O blues 'fora da caixa' de Nuno Mindelis


Guitarrista faz de ‘Angola Blues’ sua viagem mais radical e surpreendente

Por Julio Maria

Havia um lugar logo ali, no ritmo, escondido pelos raios solares da tonalidade maior e feliz, que ninguém havia percebido. Um espaço em que os negros que tocam blues nos Estados Unidos poderiam encontrar os negros que tocam kwella na África ou, mais precisamente, em Angola. Angola, na parte ocidental da África Central, de braços abertos para o Atlântico, não é o celeiro clássico do blues africano. Há muito mais blues lá pra cima, nos desertos do Mali, nas periferias da Mauritânia, em Burkina Fasso e até em Gana, um dos portos de onde os negros saíam encomendados do outro lado do oceano. Angola e tudo o que vem até a África do Sul costumam ter, quando fazem música, uma alegria mais explosiva e menos espiritual, de mais euforia e menos mantra.

Nuno Mindelis conhece bem aquelas terras. Guitarrista de blues nascido em Cabinda, em 1957, segunda maior cidade depois de Luanda, migrou para o Canadá fugindo da sangrenta guerra civil angolana, eclodida logo depois da deposição à base de cravos colocados nos canos dos fuzis de Marcelo Caetano em Portugal, em 1974, e da consequente independência das colônias portuguesas. O pai primeiro seguiu com a família para o Canadá e, um ano depois, entendendo que nada poderia ser mais próximo de Angola do que o Brasil, São Paulo.

O guitarristaNuno Mindelis, que volta às raízes em seu novo disco Foto: Vladimir Fernandes
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Ao chegar ao Brasil, em 1976, Mindelis se juntou a roqueiros e blueseiros e desenvolveu uma linguagem de solos que não parecia de ninguém, um fraseado limpo, longo e ágil, amaciado pela mão direita sem palheta, até chegar ao ponto de fazer álbuns estupendos erguidos nas matrizes do blues norte-americano, como Blues on the Outside, de 1999; Twelve Hours, de 2003; e, sobretudo, Texas Bound, de 1996, com a sessão rítmica mais desejada no blues dos anos 1990: Chris Layton na bateria e Tommy Shannon no baixo, a cama e a mesa de ninguém menos que o guitarrista Stevie Ray Vaughan, morto em um acidente de helicóptero em 1990.

Nuno poderia seguir o caminho que já estava sedimentado, com o reconhecimento de publicações estrangeiras, como a Guitar Player, e com seu nome gravado na calçada da fama do blues depois de sua passagem pelo festival de Swalki, na Polônia, ao lado de Billly Gibbons, do ZZ Top, e de Eric Burdon, do Animals, em 2018. Mas lá foi ele atrás de si mesmo, ou ao menos atrás do que esse si mesmo havia se tornado com o passar dos anos, seguindo o fio puxado justamente em Swalki, quando cantou pela primeira vez duas músicas no familiar dialeto quimbundo, Mona Ki Ngi Xica e Nbiri Nbiri. Seu movimento mais radical deságua agora em Angola Blues, um álbum de um guitarrista brasileiro fazendo blues norte-americano influenciado pela África.

Angola Blues tem história. Além de trazer a guinada de Nuno a seu país de origem, apresenta em algumas faixas a participação da cantora Flora Purim e do percussionista Airto Moreira. Flora canta em Muxima, uma voz quase experimental, às vezes vacilante, sobre um blues em tonalidade menor e em um movimento circular do refrão. “Eu ouvi os dois (Flora e Airto) no tempo em que morava em Luanda, em 1972. Um dia, minha mãe chegou com o álbum do grupo Return to Forever (formação estelar dos anos 70), da África do Sul. Para mim, eles sempre estiveram na mesma galáxia que BB King, Miles Davis e Mahavishnu Orchestra, e eu pude dizer isso a eles quando estávamos gravando.” Monami Zeca é outro blues forte, marcado pelo idioma quimbundo de Nuno e pelas frases de guitarra cortando tudo.

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A canção Cabinda, uma das 18 províncias de Angola, é um achado daqueles que poderiam sugar todo o álbum para o rumo que aponta. Nuno parte para a kwella, um ritmo africano, que nas ilhas do Caribe ganhou primos como o calipso, de contágio imediato e proliferação fulminante, capaz de fazer cidades inteiras dançarem por horas nas ruas e nas casas. Se quisesse, Nuno poderia ter feito um álbum todo assim, mesmo arriscando-se na repetição, mas o que é o blues se não a reafirmação constante de uma essência? Uma eterna repetição?

Cabinda é simples, em três acordes, e se torna o que Angola Blues tem de melhor porque é nela que Nuno encontra a conexão de dois mundos. A levada da kwella angolana é um shuffle, um ritmo que os bluesmen nos Estados Unidos usaram, sobretudo no Texas, para criar seus torpedos mais fulminantes. Mas um shuffle sem fúria, com uma desdobrada rítmica que a joga no blues rasgado para um ciclo de solo sempre depois de oito estrofes. Resumindo, um clássico, guardadas as diferenças de linguagens, da potência da instrumental Hugs, de Texas Bound.

