No tabuleiro de Bethânia, Clarice e blues se misturam


Em uma série de seis programas temáticos na Rádio Batuta, a cantora oferece música e literatura aos ouvintes

Por Danilo Casaletti

No primeiro episódio Tabuleiro, programa que Maria Bethânia estreia nesta quinta-feira, dia 4, na Rádio Batuta, pertencente ao Instituto Moreira Salles (IMS), textos de Clarice Lispector se conectam com a música negra americana, sobretudo o blues e o jazz. Trechos de A Hora da Estrela, Água Viva e A Paixão Segundo G.H. encontram relações, por exemplo, com Nina Simone cantando Pirate Jenny. Ou, com o clássico Summertime na voz de Mahalia Jackson.

A cantora Maria Bethânia em uma imagem da divulgação de seu disco 'Noturno'. Foto: Jorge Bispo

A ideia dessa “mistura”, como diz Bethânia ao Estadão, em entrevista por telefone, surgiu depois que o escritor e professor Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do IMS e responsável pela seleção de textos para o projeto, lhe enviou sugestões sobre o que ler de Clarice, embora a cantora, apaixonada pela escritora, já tivesse lido tudo dela.

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Essa relação pensada por Bethânia e alinhavada por Ferraz se dá de forma natural. Em Tabuleiro, a cantora apenas lê os textos. Não há qualquer introdução, explicação ou referência. E eles são intercalados pelas canções, que também recebem o mesmo tratamento. Assim quis Bethânia. Como em seus shows, Bethânia joga sua rede de sentimentos. Cabe ao público, em seguida, recolhê-la. 

Ao todo, serão 6 episódios, cada um com um tema diferente, disponibilizados semanalmente, até 9 de dezembro. Além de Clarice, os demais temas passam pelo Brasil dos modernistas, Caetano Veloso e as traduções de Augusto de Campos, os poemas e a canções de Vinicius de Moraes, Chico Buarque e a poesia de Carlos Drummond de Andrade, e, por fim, a poesia portuguesa, com a qual Bethânia ilustrou com fado, ópera e Dalva de Oliveira – outra três de suas paixões.

No papo descontraído com o Estadão, Bethânia falou sobre o programa, Clarice, Nina, Caetano e seu costume de escrever e depois queimar tudo o que redigiu.

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Você dedica o primeiro episódio ao Caetano, que te mostrou Clarice e o blues. Que impacto isso teve na sua vida?

Lembro quando Caetano e João Augusto, diretor da Escola de Teatro da Bahia, me mostraram Summertime, com Mahalia Jackson, em um compacto simples. Um mundo novo se abriu. Para mim, essa é a música mais bonita que existe. De uma classe, uma nobreza. Inclusive, as versões (das canções) que escolhi são todas ligadas à minha memória mais bonita de princípio de juventude. Fiquei louca atrás para consegui-las. O mesmo encantamento aconteceu quando li pela primeira vez um conto de Clarice. A verdade dela, a necessidade de existir por meio de sua expressão... Fiquei maluca! Clarice e o blues têm tudo a ver.

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O Eucanaã (Ferraz) disse que a ideia de juntar Clarice e blues foi sua e que ele, a princípio, não enxergou essa relação. Entretanto, depois, viu que há de fato uma relação.

Eucanaã levou alguns sustos (risos). Eu queria Clarice no primeiro programa. Só não sabia como iria mexer com as músicas. Quando chegaram os textos, muitos, um dos primeiros que li foi justamente o que eu abro o programa. Eu senti que nele Clarice falava da dor dos pretos e sobre o óleo dos cisnes-negros que impermeabiliza a pele (ela se refere a um trecho do livro Água Viva). Entendi que a literatura dela e o blues ficaram do mesmo tamanho, com a mesma verdade, mesma força. Disse: é isso! Misturar Clarice, que eu adoro, com o blues que tenho ouvido muito. 

A Clarice e o blues trazem, segundo o Eucanaã, ao mesmo tempo, a dor e a superação desse sofrimento.

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Sim. Eles não morrem. Fazem blues para sobreviver. Clarice escreve para sobreviver. É imperativo. Não tem uma escolha.

Seu cantar também é assim?

É. Eu tenho que cantar.

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Você conheceu Clarice?

Sim. Não tive grande aproximação. Ela era muito amiga do Fauzi Arap (diretor de teatro). Quando fizemos o show Rosa dos Ventos (1971) ela foi a dois ensaios. E, no dia da estreia, era a primeira pessoa ali, na fileira. Eu sentadinha no palco, dizendo o Poema do Menino Jesus (de Fernando Pessoa), quando abri os olhos, vi Clarice, em close. Quase morri. Ela gostou muito do espetáculo, disse coisas muito fortes.

Ainda sobre o primeiro episódio, na parte musical, há Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Janis Joplin, mas quem abre é Nina Simone, com a canção Pirate Jenny.

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Por conta da dramaticidade. A Ópera dos Três Tostões (de Bertolt Brecht, da qual a canção faz parte) foi o primeiro espetáculo musical que Caetano me levou para ver em Salvador. Me apaixonei pelo teatro. Minha vida mudou. Fiquei enlouquecida com as personagens. Imagina, esse espetáculo foi montado nas ruínas do Teatro Castro Alves, que tinha acabado de incendiar. A Lina Bo Bardi fez a cenografia. Era uma coisa inacreditável! Mandei para o Caetano ouvir esse primeiro programa. Ele me escreveu dizendo: fiquei muito feliz em a primeira canção ser da Ópera dos Três Tostões. Foi o primeiro espetáculo que eu te levei para que você entendesse a cidade.

Você tem uma história com a Nina. Gravaram juntas uma canção, Pronta pra Cantar, de Caetano, no seu disco de 1990. Como isso se deu?

Um empresário dela ficou encantado com o meu trabalho quando me viu em turnê pela Europa. Ele achava que tinha uma relação com a Nina. Ele insistiu para fazermos algo juntas. Eu disse que, para que eu conseguisse fazer, teria que ser algo mais para meu lado. Eu não falo e nem canto inglês. E cantar com Nina era difícil. Uma musicista extraordinária e uma cantora com estudo e preparações líricas, além de ser negra e cantar blues daquela maneira. Pedi a Caetano para fazer a canção. Nina aceitou. Brava que só ela, mas quis fazer. Ela gravou em Londres e eu aqui no Rio de Janeiro. Tinha medo dela! Já pensou encontrar com aquela figura? Era zangada. Depois, ela escreveu perguntando se podia gravar uma versão toda em inglês para o disco dela, o que não ocorreu porque ela logo deu uma parada na carreira.

No segundo episódio, o tema é o Brasil, os sons, sensações. Que país você irá mostrar?

Tem relação com a Semana de Arte Moderna (1922), com textos de Mário e Oswald de Andrade. É o programa mais curto, concentrado. Abro com Gal Costa naquela genial versão de Aquarela do Brasil. Gal é a voz, um retrato do país que se mantém há tanto tempo. Depois, entro nos textos dos negreiros, dos cabralinos. Tem Caetano com Vamo Comer

Eucanaã disse que você é mais Mário e Caetano mais Oswald...

Eu sou Mario mesmo. Adoro! É calmo, relaxado, para aproveitar. Oswald é mais preciso, seco. É mais a cara de Caetano que é cabeção (inteligente).

Há episódios sobre Vinicius, Caetano, Chico. Três de suas grandes paixões na música, não? Em todos eles há o cruzamento da literatura com a canção popular.

Eu sou cantora popular. É isso que sei e o que gosto de fazer. E gosto de ler, falar, completar o pensamento com textos (no palco) que levem o pensamento e o sentimento mais adiante. É meu jeito de trabalhar, o que aprendi com o Fauzi. Gostei muito de fazer esses programas. Foi divertido. Tem poesia, reflexão, esculhambação.

Por falar em Fauzi, foi com ele, no show Comigo Me Desavim, de 1967, que você começou a dizer textos e poesias no palco, não?

Foi. No show Opinião (1965) havia textos mais coloquiais, conversados. Em Comigo Me Desavim eu lia, por exemplo, O Mineirinho, (conto) de Clarice, inteiro.

Você tem um modo muito próprio de dizer os textos. As pausas, os alongamentos de sílabas. Há até o filme que você fez com a professora Cleonice Berardinelli (O Vento Lá Fora, de 2014) no qual ela dirige sua leitura, com momentos curiosos. De onde veio isso?

É muito natural. É o meu jeito de entender e de sentir. Com a professora Cleonice é outra praia. Ela é linda. Tem que ler direitinho (risos).

Você pode falar sobre o último episódio, dedicado à poesia portuguesa, pela qual você tem muito apreço?

