Madonna começou sua carreira há quatro décadas, carregando consigo poucos dólares e uma “ambição loira” ao se mudar para Nova York. A ambição deu frutos: com 14 álbuns de estúdio, videoclipes icônicos e grandes turnês em seu portfólio, ela, que tem hoje 65 anos, se tornou uma das artistas mais emblemáticas da cultura pop contemporânea.
Em 2024, vários dos maiores sucessos de Madonna já têm idade adulta. Like a Virgin, La Isla Bonita e Vogue já têm 40, 38 e 34 anos de existência, respectivamente. Alguns dos contemporâneos da artista já não estão vivos ou em atividade – se estão, não têm o prestígio de outrora. Madonna segue a pleno vapor e, nesta semana, se prepara para fazer no Brasil o maior show de sua carreira.
Dias antes da apresentação, o País já parou para falar dela. Mais de um milhão de pessoas são esperadas na praia de Copacabana, entre fãs de todas as idades. A fama da artista é inquestionável – ser um nome conhecido não é suficiente para tanto furor. O que faz de Madonna um nome que não fica no passado, redefinindo seu próprio auge com 40 anos de carreira?
Para investigar a relevância atual de uma artista que começou nos anos 80 – e cujo legado atravessa gerações –, o Estadão conversou com especialistas em música e cultura pop. O resultado reflete a própria Madonna: começa na figura dela, mas passa por imagem, sexualidade, feminismo e política.
Afinal, o que é que a Madonna tem de especial?
Tem inovação
“Madonna é uma síntese do que as celebridades tiveram que fazer ao longo dessa trajetória de vida midiática. Mais do que a questão da idade, o que a gente vê hoje na cultura digital é uma vida na mídia. E ela tem muita presença midiática. Ela atravessou, praticamente, todas as transformações midiáticas, seja na televisão - quando ela foi a síntese da MTV. A produção de clipes de Madonna pautou a televisão musical, essa produção profícua de videoclipes e performances em programas de TV”, diz Thiago Soares, professor e pesquisador de música e cultura pop na Universidade Federal de Pernambuco.
“A primeira grande contribuição de Madonna é essa, com o videoclipe, junto com o Michael Jackson. Ela construiu um modelo de videoclipe que incorpora relações com o cinema mainstream, como em Material Girl. Quando ela faz isso, ela dessacraliza as imagens icônicas de Hollywood. Ela traz a imagem da mulher para a música de maneira icônica e refinada”, explica.
Mariana Lins, jornalista e doutora em Comunicação, teve a Madonna como objeto de pesquisa em seu mestrado e parte do doutorado. Para ela, outra grande contribuição da artista foi com os seus shows. “Acho que o maior legado dela é trazer essa teatralização, essa linguagem teatral para o palco. E pensar o show como um espetáculo, não como um lugar de virtuosos apenas”, reforça.
“Madonna bebe na fonte de um modelo de espetáculo, que o Brasil vai rever, derivado do modelo da Broadway. Espetáculos que contam histórias”, completa Soares.
Tem referências
O professor considera que o fato de Madonna não ser “uma grande cantora” a permitiu ir para outros caminhos. “Ela trouxe para a cultura pop uma questão central: você não precisa ser uma grande cantora para ser um grande ícone da música pop. Ela era uma grande estrategista. Musicalmente, ela não tem uma grande voz, mas tem a inteligência corporal. E talvez por causa do limite do canto, ela investiu tanto no videoclipe e nos aparatos de show”, diz.
“E não menos, Madonna sempre trouxe para o mainstream as figuras do underground. Ela olhava para as culturas que não são mainstream. Trouxe DJs mais obscuros da cena de Nova York, como o Jellybean Benitez, por exemplo. Depois com Vogue, ela olha para as comunidades LGBTQIAP+ negras nova-iorquinas e traz para o mainstream. Inclusive, o show de Celebration Tour celebra muito isso. Madonna é esse radar que olha para o underground e incorpora de forma muito sagaz no ambiente mainstream”, completa Soares.
Cláudia Assef, jornalista, DJ e cofundadora do Women’s Music Event, acredita que uma grande potência de Madonna está nesse olhar para o underground. “Ela sempre teve parcerias com DJs importantes e produtores musicais supermodernos, que a ajudaram a colocar [seus sentimentos] para fora no formato pop. Essas tendências são muito características da Madonna. Vejo muito isso acontecendo hoje com a Beyoncé - ela seguindo esse caminho de Madonna de procurar parcerias que consigam traduzir essas ideias para um público massificado, mas de um jeito requintado, ainda que muito pop”.