Nuno divide o vocal com a cantora angolana residente em São Paulo, Jessica Areias. Jessica tem um disco de 2014, com um timbre que entrega a voz que as africanas tiram de algum lugar que precisa ser estudado, e muito material na internet, parecendo sempre se dar muito melhor quando assume as culturas de Angola em seu repertório. A banda de Nuno tem Dhieego Andrade (bateria), Marcos Klis (baixo), Alex Bessa (teclados) e Ilker Ezaki (percussão). O repertório do disco vai ser lançado nas plataformas digitais no próximo dia 10, quando Nuno fará uma live de sua casa, às 17h, pelo Instagram (instagram.com/nminde lis) e pelo Facebook (face book.com/nunomindelis), cantando e solando sobre as bases gravadas das músicas. O show, marcado no Blue Note na semana em que o mundo silenciaria, acabou sendo cancelado.

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Apesar de ter álbuns que o colocou em contato com o universo do blues, Nuno considera Angola mais significativo. “Do ponto de vista guitarrístico, Texas Bound tem uma grande importância, mas creio que Angola significa mais como obra.” O que leva a entender que, enquanto Texas o levou ao exterior, a lugares onde todo mundo que tocava guitarra nos anos de 1990 queria estar, Angola o conduziu para dentro de si, ao encontro de uma musicalidade que não se tratava mais de reprodução ou de simulacro, mas de criação, e que só havia em si. Ele faz um caminho inverso ao do uso quase científico do blues e de outras musicalidades africanas, sobretudo de malineses, nigerianos e senegaleses, por grupos brancos brasileiros e europeus de afrobeat. De duas décadas para cá, desde que começaram a surgir nomes como Tinariwen, um grupo de blues formado por tuaregues do deserto africano, o precursor Ali Farka Touré, Songhoy Blues, o casal de cegos do Mali, Amadou & Mariam, e a cantora mauritanense Noura Mint Seymali, que o festival Mimo apresentou ao Brasil, tornou-se um ato de engajamento a afirmação da África em detrimento do que se faz nos Estados Unidos. Ao fazer um disco de blues em que tudo vem junto, ele não cai nessa. 

Nuno acha assim seu lugar de fala, para usar uma expressão que não cola quando se fala de blues. Não cola porque logo nos anos de 1960, os brancos ingleses fizeram um serviço que os brancos norte-americanos se recusavam a fazer: olhar para uma geração de bluesmen do Mississippi e de Chicago perdida, jogada à sorte e a um passado que começava a desbotar. Muddy Waters, BB King, Little Walter, John Lee Hooker, Magic Slim, Willie Dixon, Howlin’ Wolf, T-Bone Walker, Blind Lemon Jefferson. Sem os ingleses, brancos teoricamente sem o suingue na voz que habilitava os norte-americanos a representá-los melhor, muitos teriam morrido à míngua. Pois enquanto os Estados Unidos estavam preocupados em produzir roqueiros à partir de Elvis, quem Ike Turner morreu acusando de ter surrupiado tudo dos negros, os ingleses classe média só queriam saber de tocá-los. Eric Clapton, Rolling Stones, Elton John, Faces (de Rod Stewart), Led Zeppelin, The Animals, The Who, todos começaram no blues. Fora de seus “lugares de fala”, eles salvaram vidas e permitiram também que um branco de Cabinda criado no Brasil pudesse fazer o que faz.

Havia um lugar logo ali, no ritmo, escondido pelos raios solares da tonalidade maior e feliz, que ninguém havia percebido. Um espaço em que os negros que tocam blues nos Estados Unidos poderiam encontrar os negros que tocam kwella na África ou, mais precisamente, em Angola. Angola, na parte ocidental da África Central, de braços abertos para o Atlântico, não é o celeiro clássico do blues africano. Há muito mais blues lá pra cima, nos desertos do Mali, nas periferias da Mauritânia, em Burkina Fasso e até em Gana, um dos portos de onde os negros saíam encomendados do outro lado do oceano. Angola e tudo o que vem até a África do Sul costumam ter, quando fazem música, uma alegria mais explosiva e menos espiritual, de mais euforia e menos mantra.

Nuno Mindelis conhece bem aquelas terras. Guitarrista de blues nascido em Cabinda, em 1957, segunda maior cidade depois de Luanda, migrou para o Canadá fugindo da sangrenta guerra civil angolana, eclodida logo depois da deposição à base de cravos colocados nos canos dos fuzis de Marcelo Caetano em Portugal, em 1974, e da consequente independência das colônias portuguesas. O pai primeiro seguiu com a família para o Canadá e, um ano depois, entendendo que nada poderia ser mais próximo de Angola do que o Brasil, São Paulo.

O guitarristaNuno Mindelis, que volta às raízes em seu novo disco Foto: Vladimir Fernandes

Ao chegar ao Brasil, em 1976, Mindelis se juntou a roqueiros e blueseiros e desenvolveu uma linguagem de solos que não parecia de ninguém, um fraseado limpo, longo e ágil, amaciado pela mão direita sem palheta, até chegar ao ponto de fazer álbuns estupendos erguidos nas matrizes do blues norte-americano, como Blues on the Outside, de 1999; Twelve Hours, de 2003; e, sobretudo, Texas Bound, de 1996, com a sessão rítmica mais desejada no blues dos anos 1990: Chris Layton na bateria e Tommy Shannon no baixo, a cama e a mesa de ninguém menos que o guitarrista Stevie Ray Vaughan, morto em um acidente de helicóptero em 1990.