Oh “paisinho” para ter bons poetas! No programa Fernando (Pessoa), mas nem tanto. Eu queria mostrar a poesia portuguesa não só com o fado. Porém, com a música brasileira, era preciso que tivesse um pouquinho de humor. Então, por exemplo, coloquei Dalva de Oliveira cantando “joguei meu cigarro no chão e pisei” (Bethânia cantarola o samba Pela Décima Vez, de Noel Rosa). Isso com a poesia portuguesa é meio maluco, inesperado. Essa é a grande graça. A mistura. Tem Amália (Rodrigues) arrebentando, claro. E tem ópera. Escolhi Maria Callas, que é minha paixão, com uma ária de Bizet, e o Pavarotti, que é voz masculina de ópera mais bonita, com Una Furtiva Lacrima, que tem tudo a ver com um poema extraordinário de Eugênio de Andrade.

Nos dias de hoje, neste ano, sobretudo no Brasil, qual a importância da poesia, da literatura – e mais, a relevância de você e Caetano lançarem discos profundos e que estimulem a reflexão?

Resistência. Um chamado para resistir. Esse é o nosso trabalho como artista.

Recentemente, você foi eleita imortal na Academia de Letras da Bahia, para a cadeira de número 18. Foi chamada pelos agora colegas como “defensora das letras”. Como recebeu isso?

Fiquei emocionada. Receber essa honraria da Academia de Letras da minha terra me deixou tocada. Estou preocupadíssima com o meu discurso. Mas tivemos essa perda muito grande do maestro (o Estadão conversou com Bethânia um dia após a morte do músico Letieres Leite, que trabalhou com ela em seu mais recente disco, Noturno). Então as coisas estão paradinhas. Deixa o tempo passar.

Você escreveu algumas letras de músicas, textos. Você escreve sempre? Tem guardados?Não guardo nada. Escrevo, sim, muito. O que vou sentindo. Escrever me liberta. É igual cantar. Depois, queimo, rasgo, jogo fora. O Waly (Salomão, poeta) brincava comigo dizendo que ia me dar um baú pra eu jogar tudo dentro em vez de queimar (risos).

“Maria Bethânia é uma criação do Brasil”

Eucanaã Ferraz. Segundo poeta, programa propõe cruzamentos de música popular com alta literatura

O poeta Eucanaã Ferraz trabalhou com Bethânia no projeto. Foto: Daniela Ramiro/Estadão

Com temas tão distintos, cada episódio teve um método próprio de construção – embora a seleção de textos sempre coubesse a Eucanaã Ferraz e a escolha das canções à Maria Bethânia. Ora Ferraz apresentou primeiro o material escrito selecionado, como no caso de Clarice Lispector. Ora foi Bethânia que veio com as canções, como no episódio que aborda a obra de Caetano. E, desse modo, os programas tomaram forma.

“Esses programas têm algo de muito lindo que é a Bethânia ouvinte de música. Quais são as canções que ela ouve em casa, mas não canta? Quais cantoras ela gosta de ouvir? Tudo veio da memória afetiva dela. Ela não colocou Janis Joplin à toa no primeiro episódio. Ela ama Janis”, diz Ferraz.

O Brasil, claro, passa pelo Tabuleiro. A obra de Chico Buarque foi abordada pelo viés carioca e associada à poesia de Carlos Drummond de Andrade também por essa ótica. No episódio dedicado aos autores portugueses, tem Beth Carvalho cantando As Rosas não Falam, de Cartola, e Elizeth Cardoso, Serenata do Adeus, de Vinicius de Moraes. Anitta está presente no programa oferecido à obra do Poetinha, com a citação de Garota de Ipanema que ela fez em Gril From Rio, cujo videoclipe oficial no YouTube já passa de 35 milhões de visualizações.

“Bethânia é, simultaneamente, um intérprete do Brasil e uma criação do Brasil. O país produziu Maria Bethânia. Quando ela fez o disco e show Brasileirinho (2003/2004) ela se consagrou como uma cantora-pesquisadora. Esse show é um ensaio sobre o Brasil. Tem um gosto de Mário de Andrade”, analisa Ferraz.

Sobre os cruzamentos que o programa propõe, de música popular e alta literatura, Ferraz afirma que a canção no Brasil é forte, importante e excelente demais para não merecer uma atenção ensaística, crítica ou teórica. “Não há antagonismo. Ninguém questionará Chico associado a Drummond. Essa talvez essa seja a maior grandeza do Brasil. Repercute em inteligência, expressão, criação, mobilidade social”, diz.

Para Ferraz, a função da literatura neste momento que o Brasil atravessa é ser o oposto daquilo que é triste. “A poesia, as artes em geral, continuam sendo feitas – e na direção contrária a esse vento horrível. Nossa capacidade de sobreviver vem daí”, diz.

Guia de episódios (www.radiobatuta.com.br)

  • Episódio 1 | Clarice Lispector e a música negra norte-americana | 4/11
  • Episódio 2 | Brasil, sons, sensações, palavras | 11/11
  • Episódio 3 | Vinicius de Moraes por Vinicius de Moraes | 18/11
  • Episódio 4 | Chico Buarque e Carlos Drummond de Andrade | 25/11
  • Episódio 5 | A música de Caetano Veloso e traduções de Augusto de Campos | 2/12
  • Episódio 6 | Poesia portuguesa | 9/12

No primeiro episódio Tabuleiro, programa que Maria Bethânia estreia nesta quinta-feira, dia 4, na Rádio Batuta, pertencente ao Instituto Moreira Salles (IMS), textos de Clarice Lispector se conectam com a música negra americana, sobretudo o blues e o jazz. Trechos de A Hora da Estrela, Água Viva e A Paixão Segundo G.H. encontram relações, por exemplo, com Nina Simone cantando Pirate Jenny. Ou, com o clássico Summertime na voz de Mahalia Jackson.

A cantora Maria Bethânia em uma imagem da divulgação de seu disco 'Noturno'. Foto: Jorge Bispo

A ideia dessa “mistura”, como diz Bethânia ao Estadão, em entrevista por telefone, surgiu depois que o escritor e professor Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do IMS e responsável pela seleção de textos para o projeto, lhe enviou sugestões sobre o que ler de Clarice, embora a cantora, apaixonada pela escritora, já tivesse lido tudo dela.

Essa relação pensada por Bethânia e alinhavada por Ferraz se dá de forma natural. Em Tabuleiro, a cantora apenas lê os textos. Não há qualquer introdução, explicação ou referência. E eles são intercalados pelas canções, que também recebem o mesmo tratamento. Assim quis Bethânia. Como em seus shows, Bethânia joga sua rede de sentimentos. Cabe ao público, em seguida, recolhê-la. 

Ao todo, serão 6 episódios, cada um com um tema diferente, disponibilizados semanalmente, até 9 de dezembro. Além de Clarice, os demais temas passam pelo Brasil dos modernistas, Caetano Veloso e as traduções de Augusto de Campos, os poemas e a canções de Vinicius de Moraes, Chico Buarque e a poesia de Carlos Drummond de Andrade, e, por fim, a poesia portuguesa, com a qual Bethânia ilustrou com fado, ópera e Dalva de Oliveira – outra três de suas paixões.

No papo descontraído com o Estadão, Bethânia falou sobre o programa, Clarice, Nina, Caetano e seu costume de escrever e depois queimar tudo o que redigiu.

Você dedica o primeiro episódio ao Caetano, que te mostrou Clarice e o blues. Que impacto isso teve na sua vida?

Lembro quando Caetano e João Augusto, diretor da Escola de Teatro da Bahia, me mostraram Summertime, com Mahalia Jackson, em um compacto simples. Um mundo novo se abriu. Para mim, essa é a música mais bonita que existe. De uma classe, uma nobreza. Inclusive, as versões (das canções) que escolhi são todas ligadas à minha memória mais bonita de princípio de juventude. Fiquei louca atrás para consegui-las. O mesmo encantamento aconteceu quando li pela primeira vez um conto de Clarice. A verdade dela, a necessidade de existir por meio de sua expressão... Fiquei maluca! Clarice e o blues têm tudo a ver.

O Eucanaã (Ferraz) disse que a ideia de juntar Clarice e blues foi sua e que ele, a princípio, não enxergou essa relação. Entretanto, depois, viu que há de fato uma relação.