Tem ativismo
Em todos os depoimentos, o ativismo político de Madonna foi usado para descrever sua importância. Para o pesquisador de música e cultura pop na Universidade Federal de Pernambuco Thiago Soares, a artista se tornou “uma figura emblemática de pautas que hoje são muito importantes”, o que a mantém relevante mesmo com públicos mais jovens.
“Um elemento que talvez tenha sustentado Madonna por tanto tempo é uma agenda política na sua obra. Ela fez isso nos anos 80, em plena era Reagan - de muito conservadorismo. Se você olhar a indumentária dela no primeiro momento, aquela roupa de renda, ela traz para cima do corpo, como acessórios do próprio corpo”, diz o professor. “Like a Virgin, por exemplo, é uma música sobre reivindicar a sexualidade feminina... Essas coisas, até hoje, são temas totalmente atuais.”
Renan Guerra, jornalista especializado em cultura, ressalta que a artista se tornou uma figura muito importante para pessoas LGBT+. “Na comunidade, a gente sempre precisou de alguma coisa que fosse à margem, diferente. Nos anos 80, a gente tinha um mundo que era muito machista e a Madonna falando sobre as coisas que ela queria falar”, constata.
“Quando a comunidade gay precisou dela, ela estava pronta para abraçar essa comunidade. Grande parte das pessoas abandonou as pessoas LGBT+ quando a AIDS se tornou uma grande epidemia, e a Madonna simplesmente abraçou [a comunidade]”.
Guerra e Soares citam um caso específico: em 1989, Madonna usou o encarte do disco Like a Prayer para divulgar informações de prevenção à AIDS. O texto diz que a doença afeta “homens, mulheres e crianças, independente de raça, idade ou orientação sexual”.
“É [um ato] muito forte. Se o estigma ainda é muito forte em 2024, imagina em 1989. E aí ela coloca nos discos em todos os países. Você pega um disco, aqui no Brasil, e vai encontrar essas informações”, reforça Guerra.
Para ele, Madonna também reviveu o discurso da liberdade sexual na década seguinte. “Os anos 90 começam de uma forma muito obscura, muito triste e fechada. Surgem o grunge e cantoras mais ‘pesadas’. [Pós-epidemia da AIDS], ninguém estava falando de sexo, as pessoas tinham medo do sexo, e a Madonna faz o Erotica. E ela coloca o sexo como uma coisa importante para a qualidade de vida”, lembra.
Cláudia Assef estende a contribuição de Madonna ao feminismo e a considera uma “figura central” do movimento na cultura pop. “É fundamental uma figura como a Madonna se posicionar da forma que ela se posiciona e se expor da forma como ela se expõe. Quando ela diz que foi subjugada por homens da indústria, que ela foi abusada, que ela foi usada… Quando uma mulher olha para Madonna, ela pode falar: ‘Se essa mulher passou por isso, então tudo isso que eu estou passando é verdade e eu vou combater com todas as minhas forças’”, diz.
E segue: “Ela é uma injeção de força, quase. Ela injeta uma raiva produtiva nas mulheres, especialmente as mulheres que trabalham com música, entretenimento e arte. Madonna é uma figura central no feminismo do nosso do nosso tempo”.
Para Camilo Rocha, jornalista, DJ e autor do livro Bate-Estaca - Como DJs, Drag Queens e Clubbers Salvaram a Noite de São Paulo, as “provocações e posicionamentos [de Madonna] de décadas atrás (celebração do desejo sexual feminino, críticas ao moralismo religioso, defesa das minorias) seguem atuais, em um mundo que vem enfrentando uma onda conservadora que revitalizou preconceitos”.
Tem simbolismo
Mesmo hoje, Madonna ainda é símbolo de causas que sempre trouxe consigo – e adotou novas. “Sua capacidade de gerar debates segue forte”, diz Camilo Rocha. “Em 2023, Madonna rebateu críticas à sua aparência na premiação do Grammy como o etarismo, suscitando muita discussão sobre o tema na mídia e redes sociais”.
“Madonna teve um grande atrevimento de envelhecer em frente às pessoas. Isso é, talvez, uma das maiores ousadias da carreira dela: envelhecer aos olhos do público. Ela não parou a carreira dela, ela não se aposentou, ela não encerrou”, reforça a pesquisadora Mariana Lins.