Nuno poderia seguir o caminho que já estava sedimentado, com o reconhecimento de publicações estrangeiras, como a Guitar Player, e com seu nome gravado na calçada da fama do blues depois de sua passagem pelo festival de Swalki, na Polônia, ao lado de Billly Gibbons, do ZZ Top, e de Eric Burdon, do Animals, em 2018. Mas lá foi ele atrás de si mesmo, ou ao menos atrás do que esse si mesmo havia se tornado com o passar dos anos, seguindo o fio puxado justamente em Swalki, quando cantou pela primeira vez duas músicas no familiar dialeto quimbundo, Mona Ki Ngi Xica e Nbiri Nbiri. Seu movimento mais radical deságua agora em Angola Blues, um álbum de um guitarrista brasileiro fazendo blues norte-americano influenciado pela África.

Angola Blues tem história. Além de trazer a guinada de Nuno a seu país de origem, apresenta em algumas faixas a participação da cantora Flora Purim e do percussionista Airto Moreira. Flora canta em Muxima, uma voz quase experimental, às vezes vacilante, sobre um blues em tonalidade menor e em um movimento circular do refrão. “Eu ouvi os dois (Flora e Airto) no tempo em que morava em Luanda, em 1972. Um dia, minha mãe chegou com o álbum do grupo Return to Forever (formação estelar dos anos 70), da África do Sul. Para mim, eles sempre estiveram na mesma galáxia que BB King, Miles Davis e Mahavishnu Orchestra, e eu pude dizer isso a eles quando estávamos gravando.” Monami Zeca é outro blues forte, marcado pelo idioma quimbundo de Nuno e pelas frases de guitarra cortando tudo.

A canção Cabinda, uma das 18 províncias de Angola, é um achado daqueles que poderiam sugar todo o álbum para o rumo que aponta. Nuno parte para a kwella, um ritmo africano, que nas ilhas do Caribe ganhou primos como o calipso, de contágio imediato e proliferação fulminante, capaz de fazer cidades inteiras dançarem por horas nas ruas e nas casas. Se quisesse, Nuno poderia ter feito um álbum todo assim, mesmo arriscando-se na repetição, mas o que é o blues se não a reafirmação constante de uma essência? Uma eterna repetição?

Cabinda é simples, em três acordes, e se torna o que Angola Blues tem de melhor porque é nela que Nuno encontra a conexão de dois mundos. A levada da kwella angolana é um shuffle, um ritmo que os bluesmen nos Estados Unidos usaram, sobretudo no Texas, para criar seus torpedos mais fulminantes. Mas um shuffle sem fúria, com uma desdobrada rítmica que a joga no blues rasgado para um ciclo de solo sempre depois de oito estrofes. Resumindo, um clássico, guardadas as diferenças de linguagens, da potência da instrumental Hugs, de Texas Bound.

Nuno divide o vocal com a cantora angolana residente em São Paulo, Jessica Areias. Jessica tem um disco de 2014, com um timbre que entrega a voz que as africanas tiram de algum lugar que precisa ser estudado, e muito material na internet, parecendo sempre se dar muito melhor quando assume as culturas de Angola em seu repertório. A banda de Nuno tem Dhieego Andrade (bateria), Marcos Klis (baixo), Alex Bessa (teclados) e Ilker Ezaki (percussão). O repertório do disco vai ser lançado nas plataformas digitais no próximo dia 10, quando Nuno fará uma live de sua casa, às 17h, pelo Instagram (instagram.com/nminde lis) e pelo Facebook (face book.com/nunomindelis), cantando e solando sobre as bases gravadas das músicas. O show, marcado no Blue Note na semana em que o mundo silenciaria, acabou sendo cancelado.

Apesar de ter álbuns que o colocou em contato com o universo do blues, Nuno considera Angola mais significativo. “Do ponto de vista guitarrístico, Texas Bound tem uma grande importância, mas creio que Angola significa mais como obra.” O que leva a entender que, enquanto Texas o levou ao exterior, a lugares onde todo mundo que tocava guitarra nos anos de 1990 queria estar, Angola o conduziu para dentro de si, ao encontro de uma musicalidade que não se tratava mais de reprodução ou de simulacro, mas de criação, e que só havia em si. Ele faz um caminho inverso ao do uso quase científico do blues e de outras musicalidades africanas, sobretudo de malineses, nigerianos e senegaleses, por grupos brancos brasileiros e europeus de afrobeat. De duas décadas para cá, desde que começaram a surgir nomes como Tinariwen, um grupo de blues formado por tuaregues do deserto africano, o precursor Ali Farka Touré, Songhoy Blues, o casal de cegos do Mali, Amadou & Mariam, e a cantora mauritanense Noura Mint Seymali, que o festival Mimo apresentou ao Brasil, tornou-se um ato de engajamento a afirmação da África em detrimento do que se faz nos Estados Unidos. Ao fazer um disco de blues em que tudo vem junto, ele não cai nessa. 