Eucanaã levou alguns sustos (risos). Eu queria Clarice no primeiro programa. Só não sabia como iria mexer com as músicas. Quando chegaram os textos, muitos, um dos primeiros que li foi justamente o que eu abro o programa. Eu senti que nele Clarice falava da dor dos pretos e sobre o óleo dos cisnes-negros que impermeabiliza a pele (ela se refere a um trecho do livro Água Viva). Entendi que a literatura dela e o blues ficaram do mesmo tamanho, com a mesma verdade, mesma força. Disse: é isso! Misturar Clarice, que eu adoro, com o blues que tenho ouvido muito. 

A Clarice e o blues trazem, segundo o Eucanaã, ao mesmo tempo, a dor e a superação desse sofrimento.

Sim. Eles não morrem. Fazem blues para sobreviver. Clarice escreve para sobreviver. É imperativo. Não tem uma escolha.

Seu cantar também é assim?

É. Eu tenho que cantar.

Você conheceu Clarice?

Sim. Não tive grande aproximação. Ela era muito amiga do Fauzi Arap (diretor de teatro). Quando fizemos o show Rosa dos Ventos (1971) ela foi a dois ensaios. E, no dia da estreia, era a primeira pessoa ali, na fileira. Eu sentadinha no palco, dizendo o Poema do Menino Jesus (de Fernando Pessoa), quando abri os olhos, vi Clarice, em close. Quase morri. Ela gostou muito do espetáculo, disse coisas muito fortes.

Ainda sobre o primeiro episódio, na parte musical, há Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Janis Joplin, mas quem abre é Nina Simone, com a canção Pirate Jenny.

Por conta da dramaticidade. A Ópera dos Três Tostões (de Bertolt Brecht, da qual a canção faz parte) foi o primeiro espetáculo musical que Caetano me levou para ver em Salvador. Me apaixonei pelo teatro. Minha vida mudou. Fiquei enlouquecida com as personagens. Imagina, esse espetáculo foi montado nas ruínas do Teatro Castro Alves, que tinha acabado de incendiar. A Lina Bo Bardi fez a cenografia. Era uma coisa inacreditável! Mandei para o Caetano ouvir esse primeiro programa. Ele me escreveu dizendo: fiquei muito feliz em a primeira canção ser da Ópera dos Três Tostões. Foi o primeiro espetáculo que eu te levei para que você entendesse a cidade.

Você tem uma história com a Nina. Gravaram juntas uma canção, Pronta pra Cantar, de Caetano, no seu disco de 1990. Como isso se deu?

Um empresário dela ficou encantado com o meu trabalho quando me viu em turnê pela Europa. Ele achava que tinha uma relação com a Nina. Ele insistiu para fazermos algo juntas. Eu disse que, para que eu conseguisse fazer, teria que ser algo mais para meu lado. Eu não falo e nem canto inglês. E cantar com Nina era difícil. Uma musicista extraordinária e uma cantora com estudo e preparações líricas, além de ser negra e cantar blues daquela maneira. Pedi a Caetano para fazer a canção. Nina aceitou. Brava que só ela, mas quis fazer. Ela gravou em Londres e eu aqui no Rio de Janeiro. Tinha medo dela! Já pensou encontrar com aquela figura? Era zangada. Depois, ela escreveu perguntando se podia gravar uma versão toda em inglês para o disco dela, o que não ocorreu porque ela logo deu uma parada na carreira.

No segundo episódio, o tema é o Brasil, os sons, sensações. Que país você irá mostrar?

Tem relação com a Semana de Arte Moderna (1922), com textos de Mário e Oswald de Andrade. É o programa mais curto, concentrado. Abro com Gal Costa naquela genial versão de Aquarela do Brasil. Gal é a voz, um retrato do país que se mantém há tanto tempo. Depois, entro nos textos dos negreiros, dos cabralinos. Tem Caetano com Vamo Comer

Eucanaã disse que você é mais Mário e Caetano mais Oswald...

Eu sou Mario mesmo. Adoro! É calmo, relaxado, para aproveitar. Oswald é mais preciso, seco. É mais a cara de Caetano que é cabeção (inteligente).

Há episódios sobre Vinicius, Caetano, Chico. Três de suas grandes paixões na música, não? Em todos eles há o cruzamento da literatura com a canção popular.

Eu sou cantora popular. É isso que sei e o que gosto de fazer. E gosto de ler, falar, completar o pensamento com textos (no palco) que levem o pensamento e o sentimento mais adiante. É meu jeito de trabalhar, o que aprendi com o Fauzi. Gostei muito de fazer esses programas. Foi divertido. Tem poesia, reflexão, esculhambação.

Por falar em Fauzi, foi com ele, no show Comigo Me Desavim, de 1967, que você começou a dizer textos e poesias no palco, não?

Foi. No show Opinião (1965) havia textos mais coloquiais, conversados. Em Comigo Me Desavim eu lia, por exemplo, O Mineirinho, (conto) de Clarice, inteiro.

Você tem um modo muito próprio de dizer os textos. As pausas, os alongamentos de sílabas. Há até o filme que você fez com a professora Cleonice Berardinelli (O Vento Lá Fora, de 2014) no qual ela dirige sua leitura, com momentos curiosos. De onde veio isso?

É muito natural. É o meu jeito de entender e de sentir. Com a professora Cleonice é outra praia. Ela é linda. Tem que ler direitinho (risos).

Você pode falar sobre o último episódio, dedicado à poesia portuguesa, pela qual você tem muito apreço?

Oh “paisinho” para ter bons poetas! No programa Fernando (Pessoa), mas nem tanto. Eu queria mostrar a poesia portuguesa não só com o fado. Porém, com a música brasileira, era preciso que tivesse um pouquinho de humor. Então, por exemplo, coloquei Dalva de Oliveira cantando “joguei meu cigarro no chão e pisei” (Bethânia cantarola o samba Pela Décima Vez, de Noel Rosa). Isso com a poesia portuguesa é meio maluco, inesperado. Essa é a grande graça. A mistura. Tem Amália (Rodrigues) arrebentando, claro. E tem ópera. Escolhi Maria Callas, que é minha paixão, com uma ária de Bizet, e o Pavarotti, que é voz masculina de ópera mais bonita, com Una Furtiva Lacrima, que tem tudo a ver com um poema extraordinário de Eugênio de Andrade.

Nos dias de hoje, neste ano, sobretudo no Brasil, qual a importância da poesia, da literatura – e mais, a relevância de você e Caetano lançarem discos profundos e que estimulem a reflexão?

Resistência. Um chamado para resistir. Esse é o nosso trabalho como artista.

Recentemente, você foi eleita imortal na Academia de Letras da Bahia, para a cadeira de número 18. Foi chamada pelos agora colegas como “defensora das letras”. Como recebeu isso?

Fiquei emocionada. Receber essa honraria da Academia de Letras da minha terra me deixou tocada. Estou preocupadíssima com o meu discurso. Mas tivemos essa perda muito grande do maestro (o Estadão conversou com Bethânia um dia após a morte do músico Letieres Leite, que trabalhou com ela em seu mais recente disco, Noturno). Então as coisas estão paradinhas. Deixa o tempo passar.

Você escreveu algumas letras de músicas, textos. Você escreve sempre? Tem guardados?Não guardo nada. Escrevo, sim, muito. O que vou sentindo. Escrever me liberta. É igual cantar. Depois, queimo, rasgo, jogo fora. O Waly (Salomão, poeta) brincava comigo dizendo que ia me dar um baú pra eu jogar tudo dentro em vez de queimar (risos).

“Maria Bethânia é uma criação do Brasil”

Eucanaã Ferraz. Segundo poeta, programa propõe cruzamentos de música popular com alta literatura

O poeta Eucanaã Ferraz trabalhou com Bethânia no projeto. Foto: Daniela Ramiro/Estadão

Com temas tão distintos, cada episódio teve um método próprio de construção – embora a seleção de textos sempre coubesse a Eucanaã Ferraz e a escolha das canções à Maria Bethânia. Ora Ferraz apresentou primeiro o material escrito selecionado, como no caso de Clarice Lispector. Ora foi Bethânia que veio com as canções, como no episódio que aborda a obra de Caetano. E, desse modo, os programas tomaram forma.

“Esses programas têm algo de muito lindo que é a Bethânia ouvinte de música. Quais são as canções que ela ouve em casa, mas não canta? Quais cantoras ela gosta de ouvir? Tudo veio da memória afetiva dela. Ela não colocou Janis Joplin à toa no primeiro episódio. Ela ama Janis”, diz Ferraz.

O Brasil, claro, passa pelo Tabuleiro. A obra de Chico Buarque foi abordada pelo viés carioca e associada à poesia de Carlos Drummond de Andrade também por essa ótica. No episódio dedicado aos autores portugueses, tem Beth Carvalho cantando As Rosas não Falam, de Cartola, e Elizeth Cardoso, Serenata do Adeus, de Vinicius de Moraes. Anitta está presente no programa oferecido à obra do Poetinha, com a citação de Garota de Ipanema que ela fez em Gril From Rio, cujo videoclipe oficial no YouTube já passa de 35 milhões de visualizações.

