fãs de metal, com as mãos livres, se ocuparam em atirar ovos cozidos na direção do cantor.
Ney Matogrosso
“Me identifico com o Ney quando ele diz ser assim, destemido. Isso educa o público a respeitar o artista que está no palco, mesmo que ele apresenta um gênero diferente do que aquele público esteja acostumado a ouvir”, diz Karol, que não deve enfrentar qualquer hostilidade - os tempos são outros.
“Essa plateia dos festivais atuais é mais aberta. É um festejo mesmo”, opina Ney.
Em comum, Ney e Karol, assim como Tasha & Tracie têm o cuidado de sempre oferecer ao público algo além da música. Isso passa, essencialmente, pelo figurino. “A vestimenta faz parte do espetáculo. Embora trabalhamos com música, algo que se ouve, o figurino serve como um rótulo do produto que a gente cria”, diz Karol. Ela adianta que a roupa que usará no The Town fará referência a um dos memes com os quais ela é associada.
Liberdade para os artistas
Ney, ao sair do palco do Rock in Rio naquele ano de 1985, declarou em uma entrevista à TV Globo que não achava que aquele era seu auge. “Quero fazer muita coisa ainda”, disse à época. “E fiz!”, afirma o cantor, agora, ao Estadão. “E vou continuar a fazer, enquanto puder. O tempo é implacável. Mas ele, até o momento, está deixando correr frouxo para mim”.
Foi esse próprio tempo que transformou a performance de Ney em histórica. “Olhando, sob o benefício da retrospectiva, sem dúvida, se torna um show muito importante”, diz Luiz Felipe Carneiro.
Ney diz que, naquela época, Roberto Medina não lhe pediu nada de especial. Ele apresentou o mesmo show com o qual estava em cartaz, Destino de Aventureiro. Será assim também quando se apresentar no The Town, no dia 3, no palco The One - espaço que não é o principal. Levará a turnê Bloco Na Rua, que roda o país desde 2019. Vai também, um dia antes, fazer uma abertura festiva cantando América do Sul.
O The Town, segundo seus organizadores, preza pela liberdade de seus convidados. “Em geral, eles sabem da responsabilidade de inaugurar um palco emblemático. Sempre os deixamos super à vontade para montarem um setlist da forma que achem que mais vai impactar o público”, diz Luis Justo, CEO da Rock World, empresa que criou e organiza o Rock in Rio e o The Town.
Roberto Medina diz que o fundamental é gerar memória para o público, assim como ocorreu com Ney no Rock in Rio de 1985. “A cada edição busco trazer um conteúdo que seja emblemático e que também seja um momento de história. No caso de São Paulo, não foi difícil”, diz.