Nuno acha assim seu lugar de fala, para usar uma expressão que não cola quando se fala de blues. Não cola porque logo nos anos de 1960, os brancos ingleses fizeram um serviço que os brancos norte-americanos se recusavam a fazer: olhar para uma geração de bluesmen do Mississippi e de Chicago perdida, jogada à sorte e a um passado que começava a desbotar. Muddy Waters, BB King, Little Walter, John Lee Hooker, Magic Slim, Willie Dixon, Howlin’ Wolf, T-Bone Walker, Blind Lemon Jefferson. Sem os ingleses, brancos teoricamente sem o suingue na voz que habilitava os norte-americanos a representá-los melhor, muitos teriam morrido à míngua. Pois enquanto os Estados Unidos estavam preocupados em produzir roqueiros à partir de Elvis, quem Ike Turner morreu acusando de ter surrupiado tudo dos negros, os ingleses classe média só queriam saber de tocá-los. Eric Clapton, Rolling Stones, Elton John, Faces (de Rod Stewart), Led Zeppelin, The Animals, The Who, todos começaram no blues. Fora de seus “lugares de fala”, eles salvaram vidas e permitiram também que um branco de Cabinda criado no Brasil pudesse fazer o que faz.

Havia um lugar logo ali, no ritmo, escondido pelos raios solares da tonalidade maior e feliz, que ninguém havia percebido. Um espaço em que os negros que tocam blues nos Estados Unidos poderiam encontrar os negros que tocam kwella na África ou, mais precisamente, em Angola. Angola, na parte ocidental da África Central, de braços abertos para o Atlântico, não é o celeiro clássico do blues africano. Há muito mais blues lá pra cima, nos desertos do Mali, nas periferias da Mauritânia, em Burkina Fasso e até em Gana, um dos portos de onde os negros saíam encomendados do outro lado do oceano. Angola e tudo o que vem até a África do Sul costumam ter, quando fazem música, uma alegria mais explosiva e menos espiritual, de mais euforia e menos mantra.

Nuno Mindelis conhece bem aquelas terras. Guitarrista de blues nascido em Cabinda, em 1957, segunda maior cidade depois de Luanda, migrou para o Canadá fugindo da sangrenta guerra civil angolana, eclodida logo depois da deposição à base de cravos colocados nos canos dos fuzis de Marcelo Caetano em Portugal, em 1974, e da consequente independência das colônias portuguesas. O pai primeiro seguiu com a família para o Canadá e, um ano depois, entendendo que nada poderia ser mais próximo de Angola do que o Brasil, São Paulo.

O guitarristaNuno Mindelis, que volta às raízes em seu novo disco Foto: Vladimir Fernandes

Ao chegar ao Brasil, em 1976, Mindelis se juntou a roqueiros e blueseiros e desenvolveu uma linguagem de solos que não parecia de ninguém, um fraseado limpo, longo e ágil, amaciado pela mão direita sem palheta, até chegar ao ponto de fazer álbuns estupendos erguidos nas matrizes do blues norte-americano, como Blues on the Outside, de 1999; Twelve Hours, de 2003; e, sobretudo, Texas Bound, de 1996, com a sessão rítmica mais desejada no blues dos anos 1990: Chris Layton na bateria e Tommy Shannon no baixo, a cama e a mesa de ninguém menos que o guitarrista Stevie Ray Vaughan, morto em um acidente de helicóptero em 1990.

Nuno poderia seguir o caminho que já estava sedimentado, com o reconhecimento de publicações estrangeiras, como a Guitar Player, e com seu nome gravado na calçada da fama do blues depois de sua passagem pelo festival de Swalki, na Polônia, ao lado de Billly Gibbons, do ZZ Top, e de Eric Burdon, do Animals, em 2018. Mas lá foi ele atrás de si mesmo, ou ao menos atrás do que esse si mesmo havia se tornado com o passar dos anos, seguindo o fio puxado justamente em Swalki, quando cantou pela primeira vez duas músicas no familiar dialeto quimbundo, Mona Ki Ngi Xica e Nbiri Nbiri. Seu movimento mais radical deságua agora em Angola Blues, um álbum de um guitarrista brasileiro fazendo blues norte-americano influenciado pela África.

Angola Blues tem história. Além de trazer a guinada de Nuno a seu país de origem, apresenta em algumas faixas a participação da cantora Flora Purim e do percussionista Airto Moreira. Flora canta em Muxima, uma voz quase experimental, às vezes vacilante, sobre um blues em tonalidade menor e em um movimento circular do refrão. “Eu ouvi os dois (Flora e Airto) no tempo em que morava em Luanda, em 1972. Um dia, minha mãe chegou com o álbum do grupo Return to Forever (formação estelar dos anos 70), da África do Sul. Para mim, eles sempre estiveram na mesma galáxia que BB King, Miles Davis e Mahavishnu Orchestra, e eu pude dizer isso a eles quando estávamos gravando.” Monami Zeca é outro blues forte, marcado pelo idioma quimbundo de Nuno e pelas frases de guitarra cortando tudo.