“Bethânia é, simultaneamente, um intérprete do Brasil e uma criação do Brasil. O país produziu Maria Bethânia. Quando ela fez o disco e show Brasileirinho (2003/2004) ela se consagrou como uma cantora-pesquisadora. Esse show é um ensaio sobre o Brasil. Tem um gosto de Mário de Andrade”, analisa Ferraz.

Sobre os cruzamentos que o programa propõe, de música popular e alta literatura, Ferraz afirma que a canção no Brasil é forte, importante e excelente demais para não merecer uma atenção ensaística, crítica ou teórica. “Não há antagonismo. Ninguém questionará Chico associado a Drummond. Essa talvez essa seja a maior grandeza do Brasil. Repercute em inteligência, expressão, criação, mobilidade social”, diz.

Para Ferraz, a função da literatura neste momento que o Brasil atravessa é ser o oposto daquilo que é triste. “A poesia, as artes em geral, continuam sendo feitas – e na direção contrária a esse vento horrível. Nossa capacidade de sobreviver vem daí”, diz.

Guia de episódios (www.radiobatuta.com.br)

  • Episódio 1 | Clarice Lispector e a música negra norte-americana | 4/11
  • Episódio 2 | Brasil, sons, sensações, palavras | 11/11
  • Episódio 3 | Vinicius de Moraes por Vinicius de Moraes | 18/11
  • Episódio 4 | Chico Buarque e Carlos Drummond de Andrade | 25/11
  • Episódio 5 | A música de Caetano Veloso e traduções de Augusto de Campos | 2/12
  • Episódio 6 | Poesia portuguesa | 9/12

No primeiro episódio Tabuleiro, programa que Maria Bethânia estreia nesta quinta-feira, dia 4, na Rádio Batuta, pertencente ao Instituto Moreira Salles (IMS), textos de Clarice Lispector se conectam com a música negra americana, sobretudo o blues e o jazz. Trechos de A Hora da Estrela, Água Viva e A Paixão Segundo G.H. encontram relações, por exemplo, com Nina Simone cantando Pirate Jenny. Ou, com o clássico Summertime na voz de Mahalia Jackson.

A cantora Maria Bethânia em uma imagem da divulgação de seu disco 'Noturno'. Foto: Jorge Bispo

A ideia dessa “mistura”, como diz Bethânia ao Estadão, em entrevista por telefone, surgiu depois que o escritor e professor Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do IMS e responsável pela seleção de textos para o projeto, lhe enviou sugestões sobre o que ler de Clarice, embora a cantora, apaixonada pela escritora, já tivesse lido tudo dela.

Essa relação pensada por Bethânia e alinhavada por Ferraz se dá de forma natural. Em Tabuleiro, a cantora apenas lê os textos. Não há qualquer introdução, explicação ou referência. E eles são intercalados pelas canções, que também recebem o mesmo tratamento. Assim quis Bethânia. Como em seus shows, Bethânia joga sua rede de sentimentos. Cabe ao público, em seguida, recolhê-la. 

Ao todo, serão 6 episódios, cada um com um tema diferente, disponibilizados semanalmente, até 9 de dezembro. Além de Clarice, os demais temas passam pelo Brasil dos modernistas, Caetano Veloso e as traduções de Augusto de Campos, os poemas e a canções de Vinicius de Moraes, Chico Buarque e a poesia de Carlos Drummond de Andrade, e, por fim, a poesia portuguesa, com a qual Bethânia ilustrou com fado, ópera e Dalva de Oliveira – outra três de suas paixões.

No papo descontraído com o Estadão, Bethânia falou sobre o programa, Clarice, Nina, Caetano e seu costume de escrever e depois queimar tudo o que redigiu.

Você dedica o primeiro episódio ao Caetano, que te mostrou Clarice e o blues. Que impacto isso teve na sua vida?

Lembro quando Caetano e João Augusto, diretor da Escola de Teatro da Bahia, me mostraram Summertime, com Mahalia Jackson, em um compacto simples. Um mundo novo se abriu. Para mim, essa é a música mais bonita que existe. De uma classe, uma nobreza. Inclusive, as versões (das canções) que escolhi são todas ligadas à minha memória mais bonita de princípio de juventude. Fiquei louca atrás para consegui-las. O mesmo encantamento aconteceu quando li pela primeira vez um conto de Clarice. A verdade dela, a necessidade de existir por meio de sua expressão... Fiquei maluca! Clarice e o blues têm tudo a ver.

O Eucanaã (Ferraz) disse que a ideia de juntar Clarice e blues foi sua e que ele, a princípio, não enxergou essa relação. Entretanto, depois, viu que há de fato uma relação.

Eucanaã levou alguns sustos (risos). Eu queria Clarice no primeiro programa. Só não sabia como iria mexer com as músicas. Quando chegaram os textos, muitos, um dos primeiros que li foi justamente o que eu abro o programa. Eu senti que nele Clarice falava da dor dos pretos e sobre o óleo dos cisnes-negros que impermeabiliza a pele (ela se refere a um trecho do livro Água Viva). Entendi que a literatura dela e o blues ficaram do mesmo tamanho, com a mesma verdade, mesma força. Disse: é isso! Misturar Clarice, que eu adoro, com o blues que tenho ouvido muito. 

A Clarice e o blues trazem, segundo o Eucanaã, ao mesmo tempo, a dor e a superação desse sofrimento.

Sim. Eles não morrem. Fazem blues para sobreviver. Clarice escreve para sobreviver. É imperativo. Não tem uma escolha.

Seu cantar também é assim?

É. Eu tenho que cantar.

Você conheceu Clarice?

Sim. Não tive grande aproximação. Ela era muito amiga do Fauzi Arap (diretor de teatro). Quando fizemos o show Rosa dos Ventos (1971) ela foi a dois ensaios. E, no dia da estreia, era a primeira pessoa ali, na fileira. Eu sentadinha no palco, dizendo o Poema do Menino Jesus (de Fernando Pessoa), quando abri os olhos, vi Clarice, em close. Quase morri. Ela gostou muito do espetáculo, disse coisas muito fortes.

Ainda sobre o primeiro episódio, na parte musical, há Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Janis Joplin, mas quem abre é Nina Simone, com a canção Pirate Jenny.

Por conta da dramaticidade. A Ópera dos Três Tostões (de Bertolt Brecht, da qual a canção faz parte) foi o primeiro espetáculo musical que Caetano me levou para ver em Salvador. Me apaixonei pelo teatro. Minha vida mudou. Fiquei enlouquecida com as personagens. Imagina, esse espetáculo foi montado nas ruínas do Teatro Castro Alves, que tinha acabado de incendiar. A Lina Bo Bardi fez a cenografia. Era uma coisa inacreditável! Mandei para o Caetano ouvir esse primeiro programa. Ele me escreveu dizendo: fiquei muito feliz em a primeira canção ser da Ópera dos Três Tostões. Foi o primeiro espetáculo que eu te levei para que você entendesse a cidade.

Você tem uma história com a Nina. Gravaram juntas uma canção, Pronta pra Cantar, de Caetano, no seu disco de 1990. Como isso se deu?

Um empresário dela ficou encantado com o meu trabalho quando me viu em turnê pela Europa. Ele achava que tinha uma relação com a Nina. Ele insistiu para fazermos algo juntas. Eu disse que, para que eu conseguisse fazer, teria que ser algo mais para meu lado. Eu não falo e nem canto inglês. E cantar com Nina era difícil. Uma musicista extraordinária e uma cantora com estudo e preparações líricas, além de ser negra e cantar blues daquela maneira. Pedi a Caetano para fazer a canção. Nina aceitou. Brava que só ela, mas quis fazer. Ela gravou em Londres e eu aqui no Rio de Janeiro. Tinha medo dela! Já pensou encontrar com aquela figura? Era zangada. Depois, ela escreveu perguntando se podia gravar uma versão toda em inglês para o disco dela, o que não ocorreu porque ela logo deu uma parada na carreira.

No segundo episódio, o tema é o Brasil, os sons, sensações. Que país você irá mostrar?

Tem relação com a Semana de Arte Moderna (1922), com textos de Mário e Oswald de Andrade. É o programa mais curto, concentrado. Abro com Gal Costa naquela genial versão de Aquarela do Brasil. Gal é a voz, um retrato do país que se mantém há tanto tempo. Depois, entro nos textos dos negreiros, dos cabralinos. Tem Caetano com Vamo Comer

Eucanaã disse que você é mais Mário e Caetano mais Oswald...