O professor Thiago Soares também acena à idade de Madonna e relembra que, no palco, ela reproduz cenas sexuais mesmo sendo uma “mulher mais velha”. “Ela insiste em estar no palco, insiste em ser vista. Talvez essa insistência dela de não sair de cena seja mais um gesto político.”
“Ela é, na verdade, um grande bastião da nossa moral”, completa Cláudia Assef. “É engraçado falar isso, né? Porque muita gente a enxerga como um ser amoral e contra os bons costumes… Mas é justamente o contrário. Ela prega muito a igualdade, inclusive muitas vezes colocando até a própria fragilidade dela em cheque.”
Tem influência
Traços do trabalho de Madonna estão em boa parte do cenário pop contemporâneo. Segundo os entrevistados, artistas como Beyoncé, Ariana Grande, Taylor Swift e até Anitta são influenciadas pela cantora de Like a Prayer.
“Madonna sempre inventa projetos novos, estéticas novas, parcerias novas com artistas relevantes do momento. Só nos últimos anos, por exemplo, ela colaborou com The Weeknd, Christine and the Queens e Dua Lipa. Além disso, ela segue referência para artistas de gerações recentes, de Anitta a Beyoncé”, relembra Rocha.
Mariana vê reflexos de Madonna sobretudo nos shows pop. “Esses shows grandiosos de Beyoncé, Taylor Swift, Ariana Grande... Essas cantoras mais jovens [que ela]. Eu assisto e vejo milhões de coisas que são claramente inspirações ‘madônicas’, vamos dizer. Principalmente em termos de formato de show. Essa é a uma das maiores influências, talvez maior legado que Madonna tenha deixado para todas as gerações que vieram depois, de cantoras e cantores”, diz.
Mas não para por aí: a jornalista e pesquisadora, que é de Recife, enxerga Madonna até no brega pernambucano. “Mesmo aqui, no brega, muitas cantoras se inspiram nos conceitos de Madonna. Na forma de pensar o show, de pensar performance, de pensar a arte mesmo”, diz.
Madonna tem tudo: ela construiu um legado
Palavras como “radar” e “inovação” dominam toda a descrição de quem Madonna é como artista. Acima de tudo, para os jornalistas, o trabalho da cantora foi – e segue sendo – atemporal.
“‘Eu aprendo mais, eu quero mais’, disse Madonna em uma entrevista de 1985. Essa frase resume bem a atitude de inquietude, de não se acomodar, que caracteriza a trajetória de Madonna desde o começo. Claro que seu legado de outras décadas é importante, mas ela nunca se deixa aprisionar por ele”, diz Camilo Rocha.
Para a jornalista Cláudia Assef, o “ponto-chave de Madonna é que ela é um espírito do tempo, quase uma guardiã da nossa época”.
“Uma pessoa com uma [enorme] capacidade de percepção, valores e tendências, que consegue entender e capturar sensações mundiais. Ela enxerga tendências antes de todo mundo e lança para as massas. E tem um discurso propositivo, com relação a ir contra todo tipo de preconceito e perversidade moral”, resume.
Mariana reflete que a indústria musical “é outra” depois de Madonna. “Ela inovou em muitos aspectos - em linguagem, em formato, em técnica. Então, o legado que Madonna construiu obviamente tem influências de muitas outras pessoas, outras mulheres que vieram antes dela, contemporâneas inclusive a ela. Mas o grande diferencial é que Madonna soube fazer. Ela teve habilidades de construir uma carreira multifacetada.”
“Eu costumo dizer que ela não inventou a roda, mas acredito que ela tenha inventado novas formas de se rodar com ela”, conta.
“Madonna sabe navegar pelos tempos e ela sabia entender as perspectivas em que a gente pensa”, ressalta Renan Guerra. “Entendo sempre que a juventude está relacionada a um desejo de você conhecer coisas novas e não está relacionada à idade. E entendo que Madonna tem [esse desejo]. A gente vê nessa pesquisa que ela tem sobre diferentes culturas, diferentes músicas. Ela está sempre procurando coisas novas e isso é muito interessante. É por isso que ela se conecta com tanta gente. Cada pessoa tem a sua Madonna: ‘Ah, a minha é a Madonna cabala’, ‘A minha é a Madonna disco music’. Madonna é muitas porque entende a mudança do tempo e ela não fica parada no tempo.”
Por fim, Soares relembra a coluna de Caio Fernando Abreu para o Estadão em 1993. Nela, o escritor dizia que “Madonna dá vontade dessa coisa sagrada: viver”.
“Parafraseando Caio Fernando Abreu: ela vai fazer um bem danado para o Brasil”, finaliza o professor.