A canção Cabinda, uma das 18 províncias de Angola, é um achado daqueles que poderiam sugar todo o álbum para o rumo que aponta. Nuno parte para a kwella, um ritmo africano, que nas ilhas do Caribe ganhou primos como o calipso, de contágio imediato e proliferação fulminante, capaz de fazer cidades inteiras dançarem por horas nas ruas e nas casas. Se quisesse, Nuno poderia ter feito um álbum todo assim, mesmo arriscando-se na repetição, mas o que é o blues se não a reafirmação constante de uma essência? Uma eterna repetição?

Cabinda é simples, em três acordes, e se torna o que Angola Blues tem de melhor porque é nela que Nuno encontra a conexão de dois mundos. A levada da kwella angolana é um shuffle, um ritmo que os bluesmen nos Estados Unidos usaram, sobretudo no Texas, para criar seus torpedos mais fulminantes. Mas um shuffle sem fúria, com uma desdobrada rítmica que a joga no blues rasgado para um ciclo de solo sempre depois de oito estrofes. Resumindo, um clássico, guardadas as diferenças de linguagens, da potência da instrumental Hugs, de Texas Bound.

Nuno divide o vocal com a cantora angolana residente em São Paulo, Jessica Areias. Jessica tem um disco de 2014, com um timbre que entrega a voz que as africanas tiram de algum lugar que precisa ser estudado, e muito material na internet, parecendo sempre se dar muito melhor quando assume as culturas de Angola em seu repertório. A banda de Nuno tem Dhieego Andrade (bateria), Marcos Klis (baixo), Alex Bessa (teclados) e Ilker Ezaki (percussão). O repertório do disco vai ser lançado nas plataformas digitais no próximo dia 10, quando Nuno fará uma live de sua casa, às 17h, pelo Instagram (instagram.com/nminde lis) e pelo Facebook (face book.com/nunomindelis), cantando e solando sobre as bases gravadas das músicas. O show, marcado no Blue Note na semana em que o mundo silenciaria, acabou sendo cancelado.

Apesar de ter álbuns que o colocou em contato com o universo do blues, Nuno considera Angola mais significativo. “Do ponto de vista guitarrístico, Texas Bound tem uma grande importância, mas creio que Angola significa mais como obra.” O que leva a entender que, enquanto Texas o levou ao exterior, a lugares onde todo mundo que tocava guitarra nos anos de 1990 queria estar, Angola o conduziu para dentro de si, ao encontro de uma musicalidade que não se tratava mais de reprodução ou de simulacro, mas de criação, e que só havia em si. Ele faz um caminho inverso ao do uso quase científico do blues e de outras musicalidades africanas, sobretudo de malineses, nigerianos e senegaleses, por grupos brancos brasileiros e europeus de afrobeat. De duas décadas para cá, desde que começaram a surgir nomes como Tinariwen, um grupo de blues formado por tuaregues do deserto africano, o precursor Ali Farka Touré, Songhoy Blues, o casal de cegos do Mali, Amadou & Mariam, e a cantora mauritanense Noura Mint Seymali, que o festival Mimo apresentou ao Brasil, tornou-se um ato de engajamento a afirmação da África em detrimento do que se faz nos Estados Unidos. Ao fazer um disco de blues em que tudo vem junto, ele não cai nessa. 

Nuno acha assim seu lugar de fala, para usar uma expressão que não cola quando se fala de blues. Não cola porque logo nos anos de 1960, os brancos ingleses fizeram um serviço que os brancos norte-americanos se recusavam a fazer: olhar para uma geração de bluesmen do Mississippi e de Chicago perdida, jogada à sorte e a um passado que começava a desbotar. Muddy Waters, BB King, Little Walter, John Lee Hooker, Magic Slim, Willie Dixon, Howlin’ Wolf, T-Bone Walker, Blind Lemon Jefferson. Sem os ingleses, brancos teoricamente sem o suingue na voz que habilitava os norte-americanos a representá-los melhor, muitos teriam morrido à míngua. Pois enquanto os Estados Unidos estavam preocupados em produzir roqueiros à partir de Elvis, quem Ike Turner morreu acusando de ter surrupiado tudo dos negros, os ingleses classe média só queriam saber de tocá-los. Eric Clapton, Rolling Stones, Elton John, Faces (de Rod Stewart), Led Zeppelin, The Animals, The Who, todos começaram no blues. Fora de seus “lugares de fala”, eles salvaram vidas e permitiram também que um branco de Cabinda criado no Brasil pudesse fazer o que faz.

Havia um lugar logo ali, no ritmo, escondido pelos raios solares da tonalidade maior e feliz, que ninguém havia percebido. Um espaço em que os negros que tocam blues nos Estados Unidos poderiam encontrar os negros que tocam kwella na África ou, mais precisamente, em Angola. Angola, na parte ocidental da África Central, de braços abertos para o Atlântico, não é o celeiro clássico do blues africano. Há muito mais blues lá pra cima, nos desertos do Mali, nas periferias da Mauritânia, em Burkina Fasso e até em Gana, um dos portos de onde os negros saíam encomendados do outro lado do oceano. Angola e tudo o que vem até a África do Sul costumam ter, quando fazem música, uma alegria mais explosiva e menos espiritual, de mais euforia e menos mantra.