Eu sou Mario mesmo. Adoro! É calmo, relaxado, para aproveitar. Oswald é mais preciso, seco. É mais a cara de Caetano que é cabeção (inteligente).

Há episódios sobre Vinicius, Caetano, Chico. Três de suas grandes paixões na música, não? Em todos eles há o cruzamento da literatura com a canção popular.

Eu sou cantora popular. É isso que sei e o que gosto de fazer. E gosto de ler, falar, completar o pensamento com textos (no palco) que levem o pensamento e o sentimento mais adiante. É meu jeito de trabalhar, o que aprendi com o Fauzi. Gostei muito de fazer esses programas. Foi divertido. Tem poesia, reflexão, esculhambação.

Por falar em Fauzi, foi com ele, no show Comigo Me Desavim, de 1967, que você começou a dizer textos e poesias no palco, não?

Foi. No show Opinião (1965) havia textos mais coloquiais, conversados. Em Comigo Me Desavim eu lia, por exemplo, O Mineirinho, (conto) de Clarice, inteiro.

Você tem um modo muito próprio de dizer os textos. As pausas, os alongamentos de sílabas. Há até o filme que você fez com a professora Cleonice Berardinelli (O Vento Lá Fora, de 2014) no qual ela dirige sua leitura, com momentos curiosos. De onde veio isso?

É muito natural. É o meu jeito de entender e de sentir. Com a professora Cleonice é outra praia. Ela é linda. Tem que ler direitinho (risos).

Você pode falar sobre o último episódio, dedicado à poesia portuguesa, pela qual você tem muito apreço?

Oh “paisinho” para ter bons poetas! No programa Fernando (Pessoa), mas nem tanto. Eu queria mostrar a poesia portuguesa não só com o fado. Porém, com a música brasileira, era preciso que tivesse um pouquinho de humor. Então, por exemplo, coloquei Dalva de Oliveira cantando “joguei meu cigarro no chão e pisei” (Bethânia cantarola o samba Pela Décima Vez, de Noel Rosa). Isso com a poesia portuguesa é meio maluco, inesperado. Essa é a grande graça. A mistura. Tem Amália (Rodrigues) arrebentando, claro. E tem ópera. Escolhi Maria Callas, que é minha paixão, com uma ária de Bizet, e o Pavarotti, que é voz masculina de ópera mais bonita, com Una Furtiva Lacrima, que tem tudo a ver com um poema extraordinário de Eugênio de Andrade.

Nos dias de hoje, neste ano, sobretudo no Brasil, qual a importância da poesia, da literatura – e mais, a relevância de você e Caetano lançarem discos profundos e que estimulem a reflexão?

Resistência. Um chamado para resistir. Esse é o nosso trabalho como artista.

Recentemente, você foi eleita imortal na Academia de Letras da Bahia, para a cadeira de número 18. Foi chamada pelos agora colegas como “defensora das letras”. Como recebeu isso?

Fiquei emocionada. Receber essa honraria da Academia de Letras da minha terra me deixou tocada. Estou preocupadíssima com o meu discurso. Mas tivemos essa perda muito grande do maestro (o Estadão conversou com Bethânia um dia após a morte do músico Letieres Leite, que trabalhou com ela em seu mais recente disco, Noturno). Então as coisas estão paradinhas. Deixa o tempo passar.

Você escreveu algumas letras de músicas, textos. Você escreve sempre? Tem guardados?Não guardo nada. Escrevo, sim, muito. O que vou sentindo. Escrever me liberta. É igual cantar. Depois, queimo, rasgo, jogo fora. O Waly (Salomão, poeta) brincava comigo dizendo que ia me dar um baú pra eu jogar tudo dentro em vez de queimar (risos).

“Maria Bethânia é uma criação do Brasil”

Eucanaã Ferraz. Segundo poeta, programa propõe cruzamentos de música popular com alta literatura

O poeta Eucanaã Ferraz trabalhou com Bethânia no projeto. Foto: Daniela Ramiro/Estadão

Com temas tão distintos, cada episódio teve um método próprio de construção – embora a seleção de textos sempre coubesse a Eucanaã Ferraz e a escolha das canções à Maria Bethânia. Ora Ferraz apresentou primeiro o material escrito selecionado, como no caso de Clarice Lispector. Ora foi Bethânia que veio com as canções, como no episódio que aborda a obra de Caetano. E, desse modo, os programas tomaram forma.

“Esses programas têm algo de muito lindo que é a Bethânia ouvinte de música. Quais são as canções que ela ouve em casa, mas não canta? Quais cantoras ela gosta de ouvir? Tudo veio da memória afetiva dela. Ela não colocou Janis Joplin à toa no primeiro episódio. Ela ama Janis”, diz Ferraz.

O Brasil, claro, passa pelo Tabuleiro. A obra de Chico Buarque foi abordada pelo viés carioca e associada à poesia de Carlos Drummond de Andrade também por essa ótica. No episódio dedicado aos autores portugueses, tem Beth Carvalho cantando As Rosas não Falam, de Cartola, e Elizeth Cardoso, Serenata do Adeus, de Vinicius de Moraes. Anitta está presente no programa oferecido à obra do Poetinha, com a citação de Garota de Ipanema que ela fez em Gril From Rio, cujo videoclipe oficial no YouTube já passa de 35 milhões de visualizações.

“Bethânia é, simultaneamente, um intérprete do Brasil e uma criação do Brasil. O país produziu Maria Bethânia. Quando ela fez o disco e show Brasileirinho (2003/2004) ela se consagrou como uma cantora-pesquisadora. Esse show é um ensaio sobre o Brasil. Tem um gosto de Mário de Andrade”, analisa Ferraz.

Sobre os cruzamentos que o programa propõe, de música popular e alta literatura, Ferraz afirma que a canção no Brasil é forte, importante e excelente demais para não merecer uma atenção ensaística, crítica ou teórica. “Não há antagonismo. Ninguém questionará Chico associado a Drummond. Essa talvez essa seja a maior grandeza do Brasil. Repercute em inteligência, expressão, criação, mobilidade social”, diz.

Para Ferraz, a função da literatura neste momento que o Brasil atravessa é ser o oposto daquilo que é triste. “A poesia, as artes em geral, continuam sendo feitas – e na direção contrária a esse vento horrível. Nossa capacidade de sobreviver vem daí”, diz.

Guia de episódios (www.radiobatuta.com.br)

  • Episódio 1 | Clarice Lispector e a música negra norte-americana | 4/11
  • Episódio 2 | Brasil, sons, sensações, palavras | 11/11
  • Episódio 3 | Vinicius de Moraes por Vinicius de Moraes | 18/11
  • Episódio 4 | Chico Buarque e Carlos Drummond de Andrade | 25/11
  • Episódio 5 | A música de Caetano Veloso e traduções de Augusto de Campos | 2/12
  • Episódio 6 | Poesia portuguesa | 9/12

No primeiro episódio Tabuleiro, programa que Maria Bethânia estreia nesta quinta-feira, dia 4, na Rádio Batuta, pertencente ao Instituto Moreira Salles (IMS), textos de Clarice Lispector se conectam com a música negra americana, sobretudo o blues e o jazz. Trechos de A Hora da Estrela, Água Viva e A Paixão Segundo G.H. encontram relações, por exemplo, com Nina Simone cantando Pirate Jenny. Ou, com o clássico Summertime na voz de Mahalia Jackson.

A cantora Maria Bethânia em uma imagem da divulgação de seu disco 'Noturno'. Foto: Jorge Bispo

A ideia dessa “mistura”, como diz Bethânia ao Estadão, em entrevista por telefone, surgiu depois que o escritor e professor Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do IMS e responsável pela seleção de textos para o projeto, lhe enviou sugestões sobre o que ler de Clarice, embora a cantora, apaixonada pela escritora, já tivesse lido tudo dela.

Essa relação pensada por Bethânia e alinhavada por Ferraz se dá de forma natural. Em Tabuleiro, a cantora apenas lê os textos. Não há qualquer introdução, explicação ou referência. E eles são intercalados pelas canções, que também recebem o mesmo tratamento. Assim quis Bethânia. Como em seus shows, Bethânia joga sua rede de sentimentos. Cabe ao público, em seguida, recolhê-la. 

Ao todo, serão 6 episódios, cada um com um tema diferente, disponibilizados semanalmente, até 9 de dezembro. Além de Clarice, os demais temas passam pelo Brasil dos modernistas, Caetano Veloso e as traduções de Augusto de Campos, os poemas e a canções de Vinicius de Moraes, Chico Buarque e a poesia de Carlos Drummond de Andrade, e, por fim, a poesia portuguesa, com a qual Bethânia ilustrou com fado, ópera e Dalva de Oliveira – outra três de suas paixões.

No papo descontraído com o Estadão, Bethânia falou sobre o programa, Clarice, Nina, Caetano e seu costume de escrever e depois queimar tudo o que redigiu.

Você dedica o primeiro episódio ao Caetano, que te mostrou Clarice e o blues. Que impacto isso teve na sua vida?

Lembro quando Caetano e João Augusto, diretor da Escola de Teatro da Bahia, me mostraram Summertime, com Mahalia Jackson, em um compacto simples. Um mundo novo se abriu. Para mim, essa é a música mais bonita que existe. De uma classe, uma nobreza. Inclusive, as versões (das canções) que escolhi são todas ligadas à minha memória mais bonita de princípio de juventude. Fiquei louca atrás para consegui-las. O mesmo encantamento aconteceu quando li pela primeira vez um conto de Clarice. A verdade dela, a necessidade de existir por meio de sua expressão... Fiquei maluca! Clarice e o blues têm tudo a ver.

O Eucanaã (Ferraz) disse que a ideia de juntar Clarice e blues foi sua e que ele, a princípio, não enxergou essa relação. Entretanto, depois, viu que há de fato uma relação.

Eucanaã levou alguns sustos (risos). Eu queria Clarice no primeiro programa. Só não sabia como iria mexer com as músicas. Quando chegaram os textos, muitos, um dos primeiros que li foi justamente o que eu abro o programa. Eu senti que nele Clarice falava da dor dos pretos e sobre o óleo dos cisnes-negros que impermeabiliza a pele (ela se refere a um trecho do livro Água Viva). Entendi que a literatura dela e o blues ficaram do mesmo tamanho, com a mesma verdade, mesma força. Disse: é isso! Misturar Clarice, que eu adoro, com o blues que tenho ouvido muito. 

A Clarice e o blues trazem, segundo o Eucanaã, ao mesmo tempo, a dor e a superação desse sofrimento.

Sim. Eles não morrem. Fazem blues para sobreviver. Clarice escreve para sobreviver. É imperativo. Não tem uma escolha.

Seu cantar também é assim?

É. Eu tenho que cantar.

Você conheceu Clarice?

Sim. Não tive grande aproximação. Ela era muito amiga do Fauzi Arap (diretor de teatro). Quando fizemos o show Rosa dos Ventos (1971) ela foi a dois ensaios. E, no dia da estreia, era a primeira pessoa ali, na fileira. Eu sentadinha no palco, dizendo o Poema do Menino Jesus (de Fernando Pessoa), quando abri os olhos, vi Clarice, em close. Quase morri. Ela gostou muito do espetáculo, disse coisas muito fortes.

Ainda sobre o primeiro episódio, na parte musical, há Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Janis Joplin, mas quem abre é Nina Simone, com a canção Pirate Jenny.

Por conta da dramaticidade. A Ópera dos Três Tostões (de Bertolt Brecht, da qual a canção faz parte) foi o primeiro espetáculo musical que Caetano me levou para ver em Salvador. Me apaixonei pelo teatro. Minha vida mudou. Fiquei enlouquecida com as personagens. Imagina, esse espetáculo foi montado nas ruínas do Teatro Castro Alves, que tinha acabado de incendiar. A Lina Bo Bardi fez a cenografia. Era uma coisa inacreditável! Mandei para o Caetano ouvir esse primeiro programa. Ele me escreveu dizendo: fiquei muito feliz em a primeira canção ser da Ópera dos Três Tostões. Foi o primeiro espetáculo que eu te levei para que você entendesse a cidade.

Você tem uma história com a Nina. Gravaram juntas uma canção, Pronta pra Cantar, de Caetano, no seu disco de 1990. Como isso se deu?

Um empresário dela ficou encantado com o meu trabalho quando me viu em turnê pela Europa. Ele achava que tinha uma relação com a Nina. Ele insistiu para fazermos algo juntas. Eu disse que, para que eu conseguisse fazer, teria que ser algo mais para meu lado. Eu não falo e nem canto inglês. E cantar com Nina era difícil. Uma musicista extraordinária e uma cantora com estudo e preparações líricas, além de ser negra e cantar blues daquela maneira. Pedi a Caetano para fazer a canção. Nina aceitou. Brava que só ela, mas quis fazer. Ela gravou em Londres e eu aqui no Rio de Janeiro. Tinha medo dela! Já pensou encontrar com aquela figura? Era zangada. Depois, ela escreveu perguntando se podia gravar uma versão toda em inglês para o disco dela, o que não ocorreu porque ela logo deu uma parada na carreira.

No segundo episódio, o tema é o Brasil, os sons, sensações. Que país você irá mostrar?

Tem relação com a Semana de Arte Moderna (1922), com textos de Mário e Oswald de Andrade. É o programa mais curto, concentrado. Abro com Gal Costa naquela genial versão de Aquarela do Brasil. Gal é a voz, um retrato do país que se mantém há tanto tempo. Depois, entro nos textos dos negreiros, dos cabralinos. Tem Caetano com Vamo Comer

Eucanaã disse que você é mais Mário e Caetano mais Oswald...

Eu sou Mario mesmo. Adoro! É calmo, relaxado, para aproveitar. Oswald é mais preciso, seco. É mais a cara de Caetano que é cabeção (inteligente).

Há episódios sobre Vinicius, Caetano, Chico. Três de suas grandes paixões na música, não? Em todos eles há o cruzamento da literatura com a canção popular.

Eu sou cantora popular. É isso que sei e o que gosto de fazer. E gosto de ler, falar, completar o pensamento com textos (no palco) que levem o pensamento e o sentimento mais adiante. É meu jeito de trabalhar, o que aprendi com o Fauzi. Gostei muito de fazer esses programas. Foi divertido. Tem poesia, reflexão, esculhambação.

Por falar em Fauzi, foi com ele, no show Comigo Me Desavim, de 1967, que você começou a dizer textos e poesias no palco, não?

Foi. No show Opinião (1965) havia textos mais coloquiais, conversados. Em Comigo Me Desavim eu lia, por exemplo, O Mineirinho, (conto) de Clarice, inteiro.

Você tem um modo muito próprio de dizer os textos. As pausas, os alongamentos de sílabas. Há até o filme que você fez com a professora Cleonice Berardinelli (O Vento Lá Fora, de 2014) no qual ela dirige sua leitura, com momentos curiosos. De onde veio isso?

É muito natural. É o meu jeito de entender e de sentir. Com a professora Cleonice é outra praia. Ela é linda. Tem que ler direitinho (risos).

Você pode falar sobre o último episódio, dedicado à poesia portuguesa, pela qual você tem muito apreço?

Oh “paisinho” para ter bons poetas! No programa Fernando (Pessoa), mas nem tanto. Eu queria mostrar a poesia portuguesa não só com o fado. Porém, com a música brasileira, era preciso que tivesse um pouquinho de humor. Então, por exemplo, coloquei Dalva de Oliveira cantando “joguei meu cigarro no chão e pisei” (Bethânia cantarola o samba Pela Décima Vez, de Noel Rosa). Isso com a poesia portuguesa é meio maluco, inesperado. Essa é a grande graça. A mistura. Tem Amália (Rodrigues) arrebentando, claro. E tem ópera. Escolhi Maria Callas, que é minha paixão, com uma ária de Bizet, e o Pavarotti, que é voz masculina de ópera mais bonita, com Una Furtiva Lacrima, que tem tudo a ver com um poema extraordinário de Eugênio de Andrade.

Nos dias de hoje, neste ano, sobretudo no Brasil, qual a importância da poesia, da literatura – e mais, a relevância de você e Caetano lançarem discos profundos e que estimulem a reflexão?

Resistência. Um chamado para resistir. Esse é o nosso trabalho como artista.

Recentemente, você foi eleita imortal na Academia de Letras da Bahia, para a cadeira de número 18. Foi chamada pelos agora colegas como “defensora das letras”. Como recebeu isso?

Fiquei emocionada. Receber essa honraria da Academia de Letras da minha terra me deixou tocada. Estou preocupadíssima com o meu discurso. Mas tivemos essa perda muito grande do maestro (o Estadão conversou com Bethânia um dia após a morte do músico Letieres Leite, que trabalhou com ela em seu mais recente disco, Noturno). Então as coisas estão paradinhas. Deixa o tempo passar.