Nuno Mindelis conhece bem aquelas terras. Guitarrista de blues nascido em Cabinda, em 1957, segunda maior cidade depois de Luanda, migrou para o Canadá fugindo da sangrenta guerra civil angolana, eclodida logo depois da deposição à base de cravos colocados nos canos dos fuzis de Marcelo Caetano em Portugal, em 1974, e da consequente independência das colônias portuguesas. O pai primeiro seguiu com a família para o Canadá e, um ano depois, entendendo que nada poderia ser mais próximo de Angola do que o Brasil, São Paulo.

O guitarristaNuno Mindelis, que volta às raízes em seu novo disco Foto: Vladimir Fernandes

Ao chegar ao Brasil, em 1976, Mindelis se juntou a roqueiros e blueseiros e desenvolveu uma linguagem de solos que não parecia de ninguém, um fraseado limpo, longo e ágil, amaciado pela mão direita sem palheta, até chegar ao ponto de fazer álbuns estupendos erguidos nas matrizes do blues norte-americano, como Blues on the Outside, de 1999; Twelve Hours, de 2003; e, sobretudo, Texas Bound, de 1996, com a sessão rítmica mais desejada no blues dos anos 1990: Chris Layton na bateria e Tommy Shannon no baixo, a cama e a mesa de ninguém menos que o guitarrista Stevie Ray Vaughan, morto em um acidente de helicóptero em 1990.

Nuno poderia seguir o caminho que já estava sedimentado, com o reconhecimento de publicações estrangeiras, como a Guitar Player, e com seu nome gravado na calçada da fama do blues depois de sua passagem pelo festival de Swalki, na Polônia, ao lado de Billly Gibbons, do ZZ Top, e de Eric Burdon, do Animals, em 2018. Mas lá foi ele atrás de si mesmo, ou ao menos atrás do que esse si mesmo havia se tornado com o passar dos anos, seguindo o fio puxado justamente em Swalki, quando cantou pela primeira vez duas músicas no familiar dialeto quimbundo, Mona Ki Ngi Xica e Nbiri Nbiri. Seu movimento mais radical deságua agora em Angola Blues, um álbum de um guitarrista brasileiro fazendo blues norte-americano influenciado pela África.

Angola Blues tem história. Além de trazer a guinada de Nuno a seu país de origem, apresenta em algumas faixas a participação da cantora Flora Purim e do percussionista Airto Moreira. Flora canta em Muxima, uma voz quase experimental, às vezes vacilante, sobre um blues em tonalidade menor e em um movimento circular do refrão. “Eu ouvi os dois (Flora e Airto) no tempo em que morava em Luanda, em 1972. Um dia, minha mãe chegou com o álbum do grupo Return to Forever (formação estelar dos anos 70), da África do Sul. Para mim, eles sempre estiveram na mesma galáxia que BB King, Miles Davis e Mahavishnu Orchestra, e eu pude dizer isso a eles quando estávamos gravando.” Monami Zeca é outro blues forte, marcado pelo idioma quimbundo de Nuno e pelas frases de guitarra cortando tudo.

A canção Cabinda, uma das 18 províncias de Angola, é um achado daqueles que poderiam sugar todo o álbum para o rumo que aponta. Nuno parte para a kwella, um ritmo africano, que nas ilhas do Caribe ganhou primos como o calipso, de contágio imediato e proliferação fulminante, capaz de fazer cidades inteiras dançarem por horas nas ruas e nas casas. Se quisesse, Nuno poderia ter feito um álbum todo assim, mesmo arriscando-se na repetição, mas o que é o blues se não a reafirmação constante de uma essência? Uma eterna repetição?

Cabinda é simples, em três acordes, e se torna o que Angola Blues tem de melhor porque é nela que Nuno encontra a conexão de dois mundos. A levada da kwella angolana é um shuffle, um ritmo que os bluesmen nos Estados Unidos usaram, sobretudo no Texas, para criar seus torpedos mais fulminantes. Mas um shuffle sem fúria, com uma desdobrada rítmica que a joga no blues rasgado para um ciclo de solo sempre depois de oito estrofes. Resumindo, um clássico, guardadas as diferenças de linguagens, da potência da instrumental Hugs, de Texas Bound.

Nuno divide o vocal com a cantora angolana residente em São Paulo, Jessica Areias. Jessica tem um disco de 2014, com um timbre que entrega a voz que as africanas tiram de algum lugar que precisa ser estudado, e muito material na internet, parecendo sempre se dar muito melhor quando assume as culturas de Angola em seu repertório. A banda de Nuno tem Dhieego Andrade (bateria), Marcos Klis (baixo), Alex Bessa (teclados) e Ilker Ezaki (percussão). O repertório do disco vai ser lançado nas plataformas digitais no próximo dia 10, quando Nuno fará uma live de sua casa, às 17h, pelo Instagram (instagram.com/nminde lis) e pelo Facebook (face book.com/nunomindelis), cantando e solando sobre as bases gravadas das músicas. O show, marcado no Blue Note na semana em que o mundo silenciaria, acabou sendo cancelado.