Você escreveu algumas letras de músicas, textos. Você escreve sempre? Tem guardados?Não guardo nada. Escrevo, sim, muito. O que vou sentindo. Escrever me liberta. É igual cantar. Depois, queimo, rasgo, jogo fora. O Waly (Salomão, poeta) brincava comigo dizendo que ia me dar um baú pra eu jogar tudo dentro em vez de queimar (risos).

“Maria Bethânia é uma criação do Brasil”

Eucanaã Ferraz. Segundo poeta, programa propõe cruzamentos de música popular com alta literatura

O poeta Eucanaã Ferraz trabalhou com Bethânia no projeto. Foto: Daniela Ramiro/Estadão

Com temas tão distintos, cada episódio teve um método próprio de construção – embora a seleção de textos sempre coubesse a Eucanaã Ferraz e a escolha das canções à Maria Bethânia. Ora Ferraz apresentou primeiro o material escrito selecionado, como no caso de Clarice Lispector. Ora foi Bethânia que veio com as canções, como no episódio que aborda a obra de Caetano. E, desse modo, os programas tomaram forma.

“Esses programas têm algo de muito lindo que é a Bethânia ouvinte de música. Quais são as canções que ela ouve em casa, mas não canta? Quais cantoras ela gosta de ouvir? Tudo veio da memória afetiva dela. Ela não colocou Janis Joplin à toa no primeiro episódio. Ela ama Janis”, diz Ferraz.

O Brasil, claro, passa pelo Tabuleiro. A obra de Chico Buarque foi abordada pelo viés carioca e associada à poesia de Carlos Drummond de Andrade também por essa ótica. No episódio dedicado aos autores portugueses, tem Beth Carvalho cantando As Rosas não Falam, de Cartola, e Elizeth Cardoso, Serenata do Adeus, de Vinicius de Moraes. Anitta está presente no programa oferecido à obra do Poetinha, com a citação de Garota de Ipanema que ela fez em Gril From Rio, cujo videoclipe oficial no YouTube já passa de 35 milhões de visualizações.

“Bethânia é, simultaneamente, um intérprete do Brasil e uma criação do Brasil. O país produziu Maria Bethânia. Quando ela fez o disco e show Brasileirinho (2003/2004) ela se consagrou como uma cantora-pesquisadora. Esse show é um ensaio sobre o Brasil. Tem um gosto de Mário de Andrade”, analisa Ferraz.

Sobre os cruzamentos que o programa propõe, de música popular e alta literatura, Ferraz afirma que a canção no Brasil é forte, importante e excelente demais para não merecer uma atenção ensaística, crítica ou teórica. “Não há antagonismo. Ninguém questionará Chico associado a Drummond. Essa talvez essa seja a maior grandeza do Brasil. Repercute em inteligência, expressão, criação, mobilidade social”, diz.

Para Ferraz, a função da literatura neste momento que o Brasil atravessa é ser o oposto daquilo que é triste. “A poesia, as artes em geral, continuam sendo feitas – e na direção contrária a esse vento horrível. Nossa capacidade de sobreviver vem daí”, diz.

Guia de episódios (www.radiobatuta.com.br)

  • Episódio 1 | Clarice Lispector e a música negra norte-americana | 4/11
  • Episódio 2 | Brasil, sons, sensações, palavras | 11/11
  • Episódio 3 | Vinicius de Moraes por Vinicius de Moraes | 18/11
  • Episódio 4 | Chico Buarque e Carlos Drummond de Andrade | 25/11
  • Episódio 5 | A música de Caetano Veloso e traduções de Augusto de Campos | 2/12
  • Episódio 6 | Poesia portuguesa | 9/12

No primeiro episódio Tabuleiro, programa que Maria Bethânia estreia nesta quinta-feira, dia 4, na Rádio Batuta, pertencente ao Instituto Moreira Salles (IMS), textos de Clarice Lispector se conectam com a música negra americana, sobretudo o blues e o jazz. Trechos de A Hora da Estrela, Água Viva e A Paixão Segundo G.H. encontram relações, por exemplo, com Nina Simone cantando Pirate Jenny. Ou, com o clássico Summertime na voz de Mahalia Jackson.

A cantora Maria Bethânia em uma imagem da divulgação de seu disco 'Noturno'. Foto: Jorge Bispo

A ideia dessa “mistura”, como diz Bethânia ao Estadão, em entrevista por telefone, surgiu depois que o escritor e professor Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do IMS e responsável pela seleção de textos para o projeto, lhe enviou sugestões sobre o que ler de Clarice, embora a cantora, apaixonada pela escritora, já tivesse lido tudo dela.

Essa relação pensada por Bethânia e alinhavada por Ferraz se dá de forma natural. Em Tabuleiro, a cantora apenas lê os textos. Não há qualquer introdução, explicação ou referência. E eles são intercalados pelas canções, que também recebem o mesmo tratamento. Assim quis Bethânia. Como em seus shows, Bethânia joga sua rede de sentimentos. Cabe ao público, em seguida, recolhê-la. 

Ao todo, serão 6 episódios, cada um com um tema diferente, disponibilizados semanalmente, até 9 de dezembro. Além de Clarice, os demais temas passam pelo Brasil dos modernistas, Caetano Veloso e as traduções de Augusto de Campos, os poemas e a canções de Vinicius de Moraes, Chico Buarque e a poesia de Carlos Drummond de Andrade, e, por fim, a poesia portuguesa, com a qual Bethânia ilustrou com fado, ópera e Dalva de Oliveira – outra três de suas paixões.

No papo descontraído com o Estadão, Bethânia falou sobre o programa, Clarice, Nina, Caetano e seu costume de escrever e depois queimar tudo o que redigiu.

Você dedica o primeiro episódio ao Caetano, que te mostrou Clarice e o blues. Que impacto isso teve na sua vida?

Lembro quando Caetano e João Augusto, diretor da Escola de Teatro da Bahia, me mostraram Summertime, com Mahalia Jackson, em um compacto simples. Um mundo novo se abriu. Para mim, essa é a música mais bonita que existe. De uma classe, uma nobreza. Inclusive, as versões (das canções) que escolhi são todas ligadas à minha memória mais bonita de princípio de juventude. Fiquei louca atrás para consegui-las. O mesmo encantamento aconteceu quando li pela primeira vez um conto de Clarice. A verdade dela, a necessidade de existir por meio de sua expressão... Fiquei maluca! Clarice e o blues têm tudo a ver.

O Eucanaã (Ferraz) disse que a ideia de juntar Clarice e blues foi sua e que ele, a princípio, não enxergou essa relação. Entretanto, depois, viu que há de fato uma relação.

Eucanaã levou alguns sustos (risos). Eu queria Clarice no primeiro programa. Só não sabia como iria mexer com as músicas. Quando chegaram os textos, muitos, um dos primeiros que li foi justamente o que eu abro o programa. Eu senti que nele Clarice falava da dor dos pretos e sobre o óleo dos cisnes-negros que impermeabiliza a pele (ela se refere a um trecho do livro Água Viva). Entendi que a literatura dela e o blues ficaram do mesmo tamanho, com a mesma verdade, mesma força. Disse: é isso! Misturar Clarice, que eu adoro, com o blues que tenho ouvido muito. 

A Clarice e o blues trazem, segundo o Eucanaã, ao mesmo tempo, a dor e a superação desse sofrimento.

Sim. Eles não morrem. Fazem blues para sobreviver. Clarice escreve para sobreviver. É imperativo. Não tem uma escolha.

Seu cantar também é assim?

É. Eu tenho que cantar.

Você conheceu Clarice?

Sim. Não tive grande aproximação. Ela era muito amiga do Fauzi Arap (diretor de teatro). Quando fizemos o show Rosa dos Ventos (1971) ela foi a dois ensaios. E, no dia da estreia, era a primeira pessoa ali, na fileira. Eu sentadinha no palco, dizendo o Poema do Menino Jesus (de Fernando Pessoa), quando abri os olhos, vi Clarice, em close. Quase morri. Ela gostou muito do espetáculo, disse coisas muito fortes.

Ainda sobre o primeiro episódio, na parte musical, há Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Chet Baker, Janis Joplin, mas quem abre é Nina Simone, com a canção Pirate Jenny.

Por conta da dramaticidade. A Ópera dos Três Tostões (de Bertolt Brecht, da qual a canção faz parte) foi o primeiro espetáculo musical que Caetano me levou para ver em Salvador. Me apaixonei pelo teatro. Minha vida mudou. Fiquei enlouquecida com as personagens. Imagina, esse espetáculo foi montado nas ruínas do Teatro Castro Alves, que tinha acabado de incendiar. A Lina Bo Bardi fez a cenografia. Era uma coisa inacreditável! Mandei para o Caetano ouvir esse primeiro programa. Ele me escreveu dizendo: fiquei muito feliz em a primeira canção ser da Ópera dos Três Tostões. Foi o primeiro espetáculo que eu te levei para que você entendesse a cidade.

Você tem uma história com a Nina. Gravaram juntas uma canção, Pronta pra Cantar, de Caetano, no seu disco de 1990. Como isso se deu?

Um empresário dela ficou encantado com o meu trabalho quando me viu em turnê pela Europa. Ele achava que tinha uma relação com a Nina. Ele insistiu para fazermos algo juntas. Eu disse que, para que eu conseguisse fazer, teria que ser algo mais para meu lado. Eu não falo e nem canto inglês. E cantar com Nina era difícil. Uma musicista extraordinária e uma cantora com estudo e preparações líricas, além de ser negra e cantar blues daquela maneira. Pedi a Caetano para fazer a canção. Nina aceitou. Brava que só ela, mas quis fazer. Ela gravou em Londres e eu aqui no Rio de Janeiro. Tinha medo dela! Já pensou encontrar com aquela figura? Era zangada. Depois, ela escreveu perguntando se podia gravar uma versão toda em inglês para o disco dela, o que não ocorreu porque ela logo deu uma parada na carreira.

No segundo episódio, o tema é o Brasil, os sons, sensações. Que país você irá mostrar?

Tem relação com a Semana de Arte Moderna (1922), com textos de Mário e Oswald de Andrade. É o programa mais curto, concentrado. Abro com Gal Costa naquela genial versão de Aquarela do Brasil. Gal é a voz, um retrato do país que se mantém há tanto tempo. Depois, entro nos textos dos negreiros, dos cabralinos. Tem Caetano com Vamo Comer

Eucanaã disse que você é mais Mário e Caetano mais Oswald...

Eu sou Mario mesmo. Adoro! É calmo, relaxado, para aproveitar. Oswald é mais preciso, seco. É mais a cara de Caetano que é cabeção (inteligente).

Há episódios sobre Vinicius, Caetano, Chico. Três de suas grandes paixões na música, não? Em todos eles há o cruzamento da literatura com a canção popular.

Eu sou cantora popular. É isso que sei e o que gosto de fazer. E gosto de ler, falar, completar o pensamento com textos (no palco) que levem o pensamento e o sentimento mais adiante. É meu jeito de trabalhar, o que aprendi com o Fauzi. Gostei muito de fazer esses programas. Foi divertido. Tem poesia, reflexão, esculhambação.

Por falar em Fauzi, foi com ele, no show Comigo Me Desavim, de 1967, que você começou a dizer textos e poesias no palco, não?

Foi. No show Opinião (1965) havia textos mais coloquiais, conversados. Em Comigo Me Desavim eu lia, por exemplo, O Mineirinho, (conto) de Clarice, inteiro.

Você tem um modo muito próprio de dizer os textos. As pausas, os alongamentos de sílabas. Há até o filme que você fez com a professora Cleonice Berardinelli (O Vento Lá Fora, de 2014) no qual ela dirige sua leitura, com momentos curiosos. De onde veio isso?

É muito natural. É o meu jeito de entender e de sentir. Com a professora Cleonice é outra praia. Ela é linda. Tem que ler direitinho (risos).

Você pode falar sobre o último episódio, dedicado à poesia portuguesa, pela qual você tem muito apreço?

Oh “paisinho” para ter bons poetas! No programa Fernando (Pessoa), mas nem tanto. Eu queria mostrar a poesia portuguesa não só com o fado. Porém, com a música brasileira, era preciso que tivesse um pouquinho de humor. Então, por exemplo, coloquei Dalva de Oliveira cantando “joguei meu cigarro no chão e pisei” (Bethânia cantarola o samba Pela Décima Vez, de Noel Rosa). Isso com a poesia portuguesa é meio maluco, inesperado. Essa é a grande graça. A mistura. Tem Amália (Rodrigues) arrebentando, claro. E tem ópera. Escolhi Maria Callas, que é minha paixão, com uma ária de Bizet, e o Pavarotti, que é voz masculina de ópera mais bonita, com Una Furtiva Lacrima, que tem tudo a ver com um poema extraordinário de Eugênio de Andrade.

Nos dias de hoje, neste ano, sobretudo no Brasil, qual a importância da poesia, da literatura – e mais, a relevância de você e Caetano lançarem discos profundos e que estimulem a reflexão?

Resistência. Um chamado para resistir. Esse é o nosso trabalho como artista.

Recentemente, você foi eleita imortal na Academia de Letras da Bahia, para a cadeira de número 18. Foi chamada pelos agora colegas como “defensora das letras”. Como recebeu isso?

Fiquei emocionada. Receber essa honraria da Academia de Letras da minha terra me deixou tocada. Estou preocupadíssima com o meu discurso. Mas tivemos essa perda muito grande do maestro (o Estadão conversou com Bethânia um dia após a morte do músico Letieres Leite, que trabalhou com ela em seu mais recente disco, Noturno). Então as coisas estão paradinhas. Deixa o tempo passar.

Você escreveu algumas letras de músicas, textos. Você escreve sempre? Tem guardados?Não guardo nada. Escrevo, sim, muito. O que vou sentindo. Escrever me liberta. É igual cantar. Depois, queimo, rasgo, jogo fora. O Waly (Salomão, poeta) brincava comigo dizendo que ia me dar um baú pra eu jogar tudo dentro em vez de queimar (risos).

“Maria Bethânia é uma criação do Brasil”

Eucanaã Ferraz. Segundo poeta, programa propõe cruzamentos de música popular com alta literatura

O poeta Eucanaã Ferraz trabalhou com Bethânia no projeto. Foto: Daniela Ramiro/Estadão

Com temas tão distintos, cada episódio teve um método próprio de construção – embora a seleção de textos sempre coubesse a Eucanaã Ferraz e a escolha das canções à Maria Bethânia. Ora Ferraz apresentou primeiro o material escrito selecionado, como no caso de Clarice Lispector. Ora foi Bethânia que veio com as canções, como no episódio que aborda a obra de Caetano. E, desse modo, os programas tomaram forma.

“Esses programas têm algo de muito lindo que é a Bethânia ouvinte de música. Quais são as canções que ela ouve em casa, mas não canta? Quais cantoras ela gosta de ouvir? Tudo veio da memória afetiva dela. Ela não colocou Janis Joplin à toa no primeiro episódio. Ela ama Janis”, diz Ferraz.

O Brasil, claro, passa pelo Tabuleiro. A obra de Chico Buarque foi abordada pelo viés carioca e associada à poesia de Carlos Drummond de Andrade também por essa ótica. No episódio dedicado aos autores portugueses, tem Beth Carvalho cantando As Rosas não Falam, de Cartola, e Elizeth Cardoso, Serenata do Adeus, de Vinicius de Moraes. Anitta está presente no programa oferecido à obra do Poetinha, com a citação de Garota de Ipanema que ela fez em Gril From Rio, cujo videoclipe oficial no YouTube já passa de 35 milhões de visualizações.

“Bethânia é, simultaneamente, um intérprete do Brasil e uma criação do Brasil. O país produziu Maria Bethânia. Quando ela fez o disco e show Brasileirinho (2003/2004) ela se consagrou como uma cantora-pesquisadora. Esse show é um ensaio sobre o Brasil. Tem um gosto de Mário de Andrade”, analisa Ferraz.

Sobre os cruzamentos que o programa propõe, de música popular e alta literatura, Ferraz afirma que a canção no Brasil é forte, importante e excelente demais para não merecer uma atenção ensaística, crítica ou teórica. “Não há antagonismo. Ninguém questionará Chico associado a Drummond. Essa talvez essa seja a maior grandeza do Brasil. Repercute em inteligência, expressão, criação, mobilidade social”, diz.

Para Ferraz, a função da literatura neste momento que o Brasil atravessa é ser o oposto daquilo que é triste. “A poesia, as artes em geral, continuam sendo feitas – e na direção contrária a esse vento horrível. Nossa capacidade de sobreviver vem daí”, diz.

Guia de episódios (www.radiobatuta.com.br)

  • Episódio 1 | Clarice Lispector e a música negra norte-americana | 4/11
  • Episódio 2 | Brasil, sons, sensações, palavras | 11/11
  • Episódio 3 | Vinicius de Moraes por Vinicius de Moraes | 18/11
  • Episódio 4 | Chico Buarque e Carlos Drummond de Andrade | 25/11
  • Episódio 5 | A música de Caetano Veloso e traduções de Augusto de Campos | 2/12
  • Episódio 6 | Poesia portuguesa | 9/12

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