Apesar de ter álbuns que o colocou em contato com o universo do blues, Nuno considera Angola mais significativo. “Do ponto de vista guitarrístico, Texas Bound tem uma grande importância, mas creio que Angola significa mais como obra.” O que leva a entender que, enquanto Texas o levou ao exterior, a lugares onde todo mundo que tocava guitarra nos anos de 1990 queria estar, Angola o conduziu para dentro de si, ao encontro de uma musicalidade que não se tratava mais de reprodução ou de simulacro, mas de criação, e que só havia em si. Ele faz um caminho inverso ao do uso quase científico do blues e de outras musicalidades africanas, sobretudo de malineses, nigerianos e senegaleses, por grupos brancos brasileiros e europeus de afrobeat. De duas décadas para cá, desde que começaram a surgir nomes como Tinariwen, um grupo de blues formado por tuaregues do deserto africano, o precursor Ali Farka Touré, Songhoy Blues, o casal de cegos do Mali, Amadou & Mariam, e a cantora mauritanense Noura Mint Seymali, que o festival Mimo apresentou ao Brasil, tornou-se um ato de engajamento a afirmação da África em detrimento do que se faz nos Estados Unidos. Ao fazer um disco de blues em que tudo vem junto, ele não cai nessa. 

Nuno acha assim seu lugar de fala, para usar uma expressão que não cola quando se fala de blues. Não cola porque logo nos anos de 1960, os brancos ingleses fizeram um serviço que os brancos norte-americanos se recusavam a fazer: olhar para uma geração de bluesmen do Mississippi e de Chicago perdida, jogada à sorte e a um passado que começava a desbotar. Muddy Waters, BB King, Little Walter, John Lee Hooker, Magic Slim, Willie Dixon, Howlin’ Wolf, T-Bone Walker, Blind Lemon Jefferson. Sem os ingleses, brancos teoricamente sem o suingue na voz que habilitava os norte-americanos a representá-los melhor, muitos teriam morrido à míngua. Pois enquanto os Estados Unidos estavam preocupados em produzir roqueiros à partir de Elvis, quem Ike Turner morreu acusando de ter surrupiado tudo dos negros, os ingleses classe média só queriam saber de tocá-los. Eric Clapton, Rolling Stones, Elton John, Faces (de Rod Stewart), Led Zeppelin, The Animals, The Who, todos começaram no blues. Fora de seus “lugares de fala”, eles salvaram vidas e permitiram também que um branco de Cabinda criado no Brasil pudesse fazer o que faz.

Havia um lugar logo ali, no ritmo, escondido pelos raios solares da tonalidade maior e feliz, que ninguém havia percebido. Um espaço em que os negros que tocam blues nos Estados Unidos poderiam encontrar os negros que tocam kwella na África ou, mais precisamente, em Angola. Angola, na parte ocidental da África Central, de braços abertos para o Atlântico, não é o celeiro clássico do blues africano. Há muito mais blues lá pra cima, nos desertos do Mali, nas periferias da Mauritânia, em Burkina Fasso e até em Gana, um dos portos de onde os negros saíam encomendados do outro lado do oceano. Angola e tudo o que vem até a África do Sul costumam ter, quando fazem música, uma alegria mais explosiva e menos espiritual, de mais euforia e menos mantra.

Nuno Mindelis conhece bem aquelas terras. Guitarrista de blues nascido em Cabinda, em 1957, segunda maior cidade depois de Luanda, migrou para o Canadá fugindo da sangrenta guerra civil angolana, eclodida logo depois da deposição à base de cravos colocados nos canos dos fuzis de Marcelo Caetano em Portugal, em 1974, e da consequente independência das colônias portuguesas. O pai primeiro seguiu com a família para o Canadá e, um ano depois, entendendo que nada poderia ser mais próximo de Angola do que o Brasil, São Paulo.

O guitarristaNuno Mindelis, que volta às raízes em seu novo disco Foto: Vladimir Fernandes

Ao chegar ao Brasil, em 1976, Mindelis se juntou a roqueiros e blueseiros e desenvolveu uma linguagem de solos que não parecia de ninguém, um fraseado limpo, longo e ágil, amaciado pela mão direita sem palheta, até chegar ao ponto de fazer álbuns estupendos erguidos nas matrizes do blues norte-americano, como Blues on the Outside, de 1999; Twelve Hours, de 2003; e, sobretudo, Texas Bound, de 1996, com a sessão rítmica mais desejada no blues dos anos 1990: Chris Layton na bateria e Tommy Shannon no baixo, a cama e a mesa de ninguém menos que o guitarrista Stevie Ray Vaughan, morto em um acidente de helicóptero em 1990.

Nuno poderia seguir o caminho que já estava sedimentado, com o reconhecimento de publicações estrangeiras, como a Guitar Player, e com seu nome gravado na calçada da fama do blues depois de sua passagem pelo festival de Swalki, na Polônia, ao lado de Billly Gibbons, do ZZ Top, e de Eric Burdon, do Animals, em 2018. Mas lá foi ele atrás de si mesmo, ou ao menos atrás do que esse si mesmo havia se tornado com o passar dos anos, seguindo o fio puxado justamente em Swalki, quando cantou pela primeira vez duas músicas no familiar dialeto quimbundo, Mona Ki Ngi Xica e Nbiri Nbiri. Seu movimento mais radical deságua agora em Angola Blues, um álbum de um guitarrista brasileiro fazendo blues norte-americano influenciado pela África.

Angola Blues tem história. Além de trazer a guinada de Nuno a seu país de origem, apresenta em algumas faixas a participação da cantora Flora Purim e do percussionista Airto Moreira. Flora canta em Muxima, uma voz quase experimental, às vezes vacilante, sobre um blues em tonalidade menor e em um movimento circular do refrão. “Eu ouvi os dois (Flora e Airto) no tempo em que morava em Luanda, em 1972. Um dia, minha mãe chegou com o álbum do grupo Return to Forever (formação estelar dos anos 70), da África do Sul. Para mim, eles sempre estiveram na mesma galáxia que BB King, Miles Davis e Mahavishnu Orchestra, e eu pude dizer isso a eles quando estávamos gravando.” Monami Zeca é outro blues forte, marcado pelo idioma quimbundo de Nuno e pelas frases de guitarra cortando tudo.

A canção Cabinda, uma das 18 províncias de Angola, é um achado daqueles que poderiam sugar todo o álbum para o rumo que aponta. Nuno parte para a kwella, um ritmo africano, que nas ilhas do Caribe ganhou primos como o calipso, de contágio imediato e proliferação fulminante, capaz de fazer cidades inteiras dançarem por horas nas ruas e nas casas. Se quisesse, Nuno poderia ter feito um álbum todo assim, mesmo arriscando-se na repetição, mas o que é o blues se não a reafirmação constante de uma essência? Uma eterna repetição?

Cabinda é simples, em três acordes, e se torna o que Angola Blues tem de melhor porque é nela que Nuno encontra a conexão de dois mundos. A levada da kwella angolana é um shuffle, um ritmo que os bluesmen nos Estados Unidos usaram, sobretudo no Texas, para criar seus torpedos mais fulminantes. Mas um shuffle sem fúria, com uma desdobrada rítmica que a joga no blues rasgado para um ciclo de solo sempre depois de oito estrofes. Resumindo, um clássico, guardadas as diferenças de linguagens, da potência da instrumental Hugs, de Texas Bound.

Nuno divide o vocal com a cantora angolana residente em São Paulo, Jessica Areias. Jessica tem um disco de 2014, com um timbre que entrega a voz que as africanas tiram de algum lugar que precisa ser estudado, e muito material na internet, parecendo sempre se dar muito melhor quando assume as culturas de Angola em seu repertório. A banda de Nuno tem Dhieego Andrade (bateria), Marcos Klis (baixo), Alex Bessa (teclados) e Ilker Ezaki (percussão). O repertório do disco vai ser lançado nas plataformas digitais no próximo dia 10, quando Nuno fará uma live de sua casa, às 17h, pelo Instagram (instagram.com/nminde lis) e pelo Facebook (face book.com/nunomindelis), cantando e solando sobre as bases gravadas das músicas. O show, marcado no Blue Note na semana em que o mundo silenciaria, acabou sendo cancelado.

Apesar de ter álbuns que o colocou em contato com o universo do blues, Nuno considera Angola mais significativo. “Do ponto de vista guitarrístico, Texas Bound tem uma grande importância, mas creio que Angola significa mais como obra.” O que leva a entender que, enquanto Texas o levou ao exterior, a lugares onde todo mundo que tocava guitarra nos anos de 1990 queria estar, Angola o conduziu para dentro de si, ao encontro de uma musicalidade que não se tratava mais de reprodução ou de simulacro, mas de criação, e que só havia em si. Ele faz um caminho inverso ao do uso quase científico do blues e de outras musicalidades africanas, sobretudo de malineses, nigerianos e senegaleses, por grupos brancos brasileiros e europeus de afrobeat. De duas décadas para cá, desde que começaram a surgir nomes como Tinariwen, um grupo de blues formado por tuaregues do deserto africano, o precursor Ali Farka Touré, Songhoy Blues, o casal de cegos do Mali, Amadou & Mariam, e a cantora mauritanense Noura Mint Seymali, que o festival Mimo apresentou ao Brasil, tornou-se um ato de engajamento a afirmação da África em detrimento do que se faz nos Estados Unidos. Ao fazer um disco de blues em que tudo vem junto, ele não cai nessa. 

Nuno acha assim seu lugar de fala, para usar uma expressão que não cola quando se fala de blues. Não cola porque logo nos anos de 1960, os brancos ingleses fizeram um serviço que os brancos norte-americanos se recusavam a fazer: olhar para uma geração de bluesmen do Mississippi e de Chicago perdida, jogada à sorte e a um passado que começava a desbotar. Muddy Waters, BB King, Little Walter, John Lee Hooker, Magic Slim, Willie Dixon, Howlin’ Wolf, T-Bone Walker, Blind Lemon Jefferson. Sem os ingleses, brancos teoricamente sem o suingue na voz que habilitava os norte-americanos a representá-los melhor, muitos teriam morrido à míngua. Pois enquanto os Estados Unidos estavam preocupados em produzir roqueiros à partir de Elvis, quem Ike Turner morreu acusando de ter surrupiado tudo dos negros, os ingleses classe média só queriam saber de tocá-los. Eric Clapton, Rolling Stones, Elton John, Faces (de Rod Stewart), Led Zeppelin, The Animals, The Who, todos começaram no blues. Fora de seus “lugares de fala”, eles salvaram vidas e permitiram também que um branco de Cabinda criado no Brasil pudesse fazer o que faz